A revista E do jornal Expresso publicou em 12 de Setembro último uma investigação da jornalista Anabela Natário sobre o crime das Águas Santas (Caldas da Rainha), que também foi contado nas páginas da Gazeta das Caldas nessa época. A história remonta a 1926, com uma tentativa de homicídio passional que condenou injustamente António Fragoeiro à prisão, onde acabou por morrer quando já se sabia da sua inocência.
A história chegou distorcida aos dias de hoje e a própria família optou por esquecê-la, pelo que repor a verdade e devolver a paz aos familiares foi a maior satisfação para a jornalista daquele semanário. O caso acabou por ditar uma mudança no Código do Processo Penal português em 1929.
Anabela Natário descobriu este caso numa das pesquisas que faz habitualmente em jornais antigos. Numa edição do Diário de Lisboa viu uma notícia sobre um condenado inocente que morreu na prisão. “Há coisas nas minhas pesquisas que me encantam mais que outras e esta deixou-me a pensar. Faz sempre impressão uma pessoa morrer na prisão e ainda mais inocente”, disse a jornalista à Gazeta das Caldas.
Como a peça que encontrou não explicava bem o caso, começou a pesquisar mais. Uma pesquisa na internet também revelou a data do crime, através de uma fotografia que é espólio do jornal O Século, que está na Torre do Tombo e pode ser consultado online. Encontrou notícias em vários jornais, especialmente na Gazeta das Caldas, onde encontrou um artigo mais aprofundado na edição do dia 17 de Janeiro de 1926. Para além dessa notícia, a jornalista do Expresso encontrou noutros artigos da Gazeta das Caldas, publicados naquela altura, que a ajudaram a perceber o clima instável que se vivia a nível político.
Numa outra pesquisa, Anabela Natário encontrou outro António Fragoeiro, que tinha um anúncio num site de classificados. Arriscou enviar um e-mail e veio a revelar-se que se tratava de um bisneto do homem injustamente acusado. Depois falou com o pai deste António e com outros netos e bisnetos. Não ajudaram muito a desvendar o caso, até porque a família preferiu esquecer o assunto. A imagem que foi passando de geração em geração era que António Fragoeiro era culpado e alguns dos descendentes até pensavam que tinha assassinado alguém, conta Anabela Natário.
A jornalista até acabou por ser um veículo esclarecedor do que verdadeiramente se passou. Essa foi, aliás, “uma satisfação que a história deu, tornar as coisas mais claras e trazer paz à família ao dizer-lhe que esta pessoa não fez mal a ninguém,”, refere.
O caso não foi de fácil reconstituição, porque alguns dos locais onde tudo se passou já não têm o mesmo nome. Os artigos que foram encontrados nos jornais também nem sempre estavam completos. “Encontrei artigos muito pormenorizados e outros com coisas meias ditas, porque na altura se achavam que as coisas já se sabiam, não completavam as informações”, conta. Mas os olhos treinados levaram-na pelo caminho certo e vários artigos com informação comum confirmaram-lhe a história, uma vez que não foi possível encontrar o processo judicial.
O resultado foi um enredo “riquíssimo, mesmo do ponto de vista humano”, considera, pois retrata até o ambiente de uma vila (Caldas da Rainha) que vivia tempos conturbados na política interna, reflexo do que se passava também no país e que resultou na revolução que impôs o Estado Novo.
O artigo na E, a revista do Expresso, tem cinco páginas, mas Anabela Natário revela que teve que o condensar muito, “porque dava pano para mangas e um óptimo filme”.
Caso ditou mudança no código do processo penal
Este caso teve ainda mais importância na altura porque ditou uma mudança no código do processo penal, que entrou em vigor em 1929 e que teve como um dos redactores Martinho Nobre de Melo, que chegou a defender António Fragoeiro.
“Era um advogado que estava a subir nas hierarquias – depois esteve ligado aos governos do Estado Novo – e fazia questão em alterar o Código do Processo Penal. Interessou-se pelo caso e graças a ele e ao esforço que fizeram provaram que o réu era inocente, mas não o conseguiram tirar a tempo da prisão”, conta Anabela Natário.
O desfecho trágico, com a morte na prisão de uma pessoa que já se sabia estar inocente, levou à alteração nos processos. “Serviu para exemplificar que não se pode manter em prisão pessoas inocentes até novo julgamento”, acrescenta.
A caldense Teresa Brandão, neta de António Fragoeiro, disse à jornalista que a família considera que o avô foi assassinado na prisão. “E é bem possível”, acredita a jornalista Anabela Natário. “Apesar de todos estarem contentes com a inocência, era muito problemático libertá-lo”, considera. Por um lado, porque as acareações que revelaram os autores do crime não constituíam prova concreta à luz da lei que estava em vigor. E por outro lado, por razões de natureza política. “As acareações são incríveis, só que havia padrinhos de um lado e de outro, a situação política era conturbada, tanto no país como nas Caldas, e o homem é que acabou por sofrer”, conclui.
A reconstituição do caso
Corria a madrugada de 10 de Janeiro de 1926. Vindo de uma festa da matança de um porco juntamente com a mulher, o moleiro Joaquim Luiz foi alvo de uma emboscada, entre os Casais da Brogueira e as Águas Santas, e foi atingido com dois tiros que lhe perfuraram o peito e as costas. Sobreviveu.
A Gazeta das Caldas noticia o “atentado” uma semana depois, na edição de 17 de Janeiro de 1926. A vítima conta como foi atacado e acusa António Fragoeiro, de quem diz ter reconhecido a voz. Mas o autor do artigo comenta que “havia ali um mistério que se procurava manter”, e que ficou por resolver mais dois anos.
Na manhã do dia 10 de Janeiro, António Fragoeiro foi abordado em casa por quatro militares e o cabo da GNR, João Baptista, e pelo regedor Joaquim Amaro. Uma busca à residência permitiu encontrar a alegada arma do crime, uma caçadeira, e umas botas cujo desgaste da biqueira coincidiria com as pegadas deixadas no local.
António Fragoeiro é levado preso e depois de alguns dias em cativeiro, confessa o crime, principalmente para que os familiares, também eles detidos, fossem libertados. O autor das investigações e dos interrogatórios foi um famoso agente, Custódio das Dores, cujos métodos e persistência também terão ajudado a “arrancar” a confissão.
O caso é julgado quase um ano depois numa audiência resolvida em dia e meio. Apesar dos 40 depoimentos serem duvidosos e baseados no “ouvi dizer”, o júri decidiu em uma hora condenar António Fragoeiro a 8 anos de prisão no continente ou a 12 de degredo no ultramar.
Mas nem os jornais ficaram convencidos das razões do crime, que seria passional. A Gazeta das Caldas de 3 de Abril de 1927 faz referência à sentença: “Oito anos de prisão maior celular, ou na alternativa de dôze de degredo em pocessão de 1ª classe, mil escudos de multa para o Estado e três mil de indemnização ao queixoso”.
No final de 1927, o caso volta a ser investigado e novamente por um agente mediático, Baldy Belém, célebre por ter prendido o suspeito de assassínio de Sidónio Pais. É um agente que já antes tinha descoberto erros noutras investigações.
A reconstituição do crime
Por essa altura, a 4 de Janeiro de 1928, Joaquina Maria, mulher de Joaquim Luiz, confessou ao marido que tivera um caso com o antigo criado do moleiro, Benigno dos Santos, e que este a ameaçava e lhe pedia dinheiro. No dia seguinte é levada pela GNR para interrogatório e o ex-amante é detido. Ambos confessam a sua quota parte no crime, mas atiram a responsabilidade um para o outro.
João Baptista, o cabo da GNR que recolheu as provas em casa de António Fragoeiro, foi interrogado por Baldy Belém, mas manteve a mesma versão. O moleiro, vítima dos dois tiros, porém, confirma ao agente o desabafo da mulher. Admite não ter reconhecido a voz de Fragoeiro e que foi induzido por Joaquina a incriminá-lo. Joaquina até terá, primeiro, atirado as culpas para um cunhado, mudando depois o alvo para António Fragoeiro, recuperando para o efeito desavenças entre ambos sobre limites de terrenos.
Quando soube do resultado da nova investigação, António Fragoeiro escreveu a Baldy Belém, acusando João Baptista como o principal maquinador da cilada que lhe montaram. Há testemunhas que alteram o depoimento que tinham feito em tribunal, incluindo Florindo – filho da dona de casa que serviu o serrabulho da matança de porco – que admitiu que António Fragoeiro não tinha, afinal, questionado se Joaquim Luiz estaria presente.
Nas acareações, Joaquina e Benigno confessaram e descreveram o crime entre acusações mútuas e agressões. Benigno foi o autor dos tiros, Joaquina arquitectou o plano. A mulher já tentara assassinar o marido com veneno das formigas, sem qualquer sucesso.
Confirmação da nova versão sem resultado
António Fragoeiro, presente numa segunda acareação, ouve tudo da boca dos dois autores do crime, incluindo que a caçadeira de onde saíram os disparos foi a do próprio Joaquim Luiz. Ouve também o regedor já aposentado, Joaquim Amaro, confirmar que a arma de Fragoeiro tinha bolor no fecho, e não marcas de disparo recente, e que o cabo João Baptista tinha modificado as pegadas ao verificar que as botas apreendidas não coincidiam. Já este insistia na sua versão e só a alteraria em novo julgamento.
Baldy Belém dá a investigação por concluída, Joaquina e Benigno são presos, para serem libertados pouco tempo depois. Sousa Monteiro, delegado do Ministério Público, emite um comunicado a 14 de Janeiro de 1928, na primeira página da Gazeta das Caldas e em mais uma secção nas interiores, em que diz não haver nada que permita o prolongamento da prisão preventiva e que já havia um “condenado definitivamente”. Considera, por isso, ilegais as investigações de Baldy Belém. Sousa Monteiro chega até a insinuar que a influência de Pinto Bastos – proprietário da Quinta do Negrelho, onde António Fragoeiro era feitor, e homem influente à época na jovem cidade das Caldas – poderia estar por detrás da confissão de Benigno e Joaquina.
Há pedidos de forças vivas da cidade para libertar Fragoeiro. E Benigno, perante a revolta popular, diz que, feita a confissão, não ter culpa de não o prenderem. O povo acredita que Sousa Monteiro está a proteger Benigno, irmão de uma sua criada.
Entretanto surge autorização do ministro da Justiça para a revisão do caso e, apesar de alguma resistência do delgado do Ministério Público, a 7 de Abril de 1928 os advogados de António Fragoeiro, Martinho Nobre de Melo e Campos Coelho, podem começar a inquirição das testemunhas ouvidas por Baldy Belém.
Contudo, cerca de um mês depois, António Fragoeiro morre na prisão do Limoeiro com uma congestão pulmonar, o que pode indicar envenenamento. Esta teoria não foi, contudo, confirmada uma vez que a esposa Rosalina se opôs à autópsia, chocada e desgastada com todo o processo.































Sou o Bisneto de António Fragoeiro, obrigado pelo excelente artigo. Cumprimentos