
77 ANOS
CASADO
Trabalhei 22 anos na EDP. Trinta e seis se somar também os anos na SEOL. E 39 se considerar os anos na Câmara das Caldas em que também fui electricista. Uma vida ligado às altas, médias e baixas tensões, aos postos de transformação, postes da electricidade, aos fusíveis, disjuntores, contadores, linhas aéreas e cabos subterrâneos. Foi neste edifício onde trabalhei mais anos, num tempo em que chegaram a laborar aqui quase 150 pessoas. Hoje não devem passar de 30 e do meu tempo só cá estarão uns quatro ou cinco. A EDP foi a minha casa durante muitos anos, mas hoje dá-me uma certa pena que uma empresa que sempre fez serviço público, que levava a iluminação e o progresso às vilas, aldeias e às casas das pessoas, esteja entregue a gente que, segundo oiço e leio, ganha milhões e que só pensa nos dividendos para os accionistas
Eu estava destinado a ser marceneiro ou carpinteiro. Pelo menos era essa intenção do meu pai quando, depois de fazer a instrução primária, eu lhe pedi para continuar a estudar. A resposta dele foi “amanhã vais estudar para o Beco do Forno”!
O Beco do Forno era onde em 1948 estava instalada a oficina e a fábrica dos Móveis Serrano. Era ali que trabalhava o meu pai como marceneiro. A família tinha vindo de Fânzeres (Gondomar) para as Caldas da Rainha porque aquela empresa precisava de mão-de-obra. Por pouco não nasci cá porque vim ao mundo no Norte a 13 de Novembro de 1938, mas no dia 8 de Janeiro de 1939, três meses depois, eu já era caldense.
Os meus pais instalaram-se na rua da Estação e eu ainda hoje lá moro pois foi lá que continuei a viver depois de me casar. Cresci ao som das velhas locomotivas a vapor, a ver passar os comboios, a brincar ali no cais e nos armazéns da rua. Quando chegou a idade fui para a escola ao pé da antiga polícia de trânsito onde fiz a 1ª classe com o professor Lalanda Ribeiro e a 2ª classe com o professor Sá. Depois fui para a escola na antiga Praça do Peixe (Praça 5 de Outubro) onde fiz a 3ª e 4ª classes com o professor Rodrigues.
E fiquei então por aí porque o meu pai não quis que eu estudasse e levou-me para os Móveis Serrano como aprendiz de marcenaria. Aquilo era uma empresa importante: não havia cinema ou teatro em Portugal cujas cadeiras não fossem fabricadas lá. Trabalhavam perto de 150 pessoas, entre serradores, marceneiros, carpinteiros, estofadores, polidores e decoradores.
Eu tinha 11 anos e aquilo não me fazia feliz. De vez em quando punham-me a fazer recados e foi o guarda-livros da firma, o senhor José Bartolomeu Pinto, que intercedeu por mim. Pedi-lhe para ser ele a pedir ao meu pai que me deixasse estudar à noite e ele conseguiu.
Em 1952, com 14 anos, passei a trabalhar de dia e a ir para a escola à noite. A Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro (então Escola Industrial e Comercial) ficava atrás do Chafariz das 5 Bicas e foi lá que fiz o curso de Electricidade.
ELECTRICISTA NA CÂMARA
Sete anos depois, e após uma entrevista de emprego com o engenheiro técnico da Câmara das Caldas, Manuel da Silva Tenreiro, fui admitido como electricista do município. Fazia as baixadas para alimentar as casas, fosse na cidade ou nas poucas terras do concelho que à época tinham electricidade e que eram apenas Santa Catarina, Salir do Porto, Tornada e Foz do Arelho. Também montava contadores e trabalhava na manutenção da rede eléctrica que, à época, já estava bastante envelhecida.
Uma das coisas que os electricistas faziam era ligar e desligar a iluminação pública. Ao cair da noite percorríamos a cidade para passar pelas cabines onde estavam os manípulos que ligavam a corrente a cada zona. Havia cabines no cemitério velho, na Rua Sebastião de Lima, no Hotel Central, no Borlão (hoje Largo 25 de Abril) e no Bairro da Ponte. De madrugava fazíamos o mesmo percurso para desligar as luzes.
Éramos uma dúzia de electricistas e foi por esta altura que foram formados os Serviços Municipalizados da Câmara das Caldas, que reuniam o abastecimento de água e de electricidade. Os esgotos só viriam a ser integrados nos SMCR alguns anos mais tarde.
O ano de 1962 foi de grandes mudanças na minha vida: casei-me e mudei de emprego.
Seis anos antes, eu namoriscava uma rapariga na Praça 5 de Outubro e numa noite de S. João andava eu por ali quando se dá uma rixa e um tiroteio. A Maria de Lurdes, que ia a passar com a mãe e que eu só conhecia de vista, assustada com os tiros, agarrou-se ao meu braço. E… Pronto. Foi assim, por um acaso da vida, que tudo começou. Namoramos seis anos e casámos em Maio de 1962.
ELECTRICISTA NA SEOL
Por essa altura o Caldas andava a iluminar o Campo da Mata e eu e meia dúzia de electricistas andávamos por lá a ajudar. Saia do trabalho às 17h30 e ía para lá montar os holofotes nos postes. Era aquilo a que hoje se chama trabalho de voluntariado.
Uma tarde o Eng. Orlando Teixeira Cabral olhou para mim e perguntou: “tu gostavas de trabalhar na SEOL?”
E eu respondi: “era já hoje!”.
A Sociedade Eléctrica do Oeste Limitada (SEOL) tinha sido criada em 1948 por três empresas de electricidade: a Companhia Eléctrica das Beiras, a Hidroeléctrica do Alto Alentejo e as Companhias Reunidas de Gás e Electricidade de Lisboa. Três gigantes que se juntaram para operar aqui no Oeste a levar a electrificação a toda a região.
Aquilo era uma empresa de prestígio, com futuro, com projectos de expansão e por isso, quando me propuseram ganhar menos 16% de ordenado do que na Câmara, eu aceitei. O meu ordenado desceu assim de 538 escudos (2,69 euros) por mês para 450 escudos (2,25 euros).
Ora na altura eu pagava 350 escudos (1,75 euros) de renda. O que me valeu foi a minha mulher que trabalhava como costureira e assim lá conseguíamos arranjar alguma coisa para comer.
Mas o mau ordenado só durou um mês. No mês seguinte aumentaram-me para 800 escudos (4 euros)! Aquilo tinha sido só para me experimentar, para ver se eu aguentava.
Fiquei muito contente, claro. Na SEOL trabalhava nas oficinas que ficavam no Bairro Viola. E andava pela região a levar a luz eléctrica às aldeias. Fiz parte de uma equipa que andou a montar a subestação da Sancheira. Andamos lá dois anos a construir aquilo, desde as paredes à montagem dos quadros e dos transformadores. A subestação é um edifício onde a electricidade chega a 60 mil volts (alta tensão) e sai a 30 mil volts (média tensão) para os postos de transformação a partir dos quais abastecem, já em baixa tensão o consumo doméstico.
Quando havia avarias, fosse de noite ou de dia, feriado ou fim-de-semana, lá íamos nós repará-las para que as pessoas não ficassem sem electricidade. Era uma questão de brio profissional e a verdade é que os próprios engenheiros não ficavam em casa e também iam connosco à hora que fosse preciso.
Depois de casado continuei a viver na rua da Estação, muito perto do Bairro Viola, onde estavam as oficinas da SEOL. Uma vida modesta e recatada. Nos anos sessenta, nas Caldas, eu e a Maria de Lurdes íamos às vezes ao cinema, ao Salão Ibéria ou ao Pinheiro Chagas. O bilhete custava 2$50 (1 cêntimo), íamos a um café de vez em quando, ou passear ao parque. No Verão íamos à praia, mas fomos algumas vezes a pé porque nem sempre havia transportes. É verdade! Íamos a pé para a Foz do Arelho pela estrada nacional e para S. Martinho pela beira da linha do comboio.
ELECTRICISTA NA EDP
Com o 25 de Abril as coisas melhoraram. Em 1978 as companhias eléctricas, incluindo a SEOL, são nacionalizadas e é criada a EDP (Electricidade de Portugal). Fomos aumentados. E, profissionalmente, eu mudei da média para a baixa tensão. Foi o grande boom da electrificação rural e andei a levar o progresso às gentes da Serra de Aires e Candeeiros nos concelhos de Porto de Mós, Rio Maior e Batalha. Além destes, Lourinhã e Peniche também tinham a média e a baixa tensão a cargo da EDP.
Em 1980 dá-se a integração dos serviços municipalizados dos outros concelhos na EDP. De uma assentada passamos a fornecer energia eléctrica em baixa tensão também a Caldas da Rainha, Marinha Grande, Alcobaça, Nazaré, Óbidos e Bombarral.
Os funcionários da parte eléctrica dos serviços municipalizados que quiseram, vieram para a EDP. Os que não quiseram, viriam a arrepender-se porque as perspectivas de progressão na carreira aqui eram melhores.
Este edifício que até dá o nome à “rotunda da EDP” abriu em 3 de Agosto de 1984. Por esta altura tinham aqui o seu posto de trabalho quase 150 pessoas (hoje não devem ser mais de 30).
A sua construção justificava-se porque já não cabíamos todos nas instalações do Bairro Viola. De tal maneira que a empresa mandou fazer uns pré-fabricados na Condaço (uma empresa caldense existente na Zona Industrial) que instalou no Avenal para albergar o pessoal enquanto o novo edifício não era construído. A malta não queria vir do Bairro Viola para aqui, ainda por cima para aqueles barracões quentes, mas teve de ser.
Ficamos muito contentes com a inauguração deste edifício. Custou caro e comentava-se que teve de levar 11 a 13 estacas de betão a grande profundidade porque aquilo era uma zona que estava sempre alagada (foi construído em leito de cheia). À época isto era um luxo e hoje só lamento que esteja tão desaproveitado. Tiraram daqui pessoal, valências e competências.
Por outro lado a evolução tecnológica acelerou. Na parte administrativa as coisas começaram a ser feitas em computador e na parte técnica muitas operações passaram a ser comandadas à distância.
Em 1990 foi formada a área de Segurança no Trabalho e o Eng. Orlando Teixeira Cabral convidou-me para trabalhar neste projecto. Fui receber formação a Coimbra, Porto e Lisboa e depois passei eu a dar formação aos trabalhadores. Tratava-se de minimizar os riscos de uma profissão que é perigosa e onde, às vezes, aconteciam (e acontecem) acidentes mortais.
No dia 11 de Dezembro de 1998 – uma sexta-feira – por volta da seis da tarde o director da zona chegou-se ao pé de mim e disse-me: “segunda-feira já não vens trabalhar. Estás reformado”.
Na realidade era a pré-reforma porque eu só tinha 60 anos. A empresa estava a fazer rescisões na altura e a mandar muitos trabalhadores para a pré-reforma. Fiquei mais triste do que contente. Aquilo foi uma queda. Eu e os meus colegas vivíamos para aquilo desde os tempos da SEOL. Éramos como se fôssemos uma família. Aliás, eu gostava de referir alguns nomes daquele tempo: o senhor Ernesto Oliveira Arroz, os engenheiros Fernando da Costa Pinto Correia, Vaz Pato e Cortez, o Dr. Luís Rodrigues. Uma elite da SEOL que marcou aquela casa e, mais tarde, a própria EDP.
Uns meses antes, já adivinhando que iria deixar de trabalhar, eu tinha comprado um terreno na Trabalhia (Alvorninha) e acabei por me dedicar a tratar daquilo. Foi uma forma de me manter entretido estes anos.
Hoje custa-me ver que a “minha” EDP já não tem nada a ver com esta. Depois da privatização isto deixou de ser uma casa feita para servir os portugueses, mas sim para servir os que querem ganhar à custa dela. Acho um escândalo os ordenados e prémios que se pagam a alguns gestores e administradores. E não é que eu tenha inveja. Nada disso. É só porque acho que a empresa deveria existir para servir os portugueses e qualquer dia não sei se não acaba comprada por outra empresa qualquer estrangeira e desaparece.
Parece que foi ontem que eu andava na Sancheira a construir uma subestação. Fazíamos tudo à mão, erguíamos aquilo e fazíamos obra. Hoje a EDP já nem tem electricistas. É tudo feito por empreiteiros. E perdeu-se o conhecimento de como as coisas se fazem no terreno.






























