Mariscador há 45 anos, Alberto Jacinto foi uma das pessoas que na manhã de sábado se deslocou ao INATEL para partilhar o seu testemunho sobre a Lagoa de Óbidos. Consigo levou uma berbigoeira e uma fisga que antes se usava para a captura das enguias. “Antigamente juntavam-se duas ou três pessoas da famílias, apanhavam umas enguias, enquanto as mulheres coziam pão, fazia-se uma caldeirada em família e assim se comemorava aquele momento de felicidade de comer enguias da lagoa”, lembrou à Gazeta das Caldas.
Natural do Nadadouro, Alberto Jacinto é descendente de pescadores e mariscadores. “Os meus bisavós já tinham um barco de pesca”, disse, recordando que começou a capturar ameijoa com oito anos, juntamente com o avô.
Entretanto muita coisa tem mudado na Lagoa. O assoreamento na zona das cabeceiras leva a que já se note naquela zona a falta de espécies como enguias, solhas e linguados. “A água não possui a profundidade necessária para estas espécies se esconderem dos predadores, nomeadamente as aves, e acabam por se deslocar”, explica.
Sobre o projecto em que participou, destacou a relevância de recordar as memórias antigas, para transmitir aos mais novos o que já foi Lagoa e também para “ver se conseguem sensibilizar os poderes para que ela permaneça por muitos anos”.
Também Aníbal Casimiro, do Nadadouro, participou na iniciativa onde contou a sua experiência e partilhou imagens antigas. Foi pescador durante muitos anos, até que emigrou para o Canadá, mas voltaria à mesma actividade.
“Sou apaixonado pela Lagoa, todos os dias pego no carro e vou vê-la”, disse Aníbal Casimiro, de 81 anos, que continua a ter o barco na Lagoa e dedica-se à pesca lúdica.
Considera que estas iniciativas são necessárias para se preservar a memória, mas lamenta que os políticos nunca tenham chegado junto dos pescadores para perguntar a sua opinião antes das intervenções na Lagoa, que actualmente se encontra muito assoreada.
Entre os objectos disponibilizados estava, logo à entrada da sala, uma réplica à escala, de uma bateira, feita pelo construtor de bateiras residente na Usseira, Rogério Neves (já falecido). O objecto foi levado por Ilda Cruz, técnica de turismo, que também participou na iniciativa. A sua relação com a lagoa começou nos tempos de estudante, quando fez um trabalho de final de curso sobre a Lagoa de Óbidos como ecomuseu, e continuou durante o tempo em que estagiou no Inatel e dinamizou algumas exposições, exactamente sobre esta lagoa, onde a bateira sempre marcou presença.
Respeito pela propriedade intelectual das pessoas
Durante os dois dias os investigadores do Instituto de História Contemporânea recolheram testemunhos orais, fotografias, documentos e objectos de registos sobre a Lagoa de Óbidos, que a partir de finais de Fevereiro irão integrar uma secção na plataforma “Dias da Memória”.
Foram digitalizadas fotografias de espólios pessoais e familiares, dando conta das actividades realizadas na Lagoa e na sua envolvente, desde passeios de barco e piqueniques à apanha de marisco, peixe e limos. Foram ainda partilhados muitos objectos ligados às artes de pesca, como galrichos e nassas, entre outras redes, e vários bivalves recolhidos naquele ecossistema.
Nos seus testemunhos, os participantes também referiram as festas populares e religiosas, a gastronomia, fluxos migratórios, atividades económicas e de recreio, técnicas associadas às artes de pesca e marisco (redes, embarcações, instrumentos, técnicas de apanha), fauna e flora.
Fernanda Rollo, professora da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do programa Memória para Todos, destacou que estes projectos são muito ricos do ponto de vista humano e científico e que estão muito alinhados em termos de ciência cidadã e história colaborativa e pública. “Pretende também devolver um pouco à comunidade o conhecimento que vamos acumulando ao longo dos anos e que não nos serve de nada guardado na gaveta”, disse, acrescentando que a grande preocupação é a patrimonialização dos testemunhos.
A trabalhar estavam jovens historiadores, arquivistas e bibliotecários, “conhecedores das boas práticas e respeito por tudo o que tem a ver com a propriedade intelectual das pessoas”, realçou a historiadora, que exerceu até Outubro passado as funções de secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
A responsável destacou ainda a importância que a imprensa regional, nomeadamente a Gazeta das Caldas, tem dado à Lagoa e que “é muito reveladora também do que são as dinâmicas bem como as questões do associativismo”.
Este projeto é feito em articulação com o Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra e que permite abordar com mais profundidade a biodiversidade da Lagoa de Óbidos. Para além disso, acrescenta, Fernanda Rollo, “tem o estimulo da participação pública [através do Orçamento Participativo de Portugal] em que as pessoas desta comunidade votaram e quiseram este projecto”.
Todos aqueles que não puderam participar podem ainda fazê-lo através do e-mail avenidas@memoriaparatodos.pt. Os materiais serão tratados, contextualizados e patrimonializados integrando a Plataforma www.memoriaparatodos.pt em finais de Fevereiro e posteriormente a exposição e conteúdos do Centro de Interpretação para a Lagoa de Óbidos.
O programa de investigação “Memória para todos” continua em desenvolvimento com os projectos da Primeira Guerra Mundial e das memórias do 25 de Abril de 1974. Irão também fazer a segunda edição dos Dias da Ópera, a história da PSP e iniciar um trabalho sobre as aldeias de Portugal.
Números
251 digitalizações
49 entrevistas (aproximadamente 52 horas de gravação)
51 objectos
9 filmes de família
15 investigadores