Os fornos de cal tiveram um papel preponderante na vida das comunidades durante milénios. Actualmente, nas Caldas, foram quase todos destruídos, abandonados ou esquecidos. Gazeta das Caldas recorda o funcionamento destes fornos e dá-lhe a conhecer três casos de recuperações deste património na Serra do Bouro, Salir do Porto e Montejunto. Dois deles devem a sua recuperação a iniciativas de empresários e um a entidades públicas. Hoje a cal é ainda muito usada e alguns dos grandes prédios das Caldas são feitos de pedra e… cal. E em Óbidos as casas são, ainda nos dias de hoje, todas caiadas.
“Construído a pedra e cal” e “branco como a cal” são duas expressões típicas e populares portuguesas que atestam a importância que a cal tem na nossa História.
A cal é o resultado químico da cozedura do calcário a altas temperaturas (900 graus). Ninguém sabe quando foi descoberta, mas há registos milenares do seu uso na construção de abrigos.
Sabe-se que foi usada em termos artísticos e na construção de monumentos. Actualmente a cal ainda é utilizada na construção (quer como argamassa, quer para pintar), mas também na agricultura e em várias indústrias (como no fabrico de pasta de papel, na panificação e na indústria láctea).
No entanto, com o avanço da tecnologia e da indústria, os velhos fornos de cal foram ficando abandonados e o conhecimento foi ficando esquecido.
Em muitos casos, cada um daqueles fornos foi o motivo de subsistência de uma ou mais famílias e cada um encerra dezenas de histórias.
Os fornos eram locais frequentados pelas pessoas das aldeias, que necessitavam de cal, especialmente para caiar as casas. Apesar de abandonados, mantém-se, por isso mesmo, na memória dos mais velhos.
Francisco Antunes é um testemunho vivo da indústria da cal na Serra do Bouro. O seu pai tinha um forno, pelo menos do século XIX, naquela que hoje é a estrada nova para a Foz do Arelho (Avenida Atlântica). O empresário recorda-se que na encosta da Corujeira, na Serra do Bouro, onde hoje se situam duas pedreiras, havia mais de uma dúzia de fornos de cal e crê que o seu é o único que ainda sobrevive.
Francisco Antunes tem uma memória viva de quando era criança e via as luzes dos fornos na encosta e ouvia os homens a cantarem e a falarem de uns fornos para os outros. “Gritavam enquanto trabalhavam e usavam um altifalante feito de um funil para conseguirem comunicar”.
Recorda-se também, com pormenor, do processo de produção da cal. “A pedra era arrancada da pedreira ali próxima. Furava-se a pedra à mão e punha-se pólvora para a rebentar. De seguida era carretada em carros de bois para os fornos, onde era amontoada de forma a fazer uma parede de pedra à volta do forno. Essa parede ia crescendo até formar uma abóboda”. Por uma pequena porta ia-se metendo lenha no centro, noite e dia. “Nunca podia parar, trabalhava contínuo durante mais de uma semana e tinha sempre dois homens de serviço e dois a dormir numa pequena casa de apoio”, conta.
Ao fim de cerca de uma semana, a pedra caldeava e ficava numa massa quase líquida. “Deixava-se uns dias a arrefecer e depois ia-se com os sacos de serapilheira nas mãos, para não as queimar, que nesse tempo não havia luvas, e tirava-se a cal para arrefecer e para a massa ficar empedrada”.
Os fornos davam emprego a dezenas de pessoas. Só na altura da cozedura seriam cerca de 50 homens a trabalhar. Mas antes havia que arrancar a pedra e transportá-la nos carros de bois que as levavam até aos fornos. “O que mais dava trabalho às gentes da Serra do Bouro era o negócio da cal”, faz notar, acrescentando que naquela altura a cal da Serra concorria com a de Pataias. “Diziam que a nossa era melhor pela qualidade de pedra”, conta.
Hoje, este caldense queixa-se que este é um assunto esquecido nas Caldas, ao contrário do que aconteceu em Pataias onde esta memória é preservada.
No intuito de manter a história viva, recuperou o forno do seu pai, que havia deixado de trabalhar e cujo poço se mantinha aberto. “Era perigoso, chegavam a cair lá animais. Então tapei-o com placa e mudei a pequena casa de apoio que era a 30 metros para cima do forno”.
Francisco Antunes lembra-se que nos pinhais de Salir do Porto também havia pelo menos cinco fornos e alguns ainda existem, em ruínas, na estrada que liga a Serra do Bouro a Salir. “Nas Caldas havia o forno do Ventura no sítio onde mais tarde viria a funcionar a Casa Barros, que vendia artigos de construção. E também havia um ou dois fornos de cal por trás do cemitério ao pé da Secla”, recorda.
Gazeta das Caldas conhece mais alguns, por exemplo, na estrada que liga o Campo à Serra do Bouro e nos Vidais, mas não nos arriscamos a fazer uma listagem, que necessitaria de um estudo mais aprofundado.
O NÚCLEO DE PATAIAS
Aqui bem perto existe um núcleo de preservação de fornos de cal, único a nível nacional. Em Pataias (concelho de Alcobaça) a chegada da linha férrea, em 1888, aumentou a capacidade de escoamento dos produtos, pelo que chegou a haver mais de 30 fornos em funcionamento. Os últimos deixaram de laborar em Junho de 1995, mas muitos ainda se mantém de pé.
Além de Pataias, existe um exemplo de um forno de cal visitável aqui próximo. Fica na Serra de Montejunto, no Cadaval, e crê-se que funcionou como estrutura de apoio à Real Fábrica de Gelo, da qual está próxima. A cal seria então utilizada na desinfecção dos silos de armazenamento e, assim, um elemento preponderante no processo de fabrico do mesmo, garantindo a higiene e qualidade do produto.
O forno funcionou até meados do século XX. Actualmente é propriedade pública, tendo sido recuperado e integrado no percurso de visitação da fábrica de gelo.
EMPRESÁRIO PRESERVA PATRIMÓNIO
Bem mais recente é um projecto que está a ser desenvolvido por Henrique Matias em Salir do Porto. O empresário, detentor do restaurante Porrinhas dos Leitões, comprou e começou a recuperar o forno de cal que existia em frente ao seu estabelecimento comercial. No total já investiu cerca de 8500 euros na compra e recuperação do forno, que “já nem se via, nem se percebia o que era”, contou à Gazeta das Caldas.
A recuperação do forno já era um sonho antigo do empresário, desde que comprou o estabelecimento em 2002 e o transformou em restaurante. Em 2018 adquiriu o terreno que tem o forno de cal pediu uma licença para o recuperar, tendo requalificado os muros que tinham caído e reposto os tijolos. “Ficou tal e qual como era originalmente”, referiu. À volta colocou oliveiras e uma vedação.
“Gostava de fazer uma sala de madeira por cima, com fotografias e explicações em várias línguas e com uma varanda à volta, para abrir aos visitantes”, contou.
O objectivo não é ter lucro, mas sim um interesse em manter este património e a sua História. “Gostava de poder dizer que o Porrinhas recuperou este forno com mais de 200 anos e que é visto por milhares de pessoas”, mencionou, acrescentando que “daqui a 50 anos os jovens podem perceber os sacrifícios que eram necessários e dar valor às coisas”.
Henrique Matias diz que não se cansa de olhar para o forno e que, apesar de nunca ter visto nenhum a trabalhar, se lembra de o seu pai e avô falarem dos fornos de cal.
Hoje em dia, sente-se uma nova vaga de recuperação de casas no Algarve em que se recorre aos materiais tradicionais, como a cal, em detrimento dos modernos. Esta aposta justifica-se pelos benefícios para a saúde e para o ambiente, mas também porque, em termos de custos, são mais baratos.
Hoje em dia, a cal é objecto de vários estudos e dá-se formação no uso da cal na pintura e na construção. Hoje em dia, os fornos são um património que conta uma História, que é a nossa. Hoje em dia, há museus e rotas turísticas pelo país, e além fronteiras, dedicadas à cal.
Os fornos do Hospital Termal
Nas Caldas há ainda referências aos fornos de cal do Hospital Termal, que remontariam ao século XVI. Miguel Serieiro Duarte, na sua tese de mestrado – intitulada “Uma vila que gravita em redor de uma instituição assistencial: a recuperação do património urbanístico do Hospital das Caldas até 1533” – refere que “os fornos da cal, que foram substituídos por fornos de pão em 1533 por Gomes Ayres que contratou com o Hospital o fornecimento de pão (em 1575 Miguel Jorge desistiu do contrato mas manteve o forno em funcionamento)”.
O autor apresenta um documento de 9 de Maio de 1513, transcrito do Livro das Sesmarias, que localiza “com exactidão o forno da cal numa propriedade mais baixa (covão) do que a estrada velha, num local onde esta tinha uma pendente mais pronunciada (Calçada) e com limites entre a propriedade do Hospital (Poente), um morro de terra junto à estrada (Sudeste) e o aqueduto (Noroeste)”.
Segundo Miguel Serieiro Duarte, “além do forno existiria a casa anexa onde se guardava a cal, como nos aparece referido no registo de propriedades urbanas do Hospital, elaborado por volta de 1532”.
É o mesmo autor que refere que “em 1575, para se fazerem obras no Hospital, foi construído um novo forno de cal junto ao ribeiro da Boneca (onde hoje é a Fábrica de Faianças Bordalo Pinheiro). Este forno, após ter servido as ditas obras, fora abandonado e posteriormente aforado pelo oleiro Augusto Jorge para o fabrico de tijolo e telha”.
I.V.






























