ONTEM & HOJE

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“Voltou a tocar a campainha. Desta vez, já um toque insistente, mal-humorado, em dois tempos consecutivos: de chamada, de protesto. Recuou três passos, a sondar o efeito: nada! Nem uma réstia de luz nas janelas cerradas… Tudo escuro por dentro.

Num arrepio, ergue a gola do sobretudo. Depois, rodando ligeiramente a cabeça e os ombros, olhou de novo para trás: naquela direcção adivinhava-se, por entre as pregas húmidas da note, o dorso extenso da praia; mais adiante, em rápidos fulgores, a linha de espuma da rebentação. Continuamente, ressoavam as ondas.

Tinha deixado acesos os faróis do carro, a perscrutarem a frontaria do hotel. Mas vinha de mais longe – do meio do mar – a luz intermitente que por instantes banhava o edifício, que lhe aclarava, a espaços, o rosto impenetrável. Do meio do mar? Devia ser o farol das Berlengas.”

Assim começa o conto de David Mourão Ferreira “O Viúvo – Natal de 1962” escrito no ano referido e publicado na colectânea “Os Amantes e outros contos” em 1968.

Segundo Evelyn Blaut Fernandes, estudiosa de David Mourão, “esta novela narra o percurso de um advogado, de Lisboa, homem de meia-idade que retorna ao mesmo hotel onde havia estado há quase vinte anos. No presente da enunciação, Adriano chega a este hotel que fica à beira-mar, a um 23 de dezembro, onde pretende passar a véspera de Natal. Lugar ermo, de frente para a praia, há apenas o hotel no qual se hospeda, algumas poucas habitações e a casa dos Bandeira , o que destaca, sobretudo, um certo clima de estranheza marcado pelo despovoamento, pela paisagem lúgubre e apocalíptica. Na casa dos Bandeira, reside Rita, amiga da juventude, que será sua companhia para a noite de Natal.”

Diz-se que a história que David Mourão Ferreira conta é verdadeira. Em 1977, por iniciativa da RTP, o realizador João Roque, levou por diante o filme homólogo baseado no poeta, que seria exibido em 1978 no decorrer de uma série dedicada aos contos de escritores portugueses.

As filmagens, também realizadas numa época invernal daquele ano, tentavam recriar os tempos da época baixa da praia da Foz do Arelho do início da década de 60 e o típico cliente do Hotel Facho naqueles momentos. Trouxeram actores do cinema português daquela época à Foz do Arelho: Sinda Filipe, Lurdes Norberto, José Bringel Carvalho, Josefina Fernandes Silva e Batista Fernandes.

“Hotel do Facho, 1964. Numa praia portuguesa, cruzam-se e perdem-se personagens. São um judeu argelino, um marinheiro filipino, um marchand inglês, uma refugiada norueguesa, um agente da PIDE. Partilham tangentes, cruzam-se por desencontros, transportam fantasmas”.

Assim é apresentado o romance fotográfico “Atlântico”, de Pedro Rosa Mendes e João Francisco Vilhena, editado em 2003 pela Temas & Debates, que também é passado no Facho e que contribuiu igualmente para imortalizar aquele estabelecimento hoteleiro para a posteridade. Pedro Rosa Mendes conheceu o hotel e apaixonou-se pela sua história e pelos segredos e lendas que ele encerra, bem como pelo local, à beira do Atlântico, curiosamente ao Km zero da Estrada Nacional 360.

Recordar aqui um filme e um livro que têm como cenário o Hotel do Facho é quase suficiente para caracterizar este Ontem & Hoje. O resto está à vista. Salta demasiado à vista: entre a foto a preto e branco e a imagem colorida a casa do lado engordou, ganhou volume. E lá em cima, na colina, pespegaram-lhe uns casinhotos, que deixam adivinhar os atentados urbanísticos e paisagísticos que um poder autárquico insensível e interesseiro deixou espalhar pela Foz do Arelho.

JLAS / CC

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