Sendo a ordem de Cister baseada na oração e trabalho, os locais onde se instalavam as suas abadias tinham de ser isolados, para ter silêncio, e tinham de garantir a auto-suficiência aos monges a fim de permitir o isolamento. Por outro lado, tinha de haver pedra nas proximidades para se construir o mosteiro e, naturalmente, o precioso líquido que não poderia faltar.
A água era um dos elementos fundamentais na escolha do local, porque era ela que poderia garantir a auto-suficiência (matava a sede, regava os campos e era força “industrial”).
A zona onde foi instalado o mosteiro de Alcobaça era uma floresta, com água em abundância (foi construída na confluência dos rios Alcoa e Baça). Isto levou a que tivessem de colocar o edifício (à imagem dos outras abadias cistercienses) sobre uma plataforma artificial, para ficar acima do nível da água. Da próxima vez que for a Alcobaça, recorde-se de notar nisso.
Um canal de água potável…
Como na altura não havia bombagem, a captação de água tinha de estar sempre numa quota superior, porque era movida por força gravítica.
O mosteiro tem dois subsistemas complementares, mas independentes e autónomos: um de águas potáveis e outro de águas para uso doméstico. Construídos de forma diferente, com caudais distintos, chegam ao mosteiro quase lado a lado.
O abastecimento da água potável era feito através de uma caleira fechada. Neste caso, procuraram encontrar um local que pudesse provir o mosteiro de água durante largos anos e com um caudal constante que satisfizesse as necessidades. Escolheram a Chiqueda a cerca 3,5 quilómetros do mosteiro e, pasme-se, 800 anos depois, no tanque dos frades, continua a nascer água com abundância. De tal forma que, no século XX, quando Alcobaça teve água canalizada, foi daquela nascente que saíram as primeira canalizações modernas, tendo mais tarde sido abertas outras captações próximas daquela para satisfazer o aumento do consumo.
Mas na Idade Média trazer a água a esta distância implicava enormes desafios de arquitectura. O conhecimento da inclinação certa para a caleira não entupir com os sedimentos, nem ganhar muita velocidade era um deles. Neste caso encontraram uma inclinação de 1,6 metros por cada quilómetro.
A água era transportada em caleiras em pedra, fechadas. Conforme a velocidade que se pretendia, as caleiras eram mais ou menos polidas (de forma a aumentar ou diminuir o atrito) e mudavam-lhe as formas. Por exemplo: havia caleiras em U aberto (para desacelerar o corrimento da água) ou fechado (para o acelerar) ou com uma forma mais poligonal (para travar).
Mas a força da água é destrutiva e os monges sabiam disso. Assim, souberam travar a água através de represas, “escadas”, diques e curvas no traçado do aqueduto. Os aquedutos não têm que ser necessariamente em arcaria. São-no também mesmo quando transportam a água por via subterrânea.
Da nascente a água saía em conduta subterrânea e quando a topografia é mais baixa vinha à superfície, onde seguia num aqueduto em arcaria, que foi destruído em 2007.
Já perto do mosteiro segue em galerias escavadas na rocha, com tecto em laje ou em tijolo com cutelo (400 metros).
Durante o percurso há caixas de queda, que não servem para perder pressão, mas sim como poço de inspecção. Mas de 150 em 150 metros há também caixas de decantação onde ficariam depositados os sedimentos que vinham na água.
Esta conduta entrava pelo lado sul (lateral) da igreja, por um tanque de compensação. Atravessava a igreja até à casa do lavatório (no claustro), que é a estrutura central de divisão e controlo hídrico. A sua distribuição possibilitava que chegasse à cozinha, à zona dos conversos, enfermaria, entre outros. Os excedentes escoavam para o colector das retretes.
Os materiais utilizados nas canalizações e tubagens do circuito interno da água potável são a pedra ou o barro cozido, mas também as há em chumbo. Neste último caso são menos comuns, devido à disponibilidade local, custos de manufactura e duração, para além da sua toxicidade (sim, os monges também já sabiam que o chumbo era menos saudável). O circuito interno está assinalado com letreiros nas paredes (“cano”, “aqua” ou “aquae ductus”).
Este sistema também já tinha “torneiras de segurança”. Ou seja, quando o sistema entupia, uma comporta era fechada e a água saía por outro lado.
As condições de higiene que a abundância da água trazia, foram um dos motivos para que nos mosteiros se registassem muito poucas mortes por epidemias, enquanto que nas cidades morriam centenas de pessoas com peste.
…e um canal de águas sujas
Depois haviam as águas levadas, que eram usadas para fins domésticos. Como o nome indica, esta era água que era levada do rio Alcoa até ao mosteiro. A céu aberto, com margens e fundo de terra, vinha numa vala artificial de 1,5 quilómetros de extensão. Mas tendo em conta que a resistência era muito maior que na pedra, precisava de uma inclinação muito superior: cerca de 3 metros por quilómetro.
O canal de evacuação atravessava toda a ala norte do mosteiro (latrinas e refeitórios) recolhendo e transportando os esgotos para o exterior da cerca. Mas antes de passar pelo mosteiro, sofria uma ramificação que permitia que chegasse água aos campos agrícolas e viveiros piscícolas e permitia accionar moinhos, noras, azenhas, forjas, entre outras actividades destinadas a suprir as necessidades da comunidade.
Resumidamente, este era o sistema hidráulico do mosteiro de Alcobaça. Está hoje destruído e colocar o canal de água potável a correr novamente seria extremamente caro. Mas existe uma luz (ou uma gota) ao fim do túnel, na possibilidade de o mosteiro ter água a correr novamente (que não a da corrente). Trata-se da intenção da Direcção Geral do Património e da Cultura de recuperar área da cerca com recurso a fundos comunitários (Portugal 2020) e de “colocar a água da levada a correr novamente no Claustro do Cardeal”, conforme explicou Ana Pagará, directora do mosteiro de Alcobaça.
Desmistifique-se uma ideia: nos mosteiros há sempre túneis. Mas o seu propósito era a evacuação das águas e não servirem de ponto de encontro entre freiras e padres, ainda que possam ter sido utilizados para isso.
Outras duas ideias que podemos desmistificar: o mosteiro de Alcobaça não é construído sobre estacas e não tem cisterna. No caso das estacas, precisavam de estar sempre mergulhadas em água, para não apodrecerem. A prova é que no mosteiro havia poços de ressumação (poços rotos para baixar o nível das águas). Já quanto às cisternas, estas só existiam quando o caudal não supria as necessidades.
Assim, como disse o professor Virgolino Jorge, que liderou duas visitas públicas ao mosteiro para conhecer o sistema hidráulico (onde estiveram cerca de 70 pessoas), pode dizer-se que “a história monástica cisterciense medieval é também uma história da relação estreita e longa do homem com a água”.































