ONTEM:
Uma caixa de sapatos pedida numa qualquer sapataria da cidade, ao tempo e ainda por muito tempo, uma digna Cidade Termal.
Uma caixa sem sapatos, até porque na altura nem todos os pés tinham direito a sapatos pois eram quase sempre destinados a outros pés. Numa família os sapatos, e até todo o resto da indumentária, passava muitas vezes de pais para filhos, até chegar ao elemento mais novo. A caixa de sapatos tinha para nós, putos da época, um sem fim de utilidades.
Destaco duas de particular relevo:
– A caixa como lar/abrigo de passaritos abandonados, caídos dos ninhos, a bem ou a mal, sem ajuda ou com ajuda, e que nós alimentávamos com um desvelo quase maternal. Claro que a maior parte dos passaritos acabava por morrer.
– A caixa como local de laboração dos fazedores da seda, com furinhos na tampa para que não faltasse o ar aos seus dedicados trabalhadores residentes.
Os famosos e cativantes bichinhos que devoravam folhas atrás de folhas das árvores que faziam igualmente parte do nosso encanto, porque não só davam folhas para os nossos bichos de seda, como também nos presenteavam com deliciosas amoras, que involuntariamente, penso eu, nos iam obrigando a crescer para assim podermos atingir os ramos mais altos. As famosas amoreiras da Avenida.
Dois canteiros dominavam a Avenida desde a Rua Miguel Bombarda até à Estação da CP. Estes canteiros eram também o nosso campo de jogos, um verdadeiro Multiusos, palavrão pouco conhecido à época. Jogava-se ao berlinde, à bilharda, ao pião, às corridas com caricas, ao toca e foge, e a mais um sem número de outros jogos. Às vezes, não poucas, até se jogava à pancada. Aí entravam as “seitas” que havia na cidade.
Como verdadeiros e promissores, julgávamos nós, aspirantes a craques do futebol, fazíamos, neste pelado, grandes jogatanas, ao que consta sempre sem a presença de qualquer olheiro, quer do Benfica, quer do Sporting (na altura o F. C. Porto ainda não era tido como objetivo, isto segundo o nosso exigente ego).
Durante estes nossos jogos e em qualquer uma das modalidades praticadas, era só estender o braço e lá nos caía mais uma amora pelas goelas abaixo. A Avenida era para todos nós uma entrada nobre da cidade, principalmente para os termalistas que chegavam de comboio e eram muitos. As casas que a ladeavam não tinham mais que três andares e algumas delas eram vivendas. Recordo as que pertenciam à família Vieira Lino. Perfeitas peças dignas de um qualquer museu Urbano. Tudo isto dava à Avenida e à Cidade uma dignidade muito peculiar. Era o princípio de um dos percursos que levavam os termalistas até ao Hospital Termal mais antigo do Mundo, o nosso Hospital Termal, o tal que é só o mais antigo do mundo agora interpretado de forma tão “desplicente e deselegante” pelos iluminados portadores do saber e da decisão do que “é bom” e do que “não é bom”, igualmente apostados em tratar o Parque e a Mata à sua maneira. Estranha maneira ao que parece, na linha dos que matam argumentando sempre que o fazem pelo amor que têm à vitima.
Havia na altura muita coisa em comum entre as cidades termais.
Tinham características de uma singularidade muito própria. Urbanização muito semelhante e muito afectiva. Recordo a Avenida, o som do piano e a serena imagem da mãe do nosso Dr. Vieira Lino, que por vezes nos presenteava com o delicado som da sua competência musical. Recordo o N. e a sua Harley-Davidson. O N. era por nós, putos, o herói filho da Parteira. Os pais dos putos conheciam-no somente como o filho da Parteira e o Pai do N. era por todos conhecido como o marido da Parteira, alguns até o referiam (línguas viperinas-1) como o sendo também de profissão.
Moravam na Avenida, no mesmo andar onde também a mãe do N. atendia as suas clientes, ao que constava, (línguas viperinas -2) as que queriam ter a criança e as outras que preferiam não…
O N., um belo dia montado na sua Harley-Davidson e na senda do grande D. Quixote, decidiu enfrentar a fachada da Estação e acabou por entrar pela meia porta, sempre aberta; só que a largura da meia porta, era bem mais estreita que a largura do volante da Harley. As consequências foram as que facilmente e sem qualquer esforço criativo se podem imaginar.
Outra imagem que recordo situava-se na esquina da Avenida com a Rua Raul Proença. Um quintal com um macaco, mesmo macaco assumido, não dos outros. Estava preso a uma corrente com argola na extremidade que, enfiada num pequeno poste (cerca de dois metros de altura), lhe permitia somente subir e descer o dito poste. Era uma personagem com quem nós, do lado de cá do muro, tínhamos sempre que implicar. O que mais nos irritava era o ar sobranceiro com que sempre nos fitava do cimo do poste, embora vivendo em precárias condições.
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Joaquim António Silva – 2012[/caption]
HOJE:
Nada resta do passado, a não ser, claro está, o edifício da CP que não se sabe por quanto tempo vai aguentar. Vontade parece não faltar à intenção de acabar com os seus serviços. Resistiu ao ataque do N.
Mas as máquinas que avançam hoje sobre as fachadas dos edifícios, a destruir em nome da modernidade e de melhores serviços, ou simplesmente em nome de coisa nenhuma, não são tão complacentes quanto a Harley do N. o foi.
Dizem que as alterações climáticas tiveram influência em todo este descalabro urbanístico e cultural. Alterações que provocaram e provocam mudanças de comportamento nas aves migratórias, em todas as aves, em todas elas, mas muito em particular nos patos bravos. Há até quem diga que algumas destas aves ficaram por cá e que ganharam corpo de gente e hábitos de gente. Diz a lenda que aproveitando certos cargos opinativos e de influência, acabaram por dar um grande contributo para o que hoje se vê como imagem da cidade. Na Avenida quantas garagens destes bairros construídos na vertical é que estão funcionais? Ou que foram construídas com essa finalidade?
Agora está a alvo de mais uma mutação. Com que critérios? Com que objetivo? Vamos ver, como alguém diz que alguém diz!
A propósito, e só a nível de exemplo, embora não tenha nada a ver com a Avenida, (se calhar até tem) veio-me à memória uma tal campanha eleitoral de um tal partido, que tinha como umas das suas promessas terminar as obras do Cine-Teatro Pinheiro Chagas. E não é que acabaram mesmo? Acabaram as obras e acabou para sempre também o Cine-Teatro Pinheiro Chagas. Esfumou-se pura e simplesmente. Ilusionismo do mais elevado nível. O nosso Luís de Matos não teria feito melhor.
Por mais voltas que dê e por mais que os meus neurónios se esforcem a estudar nas suas bibliotecas privadas (alguns até se deslocaram de propósito à Torre do Tombo), eu nunca consegui entender porque é que para se fazer alguma coisa de novo temos, de forma sempre tão ligeira (para não usar outra qualificação), que destruir o antigo e acabar assim com a história urbana de um qualquer lugar. Poderá servir como exercício pensar no que a cidade, a nossa cidade, já perdeu até hoje de Património Urbano. Não é preciso recuar muito no tempo.
É esta a Cidade de ontem e de Hoje. O Ontem já aconteceu, o Hoje ainda delega nas nossas mãos e na nossa vontade a possibilidade de salvar alguma coisa.
Rogério Guimarães































