- 78 ANOS
- CASADO, SEM FILHOSDurante 31 anos o Parque Rainha D. Leonor foi o meu local de trabalho. Se me perguntarem qual era a minha profissão, digo que fui jardineiro, o que é a mais pura das verdades. Mas também fui guardador de cabras, servente de pedreiro, oleiro, aprendiz de sapateiro, tudo actividades que desempenhei em criança quando tinha idade para andar na escola e não andava. E mesmo mais tarde, aqui no parque, também fui moço de recados, contínuo, guarda dos barcos, carroceiro e até porteiro do Casino. Uma vida inteira ligada a este complexo que é o Hospital Termal, o Parque, o antigo casino e até ao velho Hospital de Santo Isidoro.
Aliás, foi no Santo Isidoro (onde hoje funcionam os serviços sociais da ESAD) que eu nasci, no dia 18 de Fevereiro de 1938. Os meus pais nunca me matricularam na escola e eu também não estava para aí voltado. Comecei a trabalhar cedo. Guardei cabras era ainda pequeno, dei serventia a pedreiro e até fui aprendiz de sapateiro. E como nas Caldas havia na altura olarias por todo o lado, fui aprendiz de oleiro na olaria do Alcanhões, no Bairro da Ponte, na do João Sono, na Rua 31 de Janeiro e na do Júlio Milá, perto da antiga Praça do Peixe.
Era um miúdo de rua, que procurava sustento e aproveitava os biscates. Um dia, um vizinho meu, o senhor que era sargento no Exército, teve pena de mim e pôs-me numa escola particular, de duas senhoras já velhas que eram as irmãs Dimas. Mas eu não dava para aquilo e ele deixou de pagar a escola e lá voltei eu para servente de pedreiro.
Em 1951, tinha eu 13 anos, apanhei uma pleuresia e fui internado no Hospital de Santo Isidoro. Já não davam nada por mim, mas o Dr. Costa e Silva, que era um grande médico, é que me curou. Seis meses depois tive alta.
Mas foi o facto de ter estado internado que deu um rumo à minha vida. O director do Centro Hospitalar Rainha D. Leonor (composto pelos hospitais de Santo Isidoro e Termal) era o Dr. Hipólito, um bom homem, que se apiedou de mim e acabou por me dar trabalho como contínuo na secretaria do Hospital Termal. Ele conhecia os meus pais porque também eles trabalhavam para o Centro Hospitalar.NOS BARCOS DO LAGO
Em 1955 entrei assim para a função pública num contrato que era de três meses, mas que mais tarde se tornaria definitivo. Tive sorte porque passei toda a vida a trabalhar ao ar livre, sem estar amarrado a uma secretária ou a uma máquina numa fábrica. Como contínuo só fiquei três meses porque eu não sabia ler nem escrever e não podia continuar naquele posto. Por isso, depois de uma passagem pela carpintaria do Hospital Termal, fui mandado para o parque onde fiquei a tomar conta dos barcos do lago. Havia uma senhora, a D. Adelaide, que cobrava os bilhetes e eu tomava nota das horas e controlava os tempos.
Acabei por ficar a trabalhar no parque. No Inverno só havia trabalho 15 dias por mês e eu só ganhava meio ordenado, mas no Verão trabalhava-se todos os dias: das 10h00 às 13h00, das 15h00 às 20h00 e das 21h00 à meia-noite. Sim, porque os barcos no lago trabalhavam até de noite. O meu horário era de oito horas por dia e supunha-se que as três horas à noite eram extraordinárias. Mas quando fui para as receber havia um tipo chamado Alves – que até diziam que era informador da Pide e que graças a Deus e ao 25 de Abril se pôs a andar para o Brasil! – que não só não me pagava essas horas, como me ameaçou que me punha na rua se eu as exigisse. Nunca as recebi.
Mesmo assim eu ganhava 800 escudos (4 euros) por mês, o que era uma fortuna para mim que antes andava a ganhar aos dez tostões por dia nos biscates. E gostava muito de trabalhar no parque. Havia aqui grandes festas: peças de teatro, concertos com orquestras, ópera. Uma vez, num teatro, houve um rapaz que era actor e adoeceu e pediram-me para o substituir. Só tinha de dar um grito por detrás das cortinas do palco. Pagaram-me 50 escudos (25 cêntimos).
Estive nos barcos do lago durante quase dez anos, mas depois passei a ser carroceiro. Durante oito anos fui o “motorista” da carroça da fotografia. Aquela carroça fazia de tudo: ia à Praça da Fruta para fazer compras, acartava estrume para os jardins, trazia roupa do Hospital de Santo Isidoro para a lavandaria do Hospital Termal, ia à estação de caminhos-de-ferro buscar encomendas, transportava lenha para os fogões da cozinha do hospital e até fazia de ambulância a transportar doentes do Santo Isidoro para o Montepio para irem fazer exames.
Foi por esta altura que conhecei a Maria Zulmira, com quem casei em 1959. O namoro começou nos bailes do Santo António, no Bairro da Ponte, organizados pelos Pimpões, que tinham fogueiras para a gente saltar.
Em 1963, tinha eu 25 anos, voltei a mudar de actividade. Mas sempre dentro do parque. Depois dos barcos e da carroça, fui para os courts de ténis. Era eu o guarda daquilo, recebia o dinheiro do alugueres, fazia as marcações, tratava da limpeza. Mas também fazia manutenção nos jardins do parque. Cortava a relva com um gadanho porque na altura não havia máquinas.
Estive no ténis até 1972 quando mudei novamente de actividade dentro do parque. Desta vez fui para jardineiro, profissão que mantive até à reforma, em 1987. Sim, reformei-me cedo, com apenas 49 anos, mas também comecei a trabalhar muito cedo.
Orgulho-me de ter sido jardineiro precisamente nos momentos em que o parque viveu os melhores dias. Isto era uma maravilha! Bem cuidado, muito florido, tudo limpinho. Fizemos um roseiral enorme perto da parada, que agora já não existe, e na estufa plantávamos sementes que davam tantas flores que o Centro Hospitalar até as oferecia à Câmara, à polícia, ao RI5, à Misericórdia.
Nesse tempo tínhamos o apoio do professor Caldeira Cabral que era o melhor paisagista do país. Aprendi muito com esse homem.
Eu entretanto até ganhava uns dinheiros extra. Fui porteiro do antigo casino. Havia lá bailes e era a fina flor das Caldas que frequentava aquilo. Eu tinha obrigação de não deixar entrar ninguém sem gravata.
Os tempos foram mudando. Já não havia uma carroça. Compramos uma máquina de cortar relva. Veio para cá o liceu (que esteve na origem na Escola Secundária Raul Proença) e havia por cá muita malta nova. É claro que às vezes havia problemas porque era proibido pisar a relva e aquela rapaziada nem sempre fazia caso.
Mas acho que foi depois de 1974 que isto começou a piorar. De tal maneira que nos últimos anos até se me partia o coração ao ver o estado de abandono do “meu” parque. Agora, desde que a Junta de Freguesia tomou conta disto, acho que está a melhorar. Longe dos velhos tempos, mas pode ser que ainda vá lá.“Foi o Centro Hospitalar que fez de mim um homem”
- publicidade -Posso dizer que foi o Centro Hospitalar que fez de mim um homem. Aprendi muito aqui. E até acabei por deixar de ser analfabeto e tirar a 4ª classe porque contrataram um professor para nos ensinar. Só funcionários aqui do parque éramos dez para aprender a ler e a escrever. Não sei quantos funcionários tem hoje o parque, mas no meu tempo chegámos a ser 25. Claro. Não admira que estivesse tudo tão bem arranjado.
Naquele tempo, depois da jardinagem ainda íamos para a Mata cavar e semear batatas para fornecer as cozinhas do hospital. Era outra época…
Conheci vários administradores e directores. Há nomes que gostaria de recordar: o Dr. Mário Gonçalves, o Dr. Mário de Castro e o Dr. Jorge Varandas.
E também o Dr. Hipólito, claro. Afinal foi ele que me pôs cá. Era um homem com muitas qualidades. Estou a recordar-me de uma história, que hoje em dia até nem dá para acreditar. Em 1957, ainda antes de eu ir tomar conta dos barcos, eu fui também ajudante de enfermeiro e no Hospital de Santo Isidoro os doentes que morriam e não tinha família eram transportados para o cemitério numa carreta, dentro de um esquife e embrulhados num lençol. Éramos quatro homens que traziam a carreta à mão – e aquilo era pesado! – do hospital para o cemitério. Atirávamos o corpo para a cova e trazíamos o lençol para ser lavado.
Um dia, ali onde hoje é a EDP, havia uma taberna e os meus colegas foram beber um tinto enquanto eu fiquei junto à carreta a guardar o cadáver. Nisto passa o Dr. Hipólito que vinha de carro, de Lisboa. Parou e perguntou-me onde estavam os outros. Respondi que tinham ido beber água. É claro que ele não acreditou, mas desabafou: ‘é a última vez que isto acontece!´.
O que é certo é que a partir daí o Santo Isidoro passou a contactar a Casa Funerária Ramos que fazia um caixão barato e passou-se a oferecer um funeral decente aos desgraçados que lá morriam sozinhos.
Quando me reformei achei que ainda era muito novo para ficar sem trabalho e montei uma pequena empresa de jardinagem. Entre 1987 e 2005 nunca me faltou trabalho. Cheguei a ter como clientes em S. Martinho o Rui Machete e o Hernâni Lopes. Trabalhei para a antiga Matel (fábrica de cassettes em S. Cristóvão) e cheguei a fazer jardins em Sobral de Monte Agraço e Santarém.
Hoje já só jardino em casa, onde tenho muitos vasos com flores na minha vivenda. Passo parte do meu tempo no quartel dos bombeiros. Fui um soldado da paz desde os 22 anos e hoje sou bombeiro honorário. Apaguei muitos fogos e tenho muitas histórias, mas isso são outras guerras…
Continuo a gostar muito de vir aqui ao parque. Sinto que não sou só mais um velho a passear por aqui. Sinto que sou diferente. É como se isto fosse um bocadinho meu, como se eu fizesse parte disto. Porque foi aqui que eu vivi os melhores anos da minha vida.


































bons tempos so nao havia liberdade de espressao mas eu como nada de politica prcebo nunca tive problemas com a policia fui sempre uma pessoa sem problema a pesar de passar fome . enfim historias que e bom recurdar