Nas terras do Douro, o sol nos meses da canícula escalda impiedoso durante o dia, para na calma da noite libertar o calor acumulado sobre os socalcos de xisto ajardinados da vinha, envolvendo o fruto das videiras retorcidas e enraizadas ao cordão umbilical da terra árida, mas generosa, graduando com paciência os açucares dos cachos, dando-lhes textura e líquidos que mais tarde se vão transformar em grandes vinhos generosos ou de mesa.
Manhã cedo, ao romper do dia, homens e mulheres embrenham-se entre cepas e parras, espalhando-se de balde e tesoura nas mãos gretadas de tanto cortar, colhendo os cachos gordos e suculentos com aromas frutados, oferta das videiras como paga pelo carinho e mil cuidados com que foram tratados durante os meses de invernia, na esperança de boas colheitas.
A vindima é um período esperado com alegria apesar de duro e cansativo. Para muitos é a certeza de umas semanas de trabalho e do aforrar de dinheiro que mais à frente, no inverno, quando não há que fazer no campo, este vai fazer falta. Na vinha, contam-se histórias, conversa-se sobre os parentes distantes e as notícias da terra, há contos de mal dizer, canta-se e namorisca-se, nas paragens para a bucha e o almoço. Tudo para passar o tempo e aliviar o esforço. Faça sol ou chuva as uvas têm que ser cortadas na hora certa para arrecadar todas as caraterísticas de cada cepa, com nomes estrangeiros a denunciarem as origens longínquas, ou outras, bem portuguesas, cruzadas em incontáveis anos de experiências na procura dos melhores vinhos. Do amadurecimento perfeito de cada cacho depende todo um processo de múltiplas etapas passado de geração em geração, perseguido pelos receios dos males da vinha e dos inconstantes humores da meteorologia.
Já no lagar, o mosto meloso e espesso sai aos jorrões das bicas dos tanques. Hoje o método é mecanizado com a utilização do robot pisador poupando canseiras que no passado tinham lugar à noite depois de dias extenuantes na vinha, a cortar cachos ou a carregar os volumosos cestos encosta acima, trabalho de bestas e não de homens! As quintas com vinhos mais reputados e linhagens a defender não abdicam do “corte do lagar a pé humano” em lagaradas de 10 homens que duram cerca de 3 horas com a pisa a ter lugar ao ritmo de um mandador mas sem a dureza de outros tempos. Aqui o que se pretende é espremer e não esmagar criando interação entre o vinho e as massas e com o calor emanado dos pés aquecer o mosto, de forma a extrair o seu corpo e cor “a alma do Douro”, tarefa que nenhuma máquina consegue substituir.
As lagaradas eternizadas em verso ou arrebatados textos de dignos autores, escondiam dias de trabalho desumano puxando pela resistência dos vindimadores ao limite durante o dia a toque de tambor encosta acima, encosta abaixo, esmagados pelo peso dos cestos carregados de uvas e banhados de suor que só era doce porque se confundia com o gosto açucarado das uvas a libertarem sucos peganhentos.
Tudo para à noite, depois da parca ceia, embalados por cantares para manter o ritmo, agarrados uns aos outros, ombro a ombro num incentivo comum, esquecer as amarguras de uma atividade descrita no nosso folclore de alegre e como uma epopeia se tratasse, agarrado à odisseia do Vinho do Porto, ignorando o que alguns, poucos, se atreveram a classificar de desumano. Assim era no antigamente a vida dos vindimadores do Douro, os do vale e os outros aos milhares que vinham de fora, de longe, até da Galiza e que a tudo se sujeitavam na procura de um soldo, mesmo que magro.
A mecanização surgiu não por impulsos reformistas ou visionários, mas pela falta de mão-de-obra abundante e barata para cumprir as tarefas que já ninguém queria fazer. Em meados do século passado todos os que puderam abalaram do vale que os viu nascer, para fugir à fome e ao trabalho árduo e mal pago, como o pai do autor das fotos – que nos anos sessenta do século passado como tantos outros foi a salto para França, na esperança de melhores dias e um futuro para a família.
Acácio Abrunhosa não resistiu ao chamamento das origens e passados vinte e dois anos regressou a Muxagata para tratar das cepas da Quinta da Touriga Chã, ofício de uma vida já com 68 anos, ao qual se dedica com alma e coração, agora com a ajuda indispensável de um moderno tractor, cuidando da vinha como de um filho. Todos os dias, das sete da manhã às quatro da tarde, com direito a uma visita especial nas tardes domingueiras com a esposa D. Alice, com quem partilha as preocupações do dia a dia, dá uma olhadela mais cuidada aos seus rebentos.
O mosto, depois de fermentado e estagiado, passa para cubas após um processo de manipulação de muitas voltas e saberes. Decidido o seu destino de acordo com as suas qualidades, entra no merecido descanso de envelhecimento em cascos de madeira, onde irá permanecer para se deixar embeber em aromas do carvalho. Selecionado, ganha nomes apelativos aos paladares mais conhecedores e bolsas mais recheadas.
Finalmente engarrafado, entra noutro circuito de mil voltas e interesses, até chegar por fim aos apreciadores que lhe analisam o ano, a cor, textura, aromas a bagas selvagens e tantos outros enigmáticos e intrigantes sabores, discutindo com conhecimento e parcimónia a melhor temperatura para ser servido, se deve ou não ser decantado, elogiando a sua origem, as condições micro climáticas da quinta que lhe deu o nome, mas sem uma palavra para aqueles que o arrancaram com o seu suor e determinação às garras da terra.
A saga dos vinhos do Douro conta-se por ciclos de grande riqueza e ostentação e períodos de desespero e miséria. Ninguém esquece os tempos malditos da filoxera, praga que atacou traiçoeira nos idos do último quartel do século XIX, arruinando produtores e trazendo consigo a fome e dificuldades acrescidas aos mais desprotegidos. Nos tempos que correm, as novas gerações continuam com arrojo a apostar o seu futuro no vinho, com investimentos sem procedentes na vinha e nas adegas em novas tecnologias e na interminável procura alquímica pelos melhores vinhos numa competição saudável mas implacável, em que só se destacam verdadeiramente os melhores.
Nas últimas décadas os vinhos de consumo têm conquistado apreciadores e notoriedade crescente, seguindo o exemplo de Fernando Nicolau de Almeida que em 1952 realizou o impossível, quebrando todas as regras estabelecidas na produção de vinhos no Douro, criando o seu Barca Velha que muitos classificam como um dos melhores vinhos de mesa português, desbravando caminho e inspirando gerações de enólogos que ainda hoje se inspiram na sua visão e pioneirismo.
Os vinhos de mesa do Douro ocuparam muito do espaço de produção do tradicional Vinho do Porto e com a sua crescente qualidade souberam conquistar em poucos anos uma assinalável quota de mercado graças às suas caraterísticas ímpares, estando entre os melhores do mundo, com isso alavancando a economia do vale e distribuindo bem-estar e riqueza.
Texto: Carlos Ribeiro
Fotos: Jaime António






























