Morávamos nos prédios do Viola, que nessa altura marcavam o fim da cidade das Caldas ali para o lado noroeste. Depois desses prédios não havia nada, ou quase nada até ao Campo. De vez em quando acampamentos de ciganos apareciam ali perto da fonte, do lado oposto aos armazéns da Vácuum, com as suas carroças puxadas pelos burros, cheias de alguidares, cobertores, panelas e muitas crianças descalças e de rabinho à mostra.
Eu e os miúdos meus vizinhos, mais ou menos da minha idade, estávamos divididos entre os mais “remediados”, que morávamos na parte do prédio que dava para a Rua Fonte do Pinheiro, onde as casas eram maiores e as rendas mais elevadas, e os menos “remediados”, que moravam na parte do prédio que ficava para lá dos quintais, depois do páteo da Seol, para onde dava a janela da cozinha e a do meu quarto. Nestes quintais divididos por muros de metro e meio de altura, cada família tinha as suas galinhas e o seu canteiro de salsa. No meu quintal chegou a pastar um cabritinho preto que ofereceram ao meu pai e pela vida do qual tanto intercedi que foi escapando por ali, até se transformar num enorme bode que levaram, nunca soube para onde, num dia trágico em que me distraí…

Divididos estávamos, os miúdos… mas brincávamos todos juntos no meio da rua. A rua era utilizada para circulação viária quase só à segunda feira. Nesse dia da semana passavam carroças puxadas por bois ou por burros, que levavam produtos do campo para a venda na feira semanal que se realizava no largo do burlão, entre a Igreja e o armazém da Federação Nacional dos Produtores de Trigo. Passavam também algumas bicicletas. Nos restantes dias da semana havia apenas dois ou três carros estacionados que pertenciam a pessoas ali da rua. Um deles era o do meu pai, o outro era o do pai da Maria dos Anjos e da Fernandinha e o outro era do Sr. Limão, que como era caixeiro-viajante, só aparecia de vez em quando. Por isso na maior parte do tempo, a rua era toda nossa.
Às horas das refeições as nossas mães vinham-nos chamar à janela e muitas vezes os meninos que pertenciam ao lado de lá do prédio alguns dos quais ninguém chamava, iam connosco, almoçar a nossas casas, para depois continuarmos as brincadeiras.
Brincávamos às escondidas, à macaca, com traços desenhados com giz no alcatrão, que terminava exactamente na esquina do prédio. A seguir ao prédio era terra batida até à fonte que era no largo da vaccuum e dava também para a linha do comboio. Jogávamos ao ringue, e os rapazes, para além de tudo isto, jogavam à bola.
Se por acaso víssemos aparecer ao cimo da rua, junto à mercearia da D. Ermelinda, algum carro, parávamos o jogo por um bocadinho, púnhamo-nos no passeio à espera que a viatura passasse, e depois continuávamos tentando reconstituir as posições dos vários jogadores antes da interrupção.
Num domingo, muito a despropósito, pensei eu cá para mim, saímos de casa muito cedo. A rua estava deserta ainda. Metemo-nos no carro, que o meu pai deixou deslizar até ao fim do alcatrão, aproveitando uma ligeira inclinação descendente e só depois do carro ter parado, por ter perdido o balanço, é que o ligou. Fomos para o casal que era uma pequena quinta, onde então viviam os meus avós, que ficava a caminho do Campo, aí a uns dois quilómetros dos prédios do Viola. Tinha que se passar a linha do comboio e andar ainda um pouco, sempre ao lado de um canal aberto, mal cheiroso conhecido por “rio do mijo”. Houve tantos cuidados inusitados, saímos tão devagarinho que fiquei muito admirada. Passámos o dia todo fora. Era noite escura quando voltámos para nossa casa, os meus pais agindo, como se viéssemos a chegar de muito longe.
Na altura disseram-me que o meu pai achava que ia ter a visita de alguém, de quem não gostava muito e com quem não lhe apetecia encontrar-se, preferindo passar o dia com os pais, o que me pareceu perfeitamente aceitável, ainda por cima, depois de um dia bem passado, no campo a brincar .
Só passados muitos anos consegui juntar as pontinhas desta embrulhada e perceber o que realmente se tinha passado:
– Eram as eleições do regime!
O meu pai não queria votar, por causa da palhaçada que estava montada para manter o regime e resolveu as coisas desta maneira…
Helena Arroz































