A jornalista Zélia Oliveira e o investigador José Matos consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros para fazer a “fita do tempo” dos acontecimentos que levaram à queda da ditadura, em abril de 1974. O resultado é o livro Rumo à Revolução – Os meses finais do Estado Novo
A poucos meses do 25 de Abril de 1974, Portugal procurava desesperadamente comprar armas para manter o conflito em África. Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, foi a Paris, em janeiro desse ano. A documentação existente no Arquivo Diplomático Português não fornecia informação relevante sobre o teor da visita, mas as notícias dos jornais estrangeiros diziam que “Portugal tinha ido pedir armas a França”, o que despertou a curiosidade dos autores. Zélia Oliveira foi a Paris e, no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, confirmou que “realmente o ministro português tentou convencer os franceses da importância de nos ceder material militar”, conta à Gazeta das Caldas.
O isolamento português, ao nível da política internacional, o embargo de armas ao país por parte dos Estados Unidos e o facto de França ter dado independências às suas colónias, levou os franceses a tentarem, “subliminarmente”, que o governo português mudasse de política e iniciasse conversações, sobretudo na Guiné, onde “estávamos a perder a guerra”, com Portugal a contrapor que estava a defender em África o mundo ocidental. O que Zélia Oliveira também descobriu, nesse arquivo, foi que os franceses acompanhavam, “quase ao minuto”, o que se passava em Portugal. “Chegou a haver dias em que o embaixador francês em Lisboa mandava dois telegramas para Paris a relatar o que se passava cá”, conta a autora, realçando o interesse dos franceses com a nossa realidade da época.
A tentativa de obtenção de armamento, para manter a guerra nas colónias, envolveu também os Estados Unidos. Noutro subcapítulo é abordada a visita do então secretário de Estado americano, Henry Kissinger, a Portugal, durante 22 horas, em abril de 1974. Também neste caso a falta de informação relevante por parte da imprensa portuguesa (que apenas fotografou os líderes num jantar no Mosteiro dos Jerónimos e noticiou um comunicado conjunto) levou José Matos, sem ir à América (porque os americanos desclassificam muito os documentos) a ter acesso a informação do departamento de Estado de Washington, que confirma esse pedido de armamento.
EUA oferecem central nuclear
Em outubro de 1973, os Estados Unidos socorreram Israel, que estava a ser bombardeado pela Síria e o Egito e, para o fazer precisavam da Base das Lages, nos Açores, para abastecimento dos aviões. Esta revelou-se a oportunidade para Portugal obter contrapartidas, desde logo armamento. A lista, publicada no livro, é vasta, e os Estados Unidos “dizem que sim, mas demoram imenso tempo a cumprir”, tendo as negociações decorrido até 11 de abril de 1974. “Como havia o embargo de armas a Portugal não conseguimos ter um documento que o confirme, mas sabemos que os mísseis estavam estacionados na Alemanha, prontos para vir para Portugal”, revela Zélia Oliveira, acrescentando que, através de correspondência após a revolução, “o novo poder manda desmantelar tudo isso”.
O curioso destas conversações entre um pequeno país e uma potência internacional é o facto dos Estados Unidos não quererem fornecer armas e terem oferecido outras contrapartidas, como a construção de uma central nuclear no país. Portugal ainda pediu aviões, bolsas de estudo no valor de um milhão de dólares, fornecimento de cereais, colaboração técnica e financeira para o aproveitamento de energia geotérmica nos Açores. A 11 de abril, Kissinger responde a Rui Patrício, a dar conta de que o fornecimento de qualquer equipamento militar a Portugal tinha de ter a aprovação do congresso e que essa aprovação não podia ser dada como garantida. “Embora na carta não se refira aos mísseis que Portugal tanto queria, a verdade é que Kissinger consegue o seu fornecimento por vias tortuosas”, explica a autora do livro, acrescentando que, aproveitando o facto de Israel estar a receber grandes quantidades de armamento, Kissinger terá convencido os israelitas a desviar 500 mísseis Red Eye do seu stock e enviá-los para Portugal através de um intermediário alemão. “O número de mísseis encomendado mostra que estes não se destinavam apenas à Guiné, onde as forças portuguesas necessitavam apenas de 200, mas também para outros pontos das colónias portuguesas”, concretiza.
Origem em tese de mestrado
Há cerca de uma década Zélia Oliveira concluiu a tese de mestrado, em História Contemporânea, sobre a crise final do regime do Estado Novo, onde abordou os últimos meses de governo de Marcello Caetano. Consultou diversos arquivos e documentos, biografias, entrevistou o filho de Marcello Caetano e tentou fazer uma reconstrução desses meses finais de um regime que, para o exterior aparentava estar tudo bem, mas que debatia-se com insatisfações a nível interno. O “jogo de sombras”, de que Zélia Oliveira fala refere-se ao lançamento do livro do general António Spínola, que diz que não é possível manter a guerra colonial se não for por uma solução política e o descontentamento dos jovens oficiais também com a guerra, que o governo queria manter a todo o custo.
Terminada a tese, a editora da Lusa não pensou mais nesta temática até que, há dois anos, foi contatada pelo investigador em História Militar, José Matos, a propor um livro conjunto, juntando a sua investigação já feita com uma parte militar e de informação sobre as colónias. Surge assim Rumo à Revolução – Os meses finais do Estado Novo.
O livro, numa edição Guerra e Paz com o alto patrocínio da Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril, foi lançado na passada terça-feira, 18 de abril, e vai contar com diversas apresentações pelo país. A primeira está prevista para amanhã, 21 de abril, em Santarém, seguindo-se, no sábado, nova apresentação em Estarreja. A obra será traduzida para inglês por uma editora especializada em história militar do século XX.
16 de Março permitiu ver como o governo se organizou
O 16 de Março, ou Golpe das Caldas, tem também um subcapítulo no livro. De acordo com os autores, apesar de ter falhado, foi determinante para a revolução. “O golpe permitiu a Otelo Saraiva de Carvalho, que é o grande estratega, perceber como é que o governo se organizou para defender o regime”, refere Zélia Oliveira. A co-autora da obra acrescenta ainda que a intentona das Caldas permitiu ao capitão de Abril perceber que se houvesse um golpe bem organizado este seria bem sucedido. Também importante foi o facto dos militares que participaram no 16 de Março terem sido depois espalhados por diversos pontos do país, e que, ao contrário do esperado pelo governo, de esmorecer o movimento, acabou por “permitir espalhar a semente por todo o lado”. Na conversa que teve com o filho de Marcello Caetano, Zélia Oliveira ficou a saber que o governante “tinha uma noção de que as coisas estavam a acontecer, não sabia era quando”. Inclusivamente, depois de apresentar a demissão, que não foi aceite pelo Presidente da República, Marcello Caetano vai discursar à Assembleia Nacional, onde garantiu que o país estava firme e que podia contar com as forças armadas. Nas célebres “Conversas de Família”, na televisão, e noutras iniciativas públicas o presidente do Conselho do Estado Novo tenta mostrar que reina a tranquilidade mas, por detrás, está a negociar desesperadamente por armas, porque percebe que está a perder a guerra em África, sobretudo na Guiné.
Salgueiro Maia, citado no livro Rumo à Revolução – Os meses finais do Estado Novo, diz que “o levantamento [de 25 de Abril] fazia-se quanto mais não fosse para libertar os camaradas das Caldas da Rainha”. ■






























