Um caldense no novo Museu Nacional da Música

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A criação de uma réplica da Harpanetta, para ser tocada pelos visitantes, foi o último dos trabalhos

Orlando Trindade foi responsável por restaurar perto de 60 instrumentos e integra o Conselho Consultivo do museu que abre sábado, em Mafra

Entre a madeira, as tintas e as resinas que nos invadem a vista, mas também o olfacto, numa oficina a lembrar um canto de alquimista nos Mosteiros (na freguesia dos Vidais), encontramos Orlando Trindade. O caldense está a colocar os pinos de afinação numa Harpanetta, este estranho instrumento com 52 cordas, que tem, no entanto, semelhanças com a caixa de ressonância dos pianos. Trata-se de um dos instrumentos que estará no Museu Nacional da Música, em Mafra, na Ala Norte do Palácio, para ser tocado pelo público, proporcionando uma experiência mais interativa aos visitantes da nova unidade que abre este sábado e que durante novembro tem visitas gratuitas.

A ideia de recriar a Harpanetta para ser tocada deu-se depois de descobrir um exemplar original na coleção do museu. Trata-se de um instrumento de 1701 da Alemanha, que esteve “na moda” naquele país, em Viena (Áustria) e Itália nos séculos XVII e XVIII. Seria um instrumento que poderia ser tocado em casa e que permitia tocar reportório de instrumentos de teclas, como cravo ou espineta. Tem cerca de 90 centímetros e “é tocado na vertical, como uma harpa, mas usa cordas em metais e é cromático, porque tem cordas dos dois lados, tem dois tampos, em vez de um fundo, quer dizer que tem todas as notas”. Estes “são muito raros, há muito poucos originais que tenham sobrevivido”. Este, em particular, era um dos que pertencia à coleção de Alfredo Keil, compositor do hino nacional e cuja coleção privada foi uma das que fundou o museu. Foi depois de o restaurar que surgiu a ideia de poder fazer uma réplica para ser tocado pelos visitantes.

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Mas o trabalho deste caldense no Museu Nacional da Música começou muito antes. É que Orlando Trindade foi um dos técnicos responsáveis por recuperar e restaurar os instrumentos deste museu, que esteve cerca de 30 anos na estação de metro do Alto dos Moinhos. No seu caso, durante cerca de um ano, recuperou cerca de 60 instrumentos da família dos cordofones. “Tive o privilégio de ser uma das pessoas que colaborou nesse processo”, frisa.

A relação com o Museu Nacional da Música já vinha de 2010, quando se deslocou à unidade museológica para desenhar alguns instrumentos. Em 2014 foi contactado para fazer o restauro de uma teorba de 1608. Ao longo dos anos seguintes mais trabalhos foram surgindo até esta oportunidade.

A coleção do Museu nasceu por iniciativa de Alfredo Keil e Michel’Angelo Lambertini (este último recolheu instrumentos de edifícios públicos e religiosos para criarem o Museu Instrumental de Lisboa). Tem cerca de 1500 instrumentos, mas apenas serão expostos, para já, mais de 500. Trata-se de uma duplicação face ao Alto dos Moinhos, onde se expunham mais de 200.

A grande maioria foi restaurado no Alto dos Moinhos e transportado para Mafra, onde os visitantes poderão apreciar nove vitrinas.

Com esta mudança “houve a hipótese de voltar a mexer nos instrumentos e fazer pesquisas mais profundas”, pelo que acabou por se descobrir que esta coleção é, afinal, bem mais valiosa. “Descobrimos quase tesouros”, afirma Orlando Trindade, notando que no seu caso, dos cordofones (um dos grupos mais representados) uma das peças que mais gozo lhe deu foi um bandolim genovês do início do século XVIII, que estava nas reservas e agora ficará exposto. “Estava em relativo bom estado para a idade, mas faltavam vários elementos que reconstrui”, sendo um dos instrumentos que ficou tocável. Outro foi uma guitarra portuguesa muito trabalhada.

O novo Museu Nacional da Música, que tem Edward Ayres de Abreu como diretor, resulta de um investimento a rondar os 7 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência, para adaptar também o edifício a este fim. “É um orgulho, um grande privilégio”, admite o caldense, que além destes trabalhos teve a honra de ser convidado para o Conselho Consultivo desta unidade museológica.

Em termos de “conservação e restauro de instrumentos antigos, que me interessa muito, terá sido o trabalho mais importante que se podia fazer em Portugal”, conta, salientando a sua felicidade.

O novo museu fica localizado na zona que outrora serviu de aposento a D. João V e que durante anos recebeu militares do Exército, saíndo de uma estação de metro, onde estiveram durante cerca de 30 anos, o que “não foi o ideal”. Os instrumentos tinham “vários problemas”, a começar na fuligem que os cobria. Todos, mas principalmente os que estavam em exposição, apresentavam “uma película de fuligem de um pó negro muito fino” que deverá ser proveniente dos carris do metro que passava abaixo e do fumo dos carros que circulavam por cima. “Parecia quase uma patine antiga, mas quando começámos a intervenção de limpeza é que se percebeu que estavam mesmo muito sujos, a aparecer as cores originais, a transparência dos vernizes e essa foi uma grande surpresa e uma coisa muito impressionante”. Um deles é um piano do século XIX que parecia negro, mas afinal tinha uma cor verde com decorações orientais. “No geral estavam em mau estado, havia muitos problemas em muitos instrumentos”, refere, explicando que no seu caso lidou com “elementos descolados, rachas e outros que estavam muito frágeis” e que “foi possível estabilizar de forma a que não se estraguem mais e, muitos deles, a ficarem tocáveis”. É caso para dizer: Siga a música!

Orlando Trindade a trabalhar na recuperação dos instrumentos, no Museu Nacional da Música
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