“Os erros repetem-se ciclicamente porque não reflectimos no passado”, diz João Caraça

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A Google, a Amazon e a Apple controlam o que vai ser o futuro porque são as empresas que concentram a informação.

É a incapacidade de tirar ilações da história que leva a humanidade a cometer erros idênticos ciclicamente. Os problemas que hoje a sociedade enfrenta são diferentes, mas têm bases idênticas aos que levaram a grandes convulsões no passado, defendeu o professor João Caraça na conferência que deu no passado dia 22 de Março no CCC perante cerca de 200 pessoas. A capacidade de criar alternativas é a grande defesa da humanidade, e essa foi a grande característica de Leonardo da Vinci no seu tempo.

“Os erros repetem-se ciclicamente porque não reflectimos no passado”. Foi com esta ideia que João Caraça, professor catedrático da Universidade de Lisboa, iniciou a conferência “500 Anos após o desaparecimento de Leonardo da Vinci: transformações e rupturas societais”, que a Gazeta das Caldas organizou no passado dia 22 de Março, em parceria com o Conselho da Cidade e com o CCC.
Mais para o final da conferência, João Caraça deu um exemplo prático do que são estes erros cíclicos com os quais a humanidade parece não querer aprender. Lembrou que a I Grande Guerra teve como um dos seus motivos a pouca capacidade das pessoas que estavam nos governos. “E esse é um problema que voltamos a ter hoje em dia”, disse, acrescentando que “o conhecimento vem da experiência e que o futuro não se adivinha, mas prepara-se”.
Mas como se articula Leonardo da Vinci com isto? É que este artista-cientista foi uma das primeiras mentes modernas (e com mentes modernas compreendem-se aqueles que romperam com a ideologia da ciência clássica que vinha da Grécia e de Roma antigas), cujos estudos contribuíram para um avanço significativo daquilo que é a ciência como hoje a conhecemos. “Muitas das coisas que Da Vinci pensou, e das atitudes que tomou, seriam ainda hoje actuais”, observou João Caraça.
O professor realçou alguns dos motivos que contribuíram para que Leonardo tivesse sido esta mente disruptiva. Filho ilegítimo, canhoto e homossexual, era uma pessoa fora do sistema e foi-lhe vedado o acesso ao ensino clássico, aos ensinamentos da época que eram transmitidos desde os impérios grego e romano. Tudo o que aprendeu foi fruto da sua própria curiosidade, como se fosse construído sobre uma folha em branco, sem essas influências.
Isso permitiu-lhe desenvolver teorias que toda a gente podia observar, mas que não ousava contrariar. Exemplo disso foram os cálculos das trajectórias balísticas, que até ali eram realizados com linhas rectas. Leonardo da Vinci foi dos primeiros a criar cálculos com base em parábolas e isso permitiu o desenvolvimento do uso dos canhões, que revolucionaram a arte da guerra no continente europeu do século XV em diante.
Com a invenção da imprensa, que permitiu passar mais facilmente os novos ensinamentos, e a chegada de uma nova vaga de pensadores, a ciência clássica entrou em decadência, permitindo à humanidade evoluir, quebrando um ciclo que durou cerca de 2000 anos.
Outra das características disruptivas do pensamento de Leonardo da Vinci foi o desenvolvimento da perspectiva nas suas pinturas. Esta técnica tem como característica que os vários pontos se encontram no infinito, algo que para os gregos era tabu.
“Leonardo tinha uma capacidade de visão acima da média, o que lhe permitia ver detalhes que escapavam ao comum dos mortais, extra-inteligente e com uma curiosidade infinita”, definiu João Caraça.

OS QUATRO CAVALEIROS DO APOCALIPSE

Da Vinci nasceu num tempo de grandes transformações. Um ano antes de vir ao mundo, deu-se a queda de Constantinopla à mão dos turcos, que constituíam uma enorme ameaça à realidade de então. A esta juntavam-se as guerras entre as nações, de base religiosa, as grandes fomes e a peste, algo que João Caraça comparou aos quatro cavaleiros do apocalipse.
Fazendo a ponte aos dias de hoje, João Caraça identificou aqueles que podem ser os as quatro grandes preocupações da humanidade, que são as alterações climáticas, o alastrar da violência, o crescimento das desigualdades e as novas pandemias.
Além disso, está a assistir-se a algo que o conferencista apelidou de “moleculização da economia”. É que já se criam “máquinas tão pequenas que não as vemos”, o que tanto pode ser muito bom, como pode ser muito mau. A diferença estará na capacidade de regulamentar os fins para o que a ciência e tecnologia estão a desenvolver. “Temos que perceber as implicações do que estamos a fazer”, defendeu, porque com essas máquinas microscópicas podemos ser atacados sem sequer darmos por isso.
Cada vez mais as máquinas substituem a actividade mental rotineira, porque tudo o que pode ser feito com uma “receita”, as máquinas fazem sem enganos, através dos algoritmos. Mas da actividade mental rotineira já se caminha para o campo da inteligência artificial, e isso apresenta ainda mais desafios.
João Caraça explicou que há três grandes linhas para o desenvolvimento da inteligência artificial, o master algorithm, “que pode aprender tudo”, a superinteligence, “máquina mais inteligente do que nós e que vai tomar conta de nós – algo que gera ainda muita discussão se será possível ou não”, e o trans-humanismo, que se trata de substituir partes do corpo humano por máquinas. “Todos têm aspectos muito positivos e aspectos muito negativos”, realçou João Caraça.

A TIRANIA DO CURTO PRAZO

Na conferência, que decorreu no grande auditório do CCC, estiveram cerca de 200 pessoas
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A grande problemática é que hoje tudo tem um preço, mas o valor que prevalece é o “o monetário e não o ético”.
Isso acontece porque estamos a assistir ao nascimento de uma nova ordem, que João Caraça chamou de “financeirização”. Se com a Revolução Francesa houve separação dos três poderes, antes concentrados na monarquia, agora volta a haver concentração de poder, “onde está o dinheiro”, com a agravante da “tirania do curto prazo”, que dita que “tudo tem que ser para amanhã”.
Nesta doutrina, a Google, a Amazon e a Apple controlam o que vai ser o futuro porque são as empresas que concentram a informação.
Mas a ideia de que não há alternativas é errada. “Há sempre, mas, se não as criarmos, de certeza que o que vai continuar vai ser pior”, disse João Caraça, acrescentando que essa capacidade para implementar mudanças “é a grande vitória do modernismo”.

Testemunhos

Sou aluno da Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro e vim juntamente com a minha turma assistir à conferência e acho que foi boa. Já conhecia a vida e obra de Leonardo da Vinci e sabia que estava muito à frente da sua época, não só em termos de arte, mas também na ciência, e aqui pudemos também perceber isso.
Ricardo Corsini (Caldas da Rainha)

Para quem não conhecia bem Leonardo da Vinci acho que foi uma palestra bastante esclarecedora. Eu não sabia imensas curiosidades e fiquei bastante informada. Eu conhecia mais a sua faceta de artista e nunca pensei que houvesse uma relação tão grande entre a arte e a ciência, por parte de da Vinci, como nos foi hoje mostrado.
Ema Chaves (Caldas da Rainha)

Gostei muito, fiquei a ter mais conhecimento sobre Leonardo da Vinci. Conhecia melhor a sua faceta de artista e fiquei a ter um conhecimento mais geral e global sobre esta personalidade do século XVI. Julgo que estes eventos são muito importantes, até para os jovens, para aprenderem.
Maria Serrenho (Tornada)

Gostei muito porque gosto muito do professor João Caraça e a temática é importante porque é o ligar Leonardo da Vinci, que representa uma época de grande transformação, aos dias de hoje, também de grande transformação.
Valeu muito a pena esta conferência.
Pedro Louret (Cadaval)

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