
No início de Julho o BE divulgou uma carta aberta subscrita por 100 personalidades intitulada “Integração no ensino superior: a democracia faz-se de alternativas”. A proposta dos subscritores é que as instituições de ensino superior substituam as tradicionais praxes por actividades de recepção e integração dos novos estudantes que sejam lúdicas e formativas.
A realidade das Caldas da Rainha é muito diferente de cidades como Coimbra, Porto ou Lisboa. Embora nos últimos cinco anos tenha havido na ESAD um aumento do número de alunos que defende a praxe, a maioria é contra e o espírito académico é vivido no exterior do recinto escolar para evitar polémicas. Outro ponto assente é que na ESAD as praxes são mais “suaves” que no resto do país. Não há cá caloiros obrigados a olhar para o chão nem jogos com temáticas sexuais, por exemplo.
São quase 130 trajados num universo de cerca de 1000 alunos. Representam uma pequena fatia do bolo, mas que recentemente tem vindo a crescer. Entre os anti-praxe existe actualmente mais tolerância aos estudantes trajados, embora ainda não haja grande à vontade para se ir de capa negra para à escola. Até porque a maioria dos professores não reage bem à vestimenta e contam-se casos de alguns que já expulsaram trajados das suas aulas.
Associado ao traje está a praxe e, embora 90% dos “esadianos” não seja a favor de tais práticas académicas, num ponto “antis” e “prós” concordam: as praxes na escola de artes caldense não são violentas, quando comparadas às praticadas noutros pontos do país.
Para uns essa ligeireza é um factor positivo, para outros torna-se um aspecto entediante. Marco Silva, estudante de Som e Imagem, frequentou o Instituto Politécnico de Santarém antes de entrar na ESAD e diz sentir saudades das “praxes mais duras” que lá experienciou. “São as piores praxes as que mais nos marcam e também as que mais gostamos de recordar”, realça.
Na ESAD organizam-se actividades de praxe ligadas às artes (pintura, escultura, teatro, jogos de mímica), mas não existe tradição de cânticos (até porque estes têm mais força em cidades onde os alunos podem cantar para outras faculdades) nem se promovem jogos de cariz sexual, por exemplo.
“Defendemos que as praxes são momentos de convívio e não de humilhação, desprezo ou violência”, sublinha Bruno Miguel, membro da Távola Elíptica Veterânica (órgão máximo das praxes na ESAD) e presidente da Associação de Estudantes (AE) desta mesma escola. O finalista defende que graças às praxes muitos estudantes saem de casa para se divertirem. “Em noite de praxe até notamos que os donos dos bares ficam mais contentes porque sabem que vão ter casa cheia”, conta.
Embora Bruno Miguel seja um elemento assíduo às praxes e simultaneamente o principal responsável pela estrutura que dá a cara pelos alunos, só um terço dos estudantes que compõem a lista da AE veste o traje. “O papel da associação é apoiar e respeitar ambos os lados de forma imparcial”, assegura.
O roteiro dos trajados das Caldas não passa pelas instalações da ESAD e as praxes normalmente realizam-se à noite. Bruno Miguel explica: “funcionamos assim para que os alunos não sejam obrigados a faltar às aulas, tendo em conta que muitas delas são práticas. Uma falta pode significar perder o fio à meada”. Por outro lado, evita-se o espaço da escola para não gerar ainda mais polémica entre trajados e anti-praxe.
Caloiros, veteranos e doutores costumam encontrar-se na Praça da Universidade (entre o Skate Parque e a Biblioteca Municipal), na Praça dos Bares (5 de Outubro), na rotunda da Rainha, no Parque D. Carlos I e na Praça da Fruta (só até à meia noite, caso contrário os vizinhos chamam a polícia). Os jantares académicos realizam-se habitualmente no restaurante Praceta do Bairro Azul.
Já as idas à semana académica de Leiria são obrigatórias, pois é juntamente com os estudantes leirienses que os caloiros caldenses traçam a capa pela primeira vez e participam no desfile da cerveja. Neste dia aluga-se um autocarro para o propósito, nos restantes os trajados organizam-se em carros particulares.
Quer para Bruno Miguel como para Marco Silva, “as praxes promovem a união, amizade e convívio entre alunos de diferentes cursos e mais tarde serão recordadas como os melhores momentos da faculdade”. Caso contrário, afirmam os dois “doutores”, “a passagem pela faculdade serão apenas as aulas, os professores e os colegas. Nada de novo”.
José Torres, estudante de design gráfico e ex-presidente da AE, pensa de maneira diferente. “Eles dizem que as praxes são um factor decisivo no relacionamento entre alunos novos e velhos, eu penso que as praxes promovem divisórias e relações hierárquicas”, sublinha.
Francisca Maria, antiga presidente da Associação de Estudantes e actualmente aluna do mestrado em Design de Produto, vai mais longe e defende que o espírito académico é um incentivo à humilhação, pois “quanto mais rebaixado és enquanto caloiro, mais vais rebaixar os novos caloiros quando subires a veterano”.
TRAJE POUCO PRÁTICO
“Quem quiser ir trajado para a escola pode fazê-lo, até porque existe um documento que indica que os professores que não permitam os trajados de frequentar as aulas podem ser sujeitos a um processo disciplinar”, realça Bruno Miguel. No entanto, a maior parte dos alunos que gostaria de andar trajado continua de pé atrás em levar o traje para a escola.
Ainda que os “antis” já não olhem de lado como há uns anos, nem façam comentários menos simpáticos, o clima continua a ser de questionamento por quem opta seguir a tradição académica. Tradição que, de resto, nunca foi muito relevante nas Caldas.
Francisca Maria é uma das alunas que questiona o uso do traje. “Se inicialmente o traje foi criado para que não existisse distinção entre classes nas escolas, actualmente o seu propósito está completamente distorcido. Os trajados formam uma nova classe”, comenta. “O traje não promove a igualdade, mas sim um estatuto porque quem o utiliza sente-se superior”, acrescenta Francisca, salientando que o seu preço elevado torna-o pouco acessível a todos os alunos. Em particular, o traje do Instituto Politécnico de Leiria (IPL) custa quase 200 euros. Segundo Bruno Miguel, “muitos caloiros não o compram porque é excessivamente caro, optando antes por adquiri-lo em segunda mão”.
Ainda sobre o traje coloca-se outra questão: numa escola de artes, onde muitas das aulas são práticas e onde os alunos precisam de se “sujar”, fará sentido usar uma capa negra comprida e pesada, uma camisa branca atada até ao último botão e sapatos que em 90% dos casos nada têm de confortáveis?
O código de traje do IPL proíbe também a utilização de mochilas ou malas com o traje vestido, uma restrição que para os estudantes de artes “deveria ser excepção, uma vez que precisamos constantemente de levar materiais para a escola”, comenta o presidente da AE. Bruno Miguel reconhece que o traje do IPL não está adaptado ao dia-a-dia da ESAD porque é pouco prático, o que leva os alunos a usarem-no poucas vezes.
Curiosamente, Francisca Maria conta que a ESAD chegou a propor um traje próprio ao IPL: consta que era cor-de-rosa às bolinhas e não foi aceite.
BOICOTE À RECEPÇÃO AO CALOIRO
Aos que dizem que na ESAD nunca houve espírito académico, Bruno Miguel responde que há 15 anos, quando a instituição ainda se designava ESTGAD (Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design), o curso de Gestão era o principal dinamizador das praxes, acrescentando que nas paredes da AE estão pendurados muitos cartazes de semanas académicas e recepções ao caloiro que se organizavam em força nessa altura.
Actualmente ainda se organizam actividades de recepção aos novos alunos. A principal consiste num leilão, em que os mais velhos “compram” os caloiros e levam-nos depois a jantar, ficando incumbidos de mostrar-lhes a cidade. Há ainda o rally-tascas, uma iniciativa em que os jovens saltitam de bar em bar para beber uns quantos copos.
Este último ano a Associação de Estudantes decidiu dinamizar uma semana de recepção ao caloiro, mas a actividade foi mal recebida pela comunidade estudantil da ESAD, que criticou o preço do bilhete (entre 15 a 18 euros) e organizou, à margem, eventos à mesma hora e com entrada gratuita.
“Acusaram-nos de querer implementar espírito académico na escola, quando a única intenção da AE foi proporcionar uma semana diferente aos caloiros com concertos todos os dias”, revela Bruno Miguel, acrescentando que graças ao boicote promovido pelos outros estudantes, “o evento não teve a adesão esperada e algumas actividades pensadas para o resto do ano não puderam realizar-se por falta de meios”.
A MAIORIA TEM MUITA FORÇA
Na ESAD a maioria tem muita força. Tanta força que Bruno Miguel acredita que muitos caloiros não aderem à praxe para não contrariarem essa mesma maioria “anti”. Tamires Brito, estudante de Design Gráfico, concorda, mas adianta-se em explicar que “é normal que assim seja. Tal como nas faculdades em que existe tradição académica muitos jovens trajem apenas por receio à descriminação que possam sofrer caso digam ‘não’ ou pelo medo de não conhecerem novas pessoas”.
Já Bruno Miguel diz que dificilmente algum dia verá a ESAD assumir-se como uma escola de trajados, mas não lamenta o facto, assegurando que por serem menos também são mais unidos. “E até é engraçado que continue a existir esta rivalidade entre os dois lados”, acrescenta o presidente da Associação de Estudantes.
Artes plásticas é o curso apontado pelos alunos como o mais “anti-praxe”, mas cada vez menos é possível desenhar uma linha que separe os cursos a “favor” e “contra” a tradição académica na ESAD, pois a mistura é cada vez maior entre os trajados.
Não é só na escola de artes das Caldas que se respira pouco espírito académico. O mesmo acontece na generalidade das faculdades ligadas ao mundo artístico. Francisca Maria acredita que a explicação está no facto “da maioria dos alunos de artes não se regirem pelos cânones sociais comuns. Mesmo entre professores e alunos a relação é informal e descontraída, o que promove um espírito livre”. Curiosamente, um dos argumentos dos trajados toca precisamente neste ponto: se a ESAD é uma escola que acolhe e respeita estilos completamente diferentes, como é que não tem mente aberta para receber o traje de braços abertos?




































