
76 ANOS
SOLTEIRA
Estas naves fervilhavam de actividade. Centenas de pessoas, veículos, máquinas. A F. A. Caiado era uma das empresas mais importantes das Caldas e orgulho-me de aqui ter trabalhado 22 anos.
No rés-de-chão do edifício onde está hoje o call center alojavam-se dezenas de raparigas da região que aqui viviam e só iam a casa aos fins-de-semana. Depois fez-se um primeiro andar e instalaram aqui os serviços administrativos, onde trabalhei.
Fui nascer a Rio Maior porque a minha mãe tinha um problema de saúde grave e só confiava num médico que lá havia. Não serviu de nada. Nesse dia 13 de Março de 1940 eu vim ao mundo e ela morreu no parto. Semanas depois trouxeram-me para as Caldas, de onde é toda a minha família.
Fui criada pelas minhas três tias que me adoravam e que, a dado momento, também me disputavam chegando até a zangarem-se para ficarem comigo. Andei a saltar de casa em casa, aprendendo cedo a tirar partido do melhor de cada uma. Isso moldou a minha personalidade, aprendi a ser manipuladora como só as crianças sabem, e caprichosa, mas também orgulhosa e muito senhora do meu nariz.
Quando eu tinha 12 anos o meu pai voltou a casar e eu voltei a ter um lar, mas continuei a frequentar as casas das minhas tias. A família Caiado era uma elite nas Caldas da Rainha, proprietária da empresa F. A. Caiado que laborava no Beco das Flores e eu tive uma educação prendada como convinha a uma menina burguesa da década de 40.
Fiz a escola primária numa casa apalaçada que há ali junto à ponte do Bairro da Ponte que pertencia à família Camejo e que alugava umas salas para servirem de escala. Tive como professora a Maria Apolónia, rigorosa e severa, e depois puseram-me a estudar Formação Feminina, que era uma espécie de curso para sopeira encartada. Até tinha de estudar Bordados e Puericultura.
Eu não gostava daquilo. Por isso, com 17 anos fui estudar à noite para o Colégio Ramalho Ortigão a fim de fazer o curso geral dos liceus.
Quando disse à família que queria trabalhar, acharam natural que eu fosse para a empresa do meu tio, Francisco Almeida Caiado, onde também estavam empregados o meu pai e os meus primos. Mas eu entendi que deveria aprender a trabalhar noutro sítio para adquirir curriculum.
O meu tio não achou graça nenhuma à minha decisão, mas eu insisti e, por intermédio da minha tia, consegui uma entrevista com o senhor Alberto Pinto Ribeiro, que era o administrador da Secla. Propositadamente, deixou-me à espera dele numa sala de mostruário durante uma hora. Ao fim desse tempo eu decidi procurá-lo para lhe perguntar se se tinha esquecido de mim. Ele sorriu e deu-me a entender que eu tinha esperado o tempo certo. Perguntou-me o que fizera durante aquele tempo e eu respondi que me entretive a ver as peças expostas na sala e as respectivas referências e preços num catálogo que lá havia. Fiquei.
No mostruário eu era uma espécie de recepcionista-vendedora. Havia sobretudo muitos estrangeiros que iam lá no Verão e era eu que os recebia. Depois, pouco a pouco, passei a colaborar nas tarefas do escritório.
Ganhava 500 escudos por mês, o que, valendo hoje 2,50 euros, era uma pequena fortuna para a época. Havia chefes de família que ganhavam 1000 ou 1500 escudos (5 ou 7,50 euros, respectivamente) e que tinham de alimentar uma casa inteira. Eu, com 17 anos, dispunha de 500 escudos só para gastar para mim e podia dar-me ao luxo de comprar coisas para o meu enxoval que hoje, se calhar, não seria assim tão fácil.
A Secla tinha na altura entre 300 a 400 empregados e vivia um período de expansão. Sentia-se que tinha um impacto importante na vida da cidade e eu gostava de fazer parte daquilo. Trabalhei lá até aos 31 anos e saí porque quis – bati com a porta. A administração já não era a mesma, eu tinha pedido para mudar de serviço, houve lá um desaguisado e eu, que sou muito orgulhosa, pus-me a andar.
Eram onze da manhã. À uma da tarde já tinha um novo emprego!
Eu vinha a subir a rua General Queirós e passa de carro a minha prima Ana Maria, mulher do meu primo Jorge Caiado, que estranhou ver-me ali a meio da manhã. Contei-lhe o que se passou, ela fez um telefonema e no dia seguinte fui secretariar o marido para a F. A. Caiado. Estávamos em 1971 e finalmente eu entrava para a empresa da família.
UMA EMPRESA INOVADORA NAS CALDAS

A firma tinha sido criada em 1929, constituída pelos meus tios Francisco de Almeida Caiado e Casimira Ladeira Caiado, mais conhecida por Mimi. Daí a marca Frami (Francisco e Mimi), que daria o nome aos produtos da empresa.
Iniciou-se como uma unidade de torrefação de café, mas em pouco tempo passou a ter também uma fábrica de bolos, tendo alargado a sua actividade ao comércio por grosso de mercearias e à exploração de uma pastelaria na Praça da Fruta.
O fabrico de bolos implicava a compra de fruta confeitada e é a partir daí que germina no meu tio e nos filhos a ideia de fazer uma fábrica de transformação de produtos alimentares. Havia dinheiro e era preciso investir.
A fábrica que foi inaugurada no Lavradio (Estrada da Tornada) em Setembro de 1967, era uma maravilha para a época e viria a ter uma importância enorme nas Caldas da Rainha. Ancorada na produção de concentrado de tomate, operava também com outros produtores alimentares. Em 1971, quando lá entrei, dava emprego regular a 250 pessoas, mas durante a campanha do tomate chegava às 400. Durante esses meses a fábrica gastava mais água por dia do que a cidade inteira.
A F. A. Caiado tinha terras e plantações de tomates. E alugava ainda mais terras para as quais constituía grupos de seareiros a quem fornecia os materiais agrícolas, os adubos e o apoio técnico para produzirem para a fábrica.
Nos meses de Verão chegavam a dar entrada mais de 70 mil toneladas de tomate e para a exportação as vendas de concentrado de tomate chegavam às 11 mil toneladas anuais, sobretudo para o Japão, Alemanha e Inglaterra. Aquilo eram divisas preciosas que entravam em Portugal, numa altura em que o escudo era baixo face às moedas fortes do estrangeiro.
Para rentabilizar as máquinas existentes, faziam-se pequenas transformações para que estas pudessem também receber e transformar ervilhas, peras e pêssegos. Dali saíam latas de ervilhas e frutas em calda. Depois expandiu-se ainda mais a produção a todo o tipo de frutas e pratos confeccionados.
Uma das encomendas mais importantes para a F. A. Caiado foi a produção de rações de combate para a tropa portuguesa que na altura combatia nas antigas colónias. Os nossos soldados na Guiné, em Angola e em Moçambique comiam no mato, durante as suas missões, os produtos que nós produzíamos nas Caldas da Rainha.
É nesta época de expansão que eu entro na firma em 1971. Na altura o senhor Jorge Caiado estava a criar uma coisa na qual me deu imenso gozo participar – o serviço de aprovisionamento. Tratava-se de centralizar num só serviço a totalidade das compras da empresa, desde as matérias primas ao vasilhame, embalagens, peças, máquinas, ferramentas e material de escritório. Julgo que até ao nível das novas modalidades de gestão a F. A. Caiado era uma empresa inovadora.
O 25 DE ABRIL, O PREC E OS SANEAMENTOS
E veio o 25 de Abril. Foram feitos muitos disparates, tanto da parte dos trabalhadores como da administração. Mas o que é certo é que em Março de 1975 eu fui saneada. É, que para usar a linguagem dos tempos, eu era uma lacaia do Capitalismo! No mês seguinte é toda a administração que é saneada, a fábrica é ocupada e há-de ficar intervencionada, sob tutela do Estado até 1977. Atenção: vivia-se um outro tempo: o PREC (Processo Revolucionário em Curso). Os mais novos hoje terão dificuldade em compreender aquilo.
Durante os dois anos em que estive fora tomei conta de crianças, fazia bolos para fora (sempre gostei de cozinhar) e… meti-me na política! Se tivessem ficado quietos e não me tivessem saneado, nunca me ocorreria meter-me na politica e não lhes tinha dado que fazer. Assim tiveram que me aturar.
Quem? A esquerda. Inscrevi-me no CDS, fui uma militante activa e cheguei a secretária da concelhia. Nunca fui presidente da concelhia. É que eu só sei fazer as coisas bem feitas porque sou vaidosa e gosto de brilhar naquilo que sou boa. Por isso, embora pudesse ter sido presidente do partido aqui nas Caldas, eu nunca aceitei. Fui apenas membro da Assembleia de Freguesia das Caldas da Rainha quando o Eng. Paiva e Sousa ganhou a Câmara ao PSD, candidatando-se pelo CDS.
Em 1977, já com os ânimos políticos mais serenados no país, regressei à F. A. Caiado. Mas dos meus dois primos (Rogério e Jorge Caiado) só o primeiro reassumiu a administração da empresa . O Jorge iniciara-se entretanto numa carreira empresarial de sucesso que ainda hoje perdura.
Aos 37 anos, voltei a ser secretária, desta vez do Eng. Nunes Bandeira. Nos anos 80 esta era uma actividade de muita responsabilidade. As secretárias tinham uma visão global da empresa, conheciam muitos segredos e isso implicava uma postura ética e moral elevada, a par de um desempenho discreto e eficiente do seu trabalho. Faziam a filtragem do correio e dos telefonemas, marcavam reuniões, ajudavam a gerir a agenda do chefe, assistiam a reuniões e faziam actas. Também dactilografavam e expediam o correio. E no meu caso até tinha como função ler o Diário de Notícias e a Gazeta das Caldas para ver que tipo de notícias e anúncios poderiam interessar à empresa.
Em 1977 o parque de máquinas da Frami (como era conhecida a F. A. Caiado) estava muito danificado e as dívidas eram mais do que muitas. Sucederam-se vários contratos de viabilização da empresa, mas todos iam ficando desactualizados. Naquele tempo de inflação elevada as taxas de juro eram de 20% e de 30%.
Mas aos soluços lá se atravessou a década de 80, que acabaria por culminar com um momento de grande pujança. O último.
Nessa altura grassava a guerra civil em Angola e a F. A. Caiado torna-se fornecedora de rações de combate para o exército governamental (MPLA). Foram tempos loucos em que a fábrica trabalhava 24 horas por dia e se andou por aí a recrutar pessoal para dar satisfação às encomendas. Até fomos às escolas pedir aos jovens para vir para cá trabalhar durante as férias. A dado momento até o pessoal dos escritórios ia trabalhar no embalamento para dar vazão ao serviço.
Depois disto foi a decadência. O Dr. Rogério Caiado tinha feito entretanto uma parceria com o grupo Mendes Godinho, que pertencia à família Queirós e Melo, porque estava necessitado de capital fresco. Mas aquilo foi um mau casamento. As receitas de Angola entraram naquele grupo e não vieram para as Caldas. Em 1995, vendo que isto não tinha salvação e em ruptura com um novo administrador, eu bati com a porta. Dois anos depois a F. A. Caiado fechava. A empresa durara 48 anos. E eu trabalhei nela durante 22.
Por esta altura eu tinha 55 anos e senti-me com forças para mudar de actividade. Trabalhei nos Fonsecas, onde fazia a parte da documentação automóvel, e depois fui para o escritório da advogada Luísa Pimenta, onde ainda hoje me mantenho em part-time.
Mas estou reformada desde 2000 porque a absurda legislação da época quase me obrigou a isso a fim de aproveitar os descontos dos melhores anos de salário. Hoje isso já mudou e o que conta é a carreira contributiva toda.
Aliás, uma vez, numa reunião do CDS com o Dr. Bagão Félix, quando ele era ministro da Segurança Social e do Trabalho do governo de Durão Barroso, cheguei a ralhar com ele por causa desta lei. Ele não sabia de nada.
Hoje ainda mantenho actividade no partido. Faço parte do Conselho Nacional e não sou dos que acham que há uma questão geracional no CDS. Penso que tivemos dois grandes líderes: o Dr. Adelino Amaro da Costa e o Dr. Paulo Portas. Mas confio muito na Dra. Assunção Cristas. Já aqui nas Caldas deposito grandes esperanças no Arq. Rui Gonçalves. Penso, de resto, que o problema do CDS neste concelho foi ter chegado depois do PSD que, por ter sido o primeiro, foi buscar as melhores pessoas em todas as freguesias.
A política é uma forma de também me manter activa, já que os meus anos de oiro da F. A. Caiado não regressam mais. Quando passo aqui sinto uma certa nostalgia, um sentimento de perda. Não fui só eu que perdi com o fecho disto. Foi a cidade que também perdeu.






























