Portugal já acolheu mais de 700 refugiados que foram distribuídos por todo o país, apoiados por várias instituições. A região Oeste não foi excepção. Gazeta das Caldas conta-lhe três histórias de quem deixou tudo para trás e está a encontrar uma nova vida nas Caldas da Rainha e em Alfeizerão.
A jornada de 6000 quilómetros de Daud Al Anazy

A vida de Daud Al Anazy corria sem sobressaltos até 2014, altura em que os radicais do Daesh tomaram Mosul (Iraque) e dela fizeram a capital do autoproclamado Estado Islâmico. O mais novo de nove filhos de um talhante é um jovem empreendedor e tinha, aos 23 anos, um táxi e um café, que era um ponto muito activo na vida da cidade, frequentado sobretudo por polícias amigos dos irmãos mais velhos.
Como se recusou a dar a morada dos clientes e a colaborar com os elementos do Daesh, Daud Al Anazy foi preso com as acusações de ser fumador e de se vestir à ocidental e condenado a levar 80 chicotadas. Não se lembra de quantas levou, sabe apenas que ficou vários dias inconsciente, sem pele nas costas e com o corpo dilacerado. A seguir a esta prisão, vieram mais três detenções, sempre com a mesma acusação: de ser um herege e fumador. Por isso foi o próprio pai que lhe pediu para deixar o país pois não queria chorar a sua morte.
O jovem iraquiano abandonou Mosul em inícios de Outubro de 2014 e acabaria por chegar a Lisboa a 17 de Dezembro de 2015, seguindo depois para Alfeizerão, onde ainda permanece.
Pelo meio há uma história de coragem que já está documentada em livro. “De Mosul a Alfeizerão – Em 6000 palavras”, intitula a obra que foi escrita por Daud Al Anazy e Helena Lopes Franco (professora que no último ano lhe tem ensinado português) e cujos lucros revertem integralmente para ajudar o jovem iraquiano a refazer a sua vida.
A fuga do Iraque para a Síria foi comprada por mil dólares (cerca de 900 euros) e durou nove horas, dentro de um camião cisterna de transporte de petróleo, juntamente com dezenas de homens, mulheres e crianças. Consigo levava apenas a roupa que trazia no corpo, dinheiro, telemóvel e o passaporte. “Não levava qualquer saco para ninguém perceber que me ía embora”, contou o jovem aquando da apresentação do seu livro, no CCC, no passado dia 14 de Outubro.
Daud Al Anazy revela também no seu livro a dureza da fuga dentro da cisterna, com os refugiados “sentados tão juntos quanto era possível” e recorda a “mais desamparada solidão, a indescritível falta de humanidade que se viveu dentro daquele inferno sobre rodas e o silêncio, sem ouvir sequer o choro de uma criança”.
Da Síria caminhou dois dias até à fronteira com a Turquia, que atravessou a fugir das balas. Depois de 10 dias na Turquia, pagou 1.700 dólares ao dono de um barco que o levaria até à ilha de Lesbos, na Grécia.
O calendário marcava 28 de Outubro de 2015 e, num barco de oito metros e dois andares apinhavam-se mais de 300 pessoas. Ao fim de meia hora afunda-se no mar Egeu e Daud Al Anazy consegue salvar-se graças às suas capacidades de natação (adquiridas no rio com amigos) e a um colete de 10 dólares que tinha comprado na Turquia. Esperaria quatro horas para ser resgatado e foi o último a ser puxado pelo helicóptero da guarda costeira grega. No mar ficou tudo o que tinha.
Um campo de refugiados na Grécia foi a sua casa durante um mês e meio, até que rumou para Portugal, no primeiro contingente de refugiados, a 17 de Dezembro do ano passado. Daud Al Anazy veio depois para a Misericórdia de Alfeizerão, juntamente com mais quatro refugiados.
Uma semana depois de chegarem começaram a aprender português. A proprietária da Casa do Pão de Ló, Helena Lopes Franco, voluntaria-se para ensinar os jovens, que passam a ter aulas uma hora por dia naquele estabelecimento comercial. Daud Al Anazy só falava árabe e de Portugal conhecia os jogadores Cristiano Ronaldo e Pepe. “Normalmente associava o nome de Portugal a laranja, que em árabe tem um nome idêntico”, recorda o jovem.
E, porque já tinha experiência de trabalhar num café, o jovem iraquiano acabou por também conseguir trabalho como empregado de mesa na Casa do Pão de Ló. Todas as suas colegas são mulheres e mais velhas, que “trata carinhosamente por tias e avós”, contou Helena Lopes Franco, proprietária do estabelecimento.
A família sabe que o jovem está em Portugal, mas o contacto agora é muito difícil porque, devido à guerra, as ligações têm sido cortadas.
Daud Al Anazy está também a tirar a carta de condução e não esconde que no futuro gostaria de voltar a ser taxista, mas agora em Portugal.
O casal que fugiu da Síria e está a viver nas Caldas

Um casal sírio, com uma bebé de pouco mais de um ano, chegou a Portugal a 28 de Setembro. Acolhida pela Fundação João XXIII, de Ribamar da Lourinhã, a família, oriunda de Damasco, está a morar nas Caldas, numa casa arrendada pela fundação e mobilada pelos seus voluntários.
Contudo, como a casa que os iria acolher ainda não estava completamente pronta quando chegaram, a família foi para S. Martinho do Porto para uma casa de amigos, e os voluntários iam lá diariamente para os ajudar na integração e também para levar a refugiada síria às sessões diárias de fisioterapia. Os traumas da guerra ainda estão muito presentes e a família não fala sobre o assunto, pelo que os voluntários ainda não sabem muitos dos pormenores sobre o percurso destes refugiados. Sabem que o casal fugiu da Síria há três anos e passou pelo Líbano, onde casou em 2014. A filha já nasceu na Turquia, em 2015, e chegaram à Grécia a 8 de Março deste ano.
O casal está a aprender português com uma professora voluntária e o objectivo da fundação que os acolheu é de que eles se possam integrar na comunidade. O homem era chef de cozinha e tinha uma loja de produtos naturais e a mulher era massagista e cabeleireira. O refugiado gostaria agora de continuar o seu percurso profissional na região.
O eritreu que não quis ser escravo de guerra

João (nome fictício), eritreu de 32 anos, chegou a Portugal, juntamente com outros dois jovens, a 18 de Março de 2016, oriundos de um campo de refugiados em Itália. Mas, a fuga pela liberdade destes três refugiados conta já com mais de uma dezena de anos. A Eritreia é um país situado na costa oriental africana, perto do Chifre de África, com o Mar Vermelho a separá-lo da Península Arábica. Faz fronteira com o Sudão, a Etiópia e o Djibuti e vive num regime ditatorial.
Há milhares de pessoas presas sem acusação formal e os jovens são obrigados a prestar serviço militar por tempo ilimitado, em condições miseráveis, ou então têm que fugir do país. Foi o caso de João, que abandonou a Eritreia ainda em pequeno, juntamente com a sua família, e foi para o Sudão. Mas este país também não os acolheu plenamente porque o sistema legal também não lhes dava confiança. Os imigrantes e refugiados têm poucos direitos e não havia trabalho.
A família de João, composta pelo pai (alfaiate), as suas duas mulheres (a religião muçulmana permite a poligamia) e os nove filhos, continuam no Sudão, exilados, mas João deixou-os, na noite de 24 de Dezembro de 2014 rumo à Europa. Partiu para a Líbia, de carro, durante quatro dias e juntamente com mais 15 pessoas, depois de ter pago 1000 euros pela viagem. Consigo levava apenas água e bolachas e a roupa que trazia vestida.
Esteve naquele país durante um ano e, durante esse período, esteve preso durante três meses. Ainda hoje não sabe o motivo pelo qual foi parar à cadeia, mas desconfia que terão sido elementos do Daesh que o detiveram. Chegaram a sua casa, com armas, e levaram-no para a prisão onde foi torturado. O jovem, actualmente com 32 anos, acabou por conseguir fugir da prisão, aproveitando uma oportunidade e escapando por uma janela. Daí foi para uma mesquita onde lhe deram abrigo e amigos levaram-no ao médico para lhe tratar das mazelas que tinha no corpo.
Tentou depois ir para Itália, país onde apenas conseguiu chegar à segunda tentativa, a 4 de Dezembro de 2015. Da primeira vez o barco foi atacado, junto à costa e muitos dos seus companheiros acabaram por morrer, mas o jovem conseguiu fugir. Na segunda viagem acabaria por chegar a Itália, juntamente com mais 114 pessoas. Para embarcar, o jovem eritreu teve que pagar 1400 euros (nas duas tentativas).
No campo de refugiados em Itália foi-lhe dada a possibilidade de ali continuar ou ir para Portugal, tendo preferido vir para este país. De Portugal o jovem conhecia apenas a música, que chegou a ouvir no Sudão (e que não entendeu).
Chegou a Lisboa a 18 de Março, juntamente com mais dois refugiados eritreus do campo italiano, e foram recebidos por uma equipa de apoio psicossocial da Cruz Vermelha e responsáveis do Centro Humanitário Litoral Oeste Norte da Cruz Vermelha (CHLON), que os instalaria nas Caldas alguns dias depois.
Logo após a chegada telefonaram à família a informar que estavam bem, receberam apoio médico, assim como os esclarecimentos relativamente ao programa de acolhimento de refugiados realizados por esta instituição humanitária.
Entretanto, o CHLON já tinha arrendado uma casa nas Caldas para os receber. Uma tarefa que não foi nada fácil, recorda Susana Nogueira, dando conta das recusas que tiveram quando informavam os proprietários de que a casa seria para alojar refugiados. Além de completamente equipada com a ajuda de várias instituições locais, a residência tinha também à espera dos novos inquilinos um kit individual de higiene, roupa e alimentação para uma semana. “A primeira orientação que nos deram da sede foi a de que iriam chegar muito cansados e que deveriam estar dois ou três dias sozinhos para se ambientar”, recorda Susana Nogueira.
Colocava-se agora o problema da comunicação. O grupo caldense não fala árabe, mas contava com o tradutor disponibilizado pelo programa, através de contacto telefónico, e com a vantagem de um dos jovens falar um pouco de inglês. Começaram por ter aulas de português com Filipe Cardoso (deste centro humanitário) e acabaram por criar uma linguagem própria, que mistura o árabe com o inglês e o português, e que funciona de forma bastante eficaz.
A comunidade caldense também tem ajudado estes jovens. Por exemplo, uma clínica dentária das Caldas (a GSD Dental Clinics) está-lhes a fazer tratamento, a título gratuito. Foram-lhes proporcionadas aulas de surf e de pintura e cuidam do talhão da Cruz Vermelha nas Hortas Urbanas.
Neste momento os três jovens já se encontram a trabalhar nas Caldas da Rainha e continuam a ajudar, como voluntários, na distribuição de alimentos que o centro humanitário faz pelas famílias carenciadas.
“Quero continuar a viver nas Caldas”
“Gosto muito de Portugal, é muito bonito”, disse o jovem refugiado João à Gazeta das Caldas, destacando a praia, o parque D. Carlos I, assim como a Nazaré e Lisboa, que já visitou por várias vezes. Por outro lado, não gosta que as “pessoas falem das outras nas costas”, acrescentou.
Entre as principais diferenças que encontrou na cultura ocidental, João destaca o facto dos homens irem às cabeleireiras. É que no seu país são os homens que cortam os cabelos aos homens. Também o facto das mulheres usarem calças no dia a dia ou não usarem lenços a cobrir a cabeça, são aspectos com os quais teve que se habituar.
Contudo, é a liberdade que os portugueses vivem que mais lhe chama a atenção. “No Sudão não há essa liberdade, lá a obrigação e os olhos da sociedade são muito postos nas coisas e há uma pressão muito grande”, disse.
O jovem eritreu quer continuar a viver e trabalhar nas Caldas, mas pretende também conhecer outros países, como a Espanha porque ouve dizer “que é bonita”.
O programa de Acolhimento de Refugiados da Cruz Vermelha Portuguesa tem uma duração de 18 meses. Estes jovens ainda terão apoio por mais 10 meses e o CHLON continua a orientá-los no sentido de terem recursos para se manterem quando o programa acabar. Importante é também a sua protecção, pois apesar de estarem em Portugal, é necessário resguardar-lhes a identidade. Os jovens não tiram fotografias nem colocam os seus nomes verdadeiros nas redes sociais (onde comunicam com família e amigos) por medo de virem a sofrer represálias por parte do governo da Eritreia que persegue os desertores.
A Cruz Vermelha recebeu o primeiro grupo de cinco refugiados em Dezembro de 2015. Em Setembro deste ano já tinham 60 refugiados localizados entre 15 estruturas locais da Cruz Vermelha, entre elas a das Caldas da Rainha.
Cerca de 63% dos refugiados acolhidos por esta instituição humanitária vêm da Eritreia, 18% da Síria e 8% do Iraque. Dados da Cruz Vermelha revelam também que 73% dos refugiados são homens e que 14% são mulheres. Cerca de 85% tem idade inferior a 35 anos e 78% viaja isoladamente. Dos que chegaram a Portugal 76% vieram de Itália e 24% da Grécia.
Apenas 10% dos refugiados acolhidos pela Cruz Vermelha se encontra a trabalhar.
Este programa prevê o alojamento, alimentação, fornecimento de bens de primeira necessidade, aulas de português, dinheiro (no caso de indivíduos sozinhos é de 150 euros por mês), acesso à saúde, ajuda no acesso à educação, ajuda no acesso à Segurança Social e inscrição no Centro de Emprego.
































