Geórgia uma visita aos anos da guerra fria, uma capital cosmopolita e outra viagem de comboio (parte II)

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Recuar à guerra fria e ao camarada José Stalin

A avenida José Stalin é austera, comprida, larga e fria. Culmina na praça José Stalin, onde está a casa onde nasceu José Stalin, mesmo ao frente ao museu José Stalin. Gori, a cidade onde nasceu o ditador, não só parece conviver bem com isso, como, pragmaticamente, sabe tirar partido do passado e da memória do seu filho da terra mais famoso. É que o enorme palácio onde está instalado desde os anos 50 o museu de glorificação ao então líder da URSS até foi construído de raiz para esse efeito. Há que rentabilizar a coisa.
E Gori fá-lo bastante bem. O Museu José Stalin tem cerca de 140 mil visitantes por ano e é a principal atracção turística da cidade.
Uma cidade que parece ainda viver nos anos 80 do século passado. São 8h30 da manhã de um domingo de Janeiro e estão 9 graus negativos. A avenida está deserta e os escassos carros que passam indiciam uma frota automóvel envelhecida, onde pontificam ainda alguns Lada. Por entre a neblina esbranquiçada surgem raríssimos transeuntes com os seus gorros na cabeça. O ambiente é severo. Só falta avistar numa esquina um espião de John le Carré ou um circunspecto agente do KGB, ou um grupo de dignatários do politburo perfilados perante um soldado do Exército Vermelho que faz a ronda em passo de ganso.
Se há locais que guardam bem a memória da antiga União Soviética e que parecem ainda nela viver, esta parte de Gori é um deles. Ou não fosse neste sítio, naquela casa de madeira e adobe, que nasceu o camarada José Stalin.
Foi a partir dessa humilde casa (agora protegida da intempérie por uma cobertura, tal como se fosse um sítio arqueológico) que foi rasgada a enorme avenida. Logo por detrás está o museu, que apesar da sua arquitectura grave, parece na verdade um palácio burguês.
A sua visita não desmerece a sensação de viagem no tempo. A começar pelo frio que nele se faz sentir. Tal como nos tempos mais difíceis da União Soviética, o aquecimento não funciona, apesar dos radiadores espalhados por todo o edifício. Estão  zero graus e os visitantes circulam tolhidos, com a cabeça coberta e envoltos em blusões e cachecóis.
A mulher que faz a visita guiada ao pequeno grupo de estrangeiros é ela própria uma peça viva do museu. Pela idade, terá sobrevivido ao colapso da URSS e continua a dirigir a visita com o mesmo tom monocórdico, apático e desinteressado como o faria há 30 anos. Despeja um inglês perfeito, sem mácula, mas tão apressado que ficamos na dúvida se sabe realmente o que está a dizer.
Pelos salões imponentes, dignos de um palácio real, avistam-se centenas de fotografias do ditador: Stalin em jovem, filho de um casal de camponeses Stalin estudante no seminário do qual foi expulso. A adesão ao movimento revolucionário, a prisão, a revolução bolchevique e a sua ascensão ao poder depois da morte de Lenine, aqui contada como se este último o tivesse elegido como seu natural sucessor (o que não corresponde à verdade).
Curiosamente, e apesar de o museu datar dos anos 50, não foi apagada a imagem de Trotsky, que figura em pelo menos duas fotografias ao lado de Stalin e de Lenine.
O museu mostra ainda as grandes obras do regime soviético, inauguradas pelo seu líder. E depois há a parte da II Grande Guerra Mundial, que ocupa várias salas e que tem um espólio muito interessante.
O gabinete de trabalho do ditador com o mobiliário original e alguns objectos pessoais constam também do acervo do museu, que culmina com um memorial numa sala expressamente dedicada à sua morte.
Uma das partes mais interessantes é a exposição das inúmeras prendas oferecidas a Stalin, não só por parte das então repúblicas socialistas soviéticas, como dos partidos e organizações comunistas dos países ocidentais. Entre o kitsch e o piroso, encontram-se também deslumbrantes obras de arte de inegável valor.

NUM VÃO DE ESCADA

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Com o mesmo passo firme e o mesmo tom monocórdico, a guia introduz-nos num corredor térreo onde, em duas estreitas salas, – uma delas num vão de escada – se recordam as vítimas do stalinismo. Com a mesma ênfase – que é nenhuma – com que falava na infância de Stalin, a guia refere as centenas de milhares de pessoas aprisionadas e assassinadas a mando do ditador. Um escritório que recreia o posto de trabalho de um oficial da KGB, o interior de uma prisão soviética, roupas que pertenceram a prisioneiros, e um improvisado mapa onde se anotam as vítimas do período stalinista, completam a parte do museu que pretende render-lhes homenagem.
Mas não rende.
Esta parte é tão indigente que mais valia assumir o museu José Stalin como sendo, ele mesmo, um museu de um museu.
A visita termina no exterior onde está uma das peças mais interessantes do acervo museológico – a carruagem de caminhos-de-ferro que o homem forte da União Soviética utilizava nas suas deslocações. Stalin tinha medo de andar de avião e foi neste veículo que se deslocou à conferência de Yalta e se movimentava amiúde pelo seu império, incluindo nas suas vilegiaturas nas estâncias do Mar Negro.
A carruagem é dotada de todas as comodidades existentes na época, incluindo ar condicionado e uma casa de banho com banheira e chuveiro. Possui uma cozinha e três compartimentos-cama onde pernoitavam Stalin, o seu secretário e o chefe da segurança. Um salão com uma mesa ampla para reuniões e refeições completa o bem aproveitado espaço interior do veículo. Digno de nota, o curioso armário das telecomunicações que condensa a tecnologia mais avançada da época e que permitia ao ditador estar em contacto com todos os pontos do seu império.

Tblissi – a cidade que dá gosto descobrir

Tblissi herdou a tradição cultural clássica da antiga União Soviética e juntou-lhe a moda ocidental. A ida ao teatro é um hábito social que envolve ainda algum glamour, um ritual para o qual as pessoas ainda se vestem a rigor. Mas há também bares e discotecas como em qualquer capital europeia.
A cidade, separada em duas metades por um rio, concentra numa avenida lojas da moda com marcas de luxo. Mas nas ruas que lhe são perpendiculares, basta andar 200 metros para se mudar de mundo, recuar no tempo, e constatar que o país é pobre.
Ainda assim, enchem o olho enormes construções modernas, com estruturas em vidro e aço, erguidas junto ao rio. Edifícios públicos, uma ponte pedonal e um palácio de vidro (ainda em fase de acabamento) que pretende ser uma galeria de arte e a ópera, são, só por si, monumentos de interesse, a par das inúmeras igrejas ortodoxas e das ruínas das muralhas do antigo castelo.
Um passeio de teleférico permite uma panorâmica interessante sobre a cidade. Numa parte da cidade junto ao rio avistam-se umas curiosas “casas colgadas”, como as da cidade espanhola de Cuenca, em que a rocha se confunde com as casas penduradas sobre a água.
Na Geórgia a segunda língua não é o inglês, mas sim o russo. Até entre os mais jovens é difícil encontrar quem fale inglês, pelo que a comunicação não é fácil.
Embora não sendo um destino muito turístico, o país tem oferta hoteleira que baste e suficientemente heterogénea para satisfazer todas as bolsas. Há desde guest houses e pequenos hotéis até às grandes cadeias internacionais. Estas últimas, com predomínio em Tblissi e Batumi acolhem milionários da vizinha Rússia (um segmento de mercado importante) e de outros países do Cáucaso. No segmento médio, os hotéis de três e quatro estrelas são explorados por empresas locais, notando-se a ausência das marcas internacionais.
Dentro das cidades o táxi é uma forma barata de se deslocar e até para fazer percursos maiores, desde que se combine o preço previamente.
Os cidadãos portugueses não precisam de visto para entrar no país.

O comboio deprimente

O comboio de Borjomi para Tblissi é indiscritível. As primeiras duas de viagem são feitas à vertiginosa velocidade de …20 Km/hora. Duas horas de solavancos monótonos, no meio da neve e das árvores, ao lado de um rio caudeloso.
Apesar do aspecto exterior desta automotora eléctrica não ser mau de todo, o seu interior revela-se uma autêntica carroça. A única coisa que as carruagens têm de bom é que são muito espaçosas, com um corredor central muito largo. Há dois assentos de cada lado, que em tempos terão sido confortáveis. O aspecto geral é desolador. Deprimente, mesmo. As portas não fecham. As casas de banho são sujíssimas e impraticáveis.
À saída de Borjomi, às 16h40, os últimos raios de sol a cintilar na neve ainda davam algum glamour ao retrato: um comboio parado na estação central de uma cidade termal, iluminado de dourado, à beira de um rio. Mas a claridade durou pouco. Em breve uma neblina tratou de pôr mais lúgrube todo o ambiente, não obstante o comboio circular à beira de um rio rodeado de bosques. Pele meio algumas instalações industriais a tornar a paisagem mais feia. E povoações tristes, de casebres e casas de madeira de onde saía fumo pelas chaminés. Nesses locais a neve não era tão branca e confundia-se com a lama e o gelo sujo nas bermas das ruas não alcatroadas. O país é pobre. Ponto. Um retrato de Portugal de há 40 anos.
O passo de caracol dura até Khashuri, um entroncamento ferroviário, onde passa a linha principal que atravessa o país. É a partir desta estação, e já na vida dupla, que a automotora adquire velocidade e, embora continue a parar muitas vezes, circula seguramente a mais de 120 Km/hora.
O revisor não está fardado e faz-se acompanhar de um par de polícias na única volta que o vi dar pelo comboio. O bilhete é vendido a bordo numas máquinas electrónicas que são o único símbolo de modernidade existente em cada carruagem. Introduz-se uma moeda de um Lari e sai um bilhetinho. Uma viagem de quatro horas de comboio custa 45 cêntimos. E ao que parece é esse o preço único, seja qual for o destino. Simples e prático.
Os caminhos-de-ferro da Geórgia mantêm ainda a herança do regime comunista. São praticamente gratuitos, na expectativa de que a mobilidade é um dever que deve ser assegurado pelo Estado. Mas funcionam mal. Não há informação e há muito poucos comboios de passageiros.
A mobilidade no país está assegurada pelos mini-bus, que se concentram nas estações de autocarros. A regra consiste em saber de onde saem e aparecer no local. Quando estiverem cheios, partem. Depois o melhor é confiar em Deus ou na lei das probabilidades e esperar chegar vivo ao destino. A forma como se conduz na Geórgia é assustadora – até mesmo para o padrão português – para mais num país montanhoso e com estradas que por vezes estão geladas.
Curiosamente, não existem autocarros normais com carreiras regulares.
Dentro do comboio os dois polícias que (supostamente) patrulham a composição acabaram por abancar nesta carruagem. Um dorme e o outro joga no tablet. Em Khashuri houve um autêntico assalto ao comboio e ficou tudo cheio. Não sobram lugares, mas também ainda não vai ninguém de pé.
As pessoas vestem pobremente, o que dá um ar mais miserável ao interior do comboio. Só os mais jovens destoam, com alguma roupa mais moderna. Mas o que faz a diferença, o que faz com que esta viagem não seja exactamente uma réplica de uma viagem de há 30 anos, do período da URSS, são os telemóveis. Não são propriamente de última geração, mas têm internet e os mais novos até se divertem no facebook. E os georgeanos parecem ter uma especial apetência para toques pirosos nos telemóveis.
E pronto. Não há muito mais a dizer sobre esta viagem, excepto que agora, devido à maior velocidade, somos fustigados pelo vento gélido que entra  pelas frechas da janela. O aquecimento é deficiente, a temperatura lá fora é negativa, mas a carruagem logo atrás peca por excesso de aquecimento e parece um forno.
Não é uma viagem perfeita. Mas infinitamente melhor do que os mini-autocarros a fazerem ultrapassagens nas curvas com o piso gelado.

 

Texto e fotos
Carlos Cipriano
cc@gazetadascaldas.pt

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