PALHA DA SILVEIRA – o tribunal das Caldas tinha um extraordinário bom ambiente

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74 ANOS
CASADO, 2 FILHOS

notícias das Caldas
“O contacto com a parte sórdida da realidade foi o que mais me custou na minha judicatura” | C.C.

Foi em 1979 que fui colocado como juiz no tribunal das Caldas da Rainha e nesta sala de audiências passei muitas horas da minha vida profissional em julgamentos que, por vezes, se prolongavam durante dias ou semanas. Como qualquer sala de audiências, aqui viveram-se momentos dramáticos e situações de muita tensão, de que não tenho saudades. Mas devo dizer que fui eu próprio que pedi para ser colocado nas Caldas. Eu já conhecia a cidade, estava mais perto da família e foi este o tribunal onde eu mais gostei de trabalhar.

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Nasci em 14 de Setembro de 1942 na Abrigada (Alenquer) no seio de uma família abastada, tradicionalista e de fortes convicções morais. Somos o produto do meio em que nascemos e crescemos. Por isso, eu sou também um homem conservador, que valoriza a estabilidade, os valores da família e o respeito pela autoridade.
Fiz a escola primária na Abrigada e depois estudei no Colégio Damião de Góis, na Alenquer, onde fiz o 2º ano do liceu. Era um colégio privado, que pertencia à Igreja, e que já nesse tempo tinha um contrato de associação com o Estado para ser aberto ao ensino público.
O resto do liceu fi-lo em Lisboa, para onde me mudei com 12 anos. Fui viver para casa dos meus avós e estudar no Colégio Académico, aos Anjos, onde fiz o antigo 7º ano. Eu teria gostado de estudar História, mas a minha família não gostou da ideia porque esse curso só dava para “professor de liceu” e que tinham outras expectativas a meu respeito.
E então fui para Direito. Confesso que naquela altura eu nem sabia muito bem o que isso era. Mas já havia algum historial de licenciados em Direito na família: o meu bisavô fora advogado e notário, e os meus quarto e quinto avôs foram desembargadores na Relação de Lisboa.
Aos 18 anos entrei na Universidade Clássica de Lisboa. Estava-se em 1960 e já sabia que me esperaria a tropa e a guerra colonial depois do curso.
Apanhei a crise académica de 1962 e eu, que sou de direita e monárquico, também andei nas greves e nas movimentações estudantis porque efectivamente foi um abuso o que a polícia fez ao ocupar a universidade e ao espancar e prender estudantes. Mas não fiz greve aos exames. A minha mãe avisou-me logo: “o menino está em Lisboa é para estudar e portanto os exames são para se fazer!”.
Não fiz oposição ao regime, não andei com o cabelo grande, nem usei barba, nem vesti calças à boca de sino. Mas tive alguma militância na JUC – Juventude Universitária Católica que estava longe de simpatizar com o salazarismo. Tínhamos preocupações sociais e eu estava também ligado à Conferência de S. Vicente de Paulo. Recordo que percorríamos os escritórios de advogados de Lisboa a angariar fundos para organizar uma ceia dos pobres no Natal. Alguns ofereciam uns donativos generosos, mas outros, ligados à esquerda, quase nos corriam a pontapé porque achavam que o Estado é que devia suprir as necessidades dos mais carenciados. Na cartilha de alguns, por cada esmola que se dava, atrasava-se um dia a revolução.
Fui um estudante universitário empenhado. E era claro para mim que, uma vez concluído o curso de Direito, eu não iria ser advogado. Embora pouco fundamentada, eu tinha uma ideia mais alta da Justiça. Eu era jovem e não me atraia aquela parcialidade dos advogados. Entendia a Justiça como um valor mais acima.
Concluí a licenciatura com 22 anos e antes de ser chamado para o serviço militar ainda fui delegado interino do Procurador da República em Ponte de Sor. Mas seis meses depois, concluído o estágio no que seria a minha primeira experiência na Magistratura, eu estava em Mafra, a marchar e a correr, no curso de oficiais milicianos.
Miraculosamente escapei de ir para o Ultramar. E sem quaisquer pedidos ou cunhas, que nem eu nem a minha família pactuaríamos jamais com isso. Simplesmente aconteceu mandarem-me para o Quartel General de Évora e depois para Lisboa, para o Estado Maior do Exército, que foi o sítio onde gostei mais de estar.
No Estado Maior estavam as pessoas mais inteligentes do Exército, as mais literatas e com maior nível em termos de conversação e de pensamento. Ainda hoje me dou com alguns oficiais superiores desse tempo, de quem tenho a honra de ser amigo.
No entretanto, entre as conversas e as idas à messe, eu trabalhava numa missão muito específica e complexa: preparava decretos criativos, modificativos e extintivos de servidões militares. Uma coisa árida, mas que tinha grande impacto no mundo civil pois contendia com a construção civil e as áreas a construir em torno das instalações militares.
Finda a tropa, voltei para a Magistratura. Aos 27 anos fui para a comarca do Redondo como delegado do Procurador da República. Seguiu-se Portimão e depois Loures, onde não gostei de estar porque já tem aquela conflitualidade própria de um meio urbano. Na província o ambiente era mais familiar e distendido.
Depois fui para o tribunal da Boa Hora e mais tarde para representante do Ministério Público nos tribunais civis de Lisboa.

FINALMENTE JUIZ

O meu objectivo, porém, era ser juiz e consegui-o em 1972 depois de um concurso público e de ter sido sujeito a um exame que era uma coisa horrorosa. Ainda me lembro. Eu já não era uma criança, mas sentia-me tão pequenino no meio daquela sala de sessões e o júri composto por juízes dos tribunais superiores e professores universitários, todos vestidos de negro, lá no alto a avaliarem-me. Um deles era o professor Palma Carlos, que foi meu arguente, um homem ligado à esquerda e que viria a ser primeiro ministro durante uns meses em 1974 durante o I Governo Provisório.
Depois regressei ao Algarve. A minha primeira comarca como juiz foi a de Tavira. Eu tinha 31 anos e nesse tempo não havia juízes com menos de 30 anos, coisa com a qual ainda hoje estou de acordo. Não é que actualmente não saiam bem preparados do CEJ (Centro de Estudos Judiciários), mas acho que aos vinte e tal anos não se tem ainda experiência de vida suficiente para conhecer a conflitualidade humana.
Não me recordo do meu primeiro julgamento. Mas tenho presente que sentia uma certa vaidade pelo facto de ser juiz. Hoje, aos 74 anos, posso dizer que eu aos 30 era um miúdo. E um miúdo rodeado daquela consideração formal, reverente, do V. Exa., para aqui V. Exa. para acolá… Enfim, havia um certo deslumbramento pelo cargo, para mais potenciado pela época porque ainda se vivia no Estado Novo.
Mas havia o reverso da medalha quando, no âmbito dos processos e dos julgamentos, a realidade começava a emergir na sua autenticidade e conflitualidade. Ainda assim, tenho de admitir que Tavira era uma comarca calma e sem grandes problemas.
Quando se deu o 25 de Abril eu estava em Tavira. Alguns meses depois o Dr. Salgado Zenha (por quem eu tinha consideração apesar das divergências políticas), convidou-me para ser auditor jurídico no Ministério da Administração Interna. Isso implicou regressar à carreira da Magistratura do Ministério Público e fui novamente procurador.
Estive nos corredores do poder durante dois anos numa fase complicada da vida do país. Cá fora eram só manifestações, greves, ocupações. Lá dentro eu auditava.
Cansei-me daquela vida e em 1976 voltei para Magistratura Judicial e fui colocado como juiz na Golegã. Foi também nesse ano que me casei com a minha prima Isabel Maria. Ela é 15 anos mais nova do que eu e já a conhecia desde sempre da Abrigada. Começámos a namorar quando ela tinha 16 anos e demos o nó na capela da Quinta da Abrigada.
A vida de um juiz é parecida como a dos médicos, polícias, ferroviários, professores – andamos a saltar de terra em terra. Dois anos depois eu tinha que mudar de comarca, mas fiz um requerimento ao Conselho Superior da Magistratura a pedir para não ser colocado em nenhuma comarca do Alentejo nem da Cintura Industrial de Lisboa porque eram as de gestão comunista e eu não queria nada com aquelas certezas e verdades revolucionárias. Naquele tempo estava tudo ainda em ebulição e eu, como disse, preservo alguma tranquilidade de espírito que não era compatível com aquele ambiente revolucionário das ocupações e das greves.
Lá acederam ao meu requerimento e mandaram-me para o Algarve. Fui novamente para Portimão, mas não fiquei lá muito tempo. Nasceu lá o meu filho mais velho, mas depois, a meu pedido, consegui colocação nas Caldas da Rainha onde vim presidir à comarca.
Eu já conhecia bem a cidade porque a minha família vinha cá muitas vezes e também a S. Martinho do Porto. Os meus pais e tios, todos monárquicos, valorizavam muito o facto de a família real ter passado vilegiaturas nas Caldas da Rainha.

APRENDI A RECONHECER A VILEZA E A PERVERSIDADE

Entrei neste tribunal como juiz presidente do círculo das Caldas da Rainha. Naquela altura o juiz presidente tinha a designação de corregedor e eu ía fazer julgamentos a Rio Maior, Lourinhã, Peniche e Torres Vedras.
A verdade é que eu gostei muito do tribunal das Caldas porque tinha um extraordinário bom ambiente. Com os funcionários, com os advogados, enfim, com toda a gente. O ambiente judicial era saudável porque havia lealdade, correcção e respeito mútuo. Recordo bons advogados como o Dr. Mário de Carvalho e o Dr. Valente Sanches. E dos novos havia o Dr. Júlio Simão e o Dr. José Manuel Matos, que pertenciam aquela plêiade de jovens advogados comunistas de Leiria, formados pelo Dr. Henrique Vareda, que era um grande homem! E lembro-me do Dr. Fernando Costa: ele não sabia muito de advocacia (gostava mais de política), mas era um homem muito cordato com quem me dei muito bem.
E dos juízes que conheci, destaco o Dr. Carlos Querido. Foi o único a quem, mais tarde, já como inspector judicial, dei a classificação máxima de serviço logo à primeira vez. Era um juiz excepcional.
Por outro lado, viver nas Caldas não era o Algarve e eu agora estava mais perto da Abrigada e da minha família.
Até que fui promovido à Relação por distinção. Fui juiz desembargador e mais tarde inspector judicial. Concluí os últimos seis anos da minha carreira a percorrer o continente e ilhas para fazer inspecções nos tribunais, onde me tornei conhecido pelo rigidez com que passava os processos a pente fino para detectar eventuais irregularidades. Afinal os bons exemplos na Justiça têm de vir de cima e os magistrados devem ser rigorosos e escrupulosos no cumprimento do seu dever.
Continuei, contudo, a viver nas Caldas da Rainha, onde já tinha nascido o meu segundo filho e onde a família se radicou. Fui inspector judicial durante seis anos e reformei-me em 2001 com 59 anos.
Ao longo da minha carreira como juiz, se me perguntarem quantas pessoas meti na prisão, não saberei responder. De certeza que foram centenas. Sou do tempo em que a pena máxima era de 38 anos de cadeia (hoje é de 25) e ainda fiz uma condenação destas, a uma mulher que matou o marido, cortou-o aos bocados, atirou partes ao rio e deu a cabeça a comer aos porcos. Curiosamente, ela só cumpriu oito anos de pena porque o Mário Soares concedeu-lhe um indulto. Mas quanto ela regressou à terra, a população juntou-se e cortaram-lhe o pescoço.
O contacto com a parte sórdida da realidade foi o que mais me custou na minha judicatura. Aprendi a reconhecer e a lidar com a vileza, a perversidade e a corrupção. E não é verdade que hoje haja mais crimes hediondos do que antigamente. Um dos primeiros crimes que julguei, logo em Tavira, foi um caso de pedofilia de um avô que engravidou uma neta de 14 anos.
O que há hoje é mais mediatismo. Felizmente, sou de um tempo em que não havia dezenas de jornalistas e de câmaras de televisão à porta dos tribunais. Quando isso começou a ser moda, eu já era desembargador e depois reformei-me.
Sempre preservei a dignidade da função e era conhecido por não tolerar faltas de respeito no tribunal. Até cheguei a repreender um padre que foi uma vez testemunhar e não levava gravata.
Perdi a conta aos ministros da Justiça que apanhei. Antes e depois do 25 de Abril. Foram quase todos muito mauzinhos, com excepção do Rui Machete, que sempre respeitou os magistrados, e do Salgado Zenha que foi ministro em tempos muito difíceis.
O pior? O Almeida Santos. Esse politizava tudo. E também não morri de amores pelo Laborinho Lúcio. Um dia li uma entrevista dele no Expresso em que contava que os pequenos delitos nos jovens faziam parte do processo de crescimento e que ele próprio, em miúdo, tinha roubado galinhas. Modernices! Nessa tarde tive um julgamento com um rapaz que tinha um longo historial de pequenos crimes – uma longa viagem pelo Código Penal – e não resisti à ironia. Disse-lhe: “o senhor continue assim que ainda há-de ser ministro”.
Pode parecer que sou um homem de fora deste tempo, mas bato-me pelas minhas convicções. Durante anos, sem receber nada, escrevi artigos do opinião no jornal O Diabo. E sei que houve no Conselho Superior da Magistratura quem não os apreciasse
Sou monárquico. Entendo que é o processo de chefia do Estado mais natural, menos dispendioso e menos fracturante. E que tem a ver com a nossa História. De resto, as sociedades mais desenvolvidas europeias são monarquias.
É certo que estas convicções devem-se também à minha família. O meu pai já o era e o meu avô, que descendia de uma linhagem miguelista, serviu o rei D. Carlos na Casa Real.
Talvez por tudo isso eu seja um apaixonado pela História. Depois da reforma mantive a minha casa nas Caldas, mas mudei-me para S. Martinho do Porto, que é uma terra plana onde se pode caminhar à vontade. Leio muito, sobretudo sobre História, vejo um pouco televisão e escrevo. Escrevo poesia e as minhas memórias. Escrevo-as e vou-as actualizando, reescrevendo-as. O que prova que a memória nem sempre é coisa em que se deva confiar.

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