ontem & hoje

0
962
Postal Ilustrado
Joaquim António Silva - 2012

As moradias são reflexo de quem as encomendou e nelas vive (viveu). São a presença física de uma época e suas mentalidades. Algumas assumem-se como marcos arquitectónicos de identificação colectiva. Merece esse cuidado a Quinta das Cerejeiras, com residência virada para o Largo dos Aviadores, no Bombarral, assinalável no urbanismo da vila, indício da tradição vinícola do concelho, e que sobreviveu contrariando uma tendência para o abandono ou destruição de muito do património contemporâneo e industrial.
Propriedade dos herdeiros de Abel Pereira da Fonseca, aqui se concentram ainda hoje os escritórios, loja e sala de provas da Companhia Agrícola do Sanguinhal.
Com 13 anos, Abel Pereira da Fonseca (1876-1956) trocou a pequena aldeia natal do distrito da Guarda por Lisboa. Em 1906, funda a sua própria casa, surgindo a Abel Pereira da Fonseca & Companhia.
Foi na zona ribeirinha do Poço do Bispo que tudo começou. Abel Pereira da Fonseca e o sócio Francisco Assis fundaram o que viria a tornar-se num “império vinícola”. A um armazém geral, chegavam os vinhos e produtos adquiridos por intermédio das sucursais distribuídas pelo Porto, Vila Nova de Gaia, Leiria, Runa, Torres Vedras, Outeiro da Cabeça, Bombarral, Sanguinhal, Cartaxo e Torres Novas.
Justifica-se, assim, o seu interesse pelo Bombarral, onde, no início do século XX, os vinhedos detinham quase o estatuto de monocultura e ocupavam a maior parte da população.
Grandes viticultores adquiriram terras, ergueram adegas e destilarias. Abel Pereira da Fonseca, o “Rei das Tabernas”, foi um deles. Em 1911, comprou a Quinta das Cerejeiras, por 14 contos e 900 mil reis, à Companhia Geral de Crédito Predial Português, que a possuía por acção judicial da hipoteca ao viticultor Emílio Augusto de Faria Estácio. Na década de 1920, funda a Companhia Agrícola do Sanguinhal, Lda, para administrar as propriedades que já possuía na região: Quinta das Cerejeiras e Quinta do Sanguinhal (Bombarral) e a Quinta de S. Francisco (Outeiro da Cabeça), que ainda hoje se mantêm na família e integram a Rota dos Vinhos do Oeste.
O dinâmico comerciante necessitava de uma residência para as suas frequentes vindas ao Bombarral e, poucos anos depois, erguia uma moradia familiar na zona do terreno virada para a estrada pública. Aqui acaba por se estabelecer definitivamente nos anos 1930, após vender a quota da sociedade lisboeta.
Para riscar o projecto do “palacete”, chamou Norte Júnior, arquitecto então em voga, também responsável pelos armazéns do Poço do Bispo. No Bombarral, deixou uma traça de “estilização portuguesa”, irmanada com a actividade económica característica da região e do seu proprietário; para o efeito, serviu-se do repertório formal de beirais, espaços alpendrados, floreiras, janelas de pequenos vidros e azulejos, num conjunto animado pela multiplicidade de corpos e telhados desnivelados.
A moradia seria palco para actuação de outros reconhecidos artistas da capital: a oficina de vitrais de Ricardo Leone; e José António Jorge Pinto, autor dos azulejos da fachada, onde putti brincam entre cachos de uva e folhas de videira, e do interior, que ilustram o fabrico do vinho.
O monograma do torreão, os azulejos e os vitrais remetem para uma simbologia associada à vinicultura e transformaram a casa num cartaz da região e numa imagem de marca do proprietário, presente nos rótulos de garrafas logo a partir da década de 1920, à semelhança dos chateaux bordaleses.
Para além da residência, a Quinta incluía no jardim a capela da Madre de Deus, comprada por Abel Pereira da Fonseca em 1916, e uma série de infra-estruturas que a tornavam num amplo complexo agrícola: vinhas, atravessadas por rios e pela linha-férrea, pomar e horta, adegas, lagares de vinho e de azeite, abegoaria, moagem e moradias para a “malta”…
A articulação com o exterior é também vital para a percepção da Quinta das Cerejeiras. O enquadramento inevitavelmente evoluiu, sendo de 2013 a mais recente intervenção. No Largo dos Aviadores (ex-Largo João Chagas), ergue-se o monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, inaugurado em 1930, com escultura do jovem Vasco Pereira da Conceição. Desde cedo o seu embelezamento preocupou Abel Pereira da Fonseca que, nessa remodelação, oferece um candeeiro e a rega e conservação do jardim.
O resultado é, actualmente, mais do que uma residência – é agente identitário de uma vila cuja tradição vinícola tem conhecido sérias transformações, propensas ao apagamento da importância passada; é parte essencial da memória colectiva do Bombarral e, portanto, bem patrimonial a salvaguardar a nível familiar – cuja perseverança deve ser aplaudida, graças à revisão de estratégias e público(s) – e a valorizar no plano comunitário.

Dóris Santos

- publicidade -