Como a juventude vive a Revolução dos Cravos, a democracia e o ativismo político foi o mote para uma conversa que abordou algumas das questões que mais preocupam os jovens na atualidade e para o futuro, como o trabalho, o apelo da emigração e a crise climática
Gazeta das Caldas juntou, virtualmente, à mesa três jovens, todos eles com formação superior e vida ativa política, para discutirem os desafios que se colocam às novas gerações. Como vivem os jovens o 25 de Abril e como olham eles para os próximos 50 anos no país, no mundo e na sua cidade natal, foram os temas colocados à discussão e nenhum ficou sem resposta, numa conversa moderada pelo diretor convidado para esta edição especial dedicada aos 50 anos da Revolução dos Cravos, Luís Nuno Rodrigues.
Nesta mesa “virtual”, porque na impossibilidade de juntar todos, a conversa foi realizada por videoconferência, estiveram Inês Pires, formada em Bioquímica e Biologia Molecular e Celular e que está, atualmente, a estudar Ciências Farmacêuticas na Universidade de Lisboa e foi cabeça de lista do Livre por Leiria nas últimas legislativas, Manuel Martins, historiador e antigo presidente da Juventude Socialista das Caldas da Rainha, e Andreia Galvão, licenciada em Ciências da Comunicação, atriz de teatro e ativista, que já teve ligação ao Bloco de Esquerda.
Começando pela vivência do 25 de Abril, os três jovens concordam que se vive de forma diferente nos grandes centros urbanos do que nos mais pequenos, como as Caldas.
Diferentes vivências fazem com que o dia que assinala o fim da ditadura em Portugal seja vivido de forma diferente. Na sua experiência familiar, Andreia Galvão diz que, como os pais estavam emigrados nessa altura, “o 25 de Abril não é tão vivido como em famílias tradicionalmente portuguesas. O meu pai acaba por ter até mais relação com a história da luta colonial em Cabo Verde, em específico, e o 25 de Abril aí tem claramente importância, mas não da mesma forma”, conta.
Apesar de o 25 de Abril ser abordado na escola, a ativista refere que só começou a viver a data depois de ter ido estudar para Lisboa, “e ter mais contacto com pessoas de esquerda, para as quais o 25 de Abril é uma coisa muito vivida”. Fora dos grandes centros urbanos, “para a maioria dos jovens e das pessoas em geral, o 25 de Abril é uma data, como são outras”, sustenta.
“Nós aprendemos sobre o que é o 25 de Abril desde o primeiro ciclo e ao longo do nosso percurso curricular vamos ganhando mais profundidade sobre o que foi e o que significou”, complementou Inês Pires, que focou, além disso, um aspeto nem sempre lembrado da ditadura: a repressão sobre as mulheres. “O facto de não poderem trabalhar, comprar uma casa, ou sair do país sem autorização do marido”, lembrou.
Inês concordou com Andreia Galvão que a vivência é diferente em Lisboa e no Porto, “se calhar por termos estado mais longe dos acontecimentos”, defendeu.
Manuel Martins falou da sua experiência pessoal para explicar isso mesmo. “Não é por acaso que eu faço questão de quase todos os anos ir viver o 25 de Abril na Avenida da Liberdade, em Lisboa, em vez de ficar pelas Caldas, porque aqui não há aquela cultura de ir para a rua, de sentir aquele ambiente e perceber que foi por causa daquele dia, em 1974, que nós podemos ter a democracia que temos hoje e que é necessário defender. Quem adormece em democracia pode vir a acordar em ditadura”, afirmou.
O jovem historiador dá mérito em particular a dois professores por ter essa visão. “Eu tive o verdadeiro privilégio de ter tido dois professores de História que foram excecionais, o Rui Correia e a Cândida Calado. São duas pessoas com grande sensibilidade para a História, que envolvem os alunos no conceito de cidadania, de os fazer compreender não só que é importante adquirir o conhecimento daquilo que se passou, mas também que se passou com pessoas reais”, contou.
A participação no movimento Vida Justa, que trabalha com populações que vivem em condições precárias, muitas delas imigrantes a viver em bairros sociais, deu a Andreia Galvão uma perspetiva diferente. “Foi aí que percebi que há pessoas que não vivem a democracia”, aponta. Andreia Galvão fala de partilhas de relatos de violência policial, situações de intervenção que nunca seriam toleradas noutros contextos sociais, mas que ali acontecem. “Ao ouvir esses relatos, pensei: estas pessoas não vivem no mesmo país que nós… não vivem sequer em democracia, vivem numa espécie de lei marcial”, lamentou. Este é um dos pontos que faz Andreia Galvão acreditar que “há mesmo sítios onde falta fazer Abril, a nível económico, social, de direitos e liberdade de expressão”.
Outro desafio para a democracia é, para Manuel Martins, aumentar a participação política, algo que só pode ser realizado com a educação. O antigo dirigente da JS falou da importância de “cada um ter uma voz ativa e não se remeter simplesmente ao abstencionismo e ao caciquismo”.
Inês Pires alerta, por outro lado, que o risco do crescimento da extrema-direita é um desafio para a democracia, pelo que continua a fazer sentido celebrar o 25 de Abril.
Os desafios nacionais
Para combater este crescimento, é preciso que os portugueses não sintam a necessidade de votar num partido de extrema-direita e de se associarem a esses movimentos. “Temos que tentar perceber o porquê de os portugueses estarem frustrados com o nosso sistema político”, sustentou Inês Pires.
E é preciso reconquistar esse eleitorado que se está a refugiar na direita radical, “e mostrar que a democracia funciona, apesar de todos os seus defeitos”, acrescentou Manuel Martins. O historiador sublinhou que os problemas que afetam a sociedade portuguesa “são bastante reais e concretos, como o custo da habitação, os baixos salários”, mas não se corrigem “com o estalar dos dedos de alguém que se apresenta como vindo de fora, que vem deitar a casa abaixo e construir uma nova”.
Seguindo a alegoria, Manuel Martins defendeu que a casa precisa, sim, de manutenção, mas que esta começa em todos os cidadãos, e volta a apontar como rumo o dever e participação cívica. “Temos que tentar ser mais ativos politicamente para que os nossos problemas, que são justíssimos e que são concretos, ganhem peso eleitoral para que os dirigentes tenham a necessidade de os resolver”, apontou.
Um dos problemas que mais afeta o futuro do país é a nova diáspora, os jovens que, com elevado nível de formação, partem à procura de oportunidades que não encontram em Portugal. “Somos incentivados a seguir os estudos superiores e, quando terminamos, não temos um trabalho que seja bem pago e que valorize o nosso conhecimento”, apontou Inês Pires. “Precisamos de mudar o nosso modelo de desenvolvimento, para que nós jovens possamos ficar em Portugal e contribuir para o futuro do país, porque eu acho que muitos de nós queremos ficar, só que não nos dão as oportunidades”, completou.
À argumentação de Inês Pires, Andreia Galvão acrescentou a escalada do custo de vida no país. “As pessoas veem que, se calhar, pagam menos de casa na Bélgica, em França, ou na Alemanha, e lá ganham mais”, apontou. Mas Andreia Galvão foi mais além e disse que há um problema que não é só dos jovens, de distribuição de riqueza. “Durante a pandemia e, depois, com a guerra na Ucrânia, houve a perturbação da circulação de gás na Europa e as grandes empresas energéticas tiveram lucros extraordinários, o que significa que, apesar de haver alguma justificação na inflação, houve acumulação de capital que brutalizou as pessoas que precisavam de gás e não tinham outras formas de abastecimento”, afirmou, lamentando a ausência de políticas de distribuição de capital num governo supostamente socialista.
Os desafios globais
Problema caro aos jovens é o da ecologia. “Ainda recentemente passou nas notícias que os preços do cacau vão aumentar, porque as colheitas de cacau foram destruídas nalguns países africanos por causa das alterações climáticas”, referiu Andreia Galvão, acrescentando que este é um problema que vai começar a ser recorrente.
Inês Pires lembrou que a crise ecológica tem impacto para além do sistema financeiro e que poderá provocar o colapso dos ecossistemas. “Estão a abater árvores para colocar painéis solares, o que é completamente inaceitável. As florestas, os mares, também são importantes para o combate às alterações climáticas, como assimiladores de carbono e pelo papel na regulação do clima”, disse. E, no fim da cadeia, poderá estar ameaçada a produção de alimentos. “O facto de os polinizadores estarem à beira da extinção, porque estamos a destruir os seus habitats, faz com que tenhamos problemas em termos de segurança alimentar nos próximos tempos. Esta crise climática que vivemos não pode estar separada da crise da biodiversidade, mas a conservação da biodiversidade não dá dinheiro…”, criticou, lembrando que uma crise alimentar potencia fenómenos de migração, refugiados, escalada do ódio, dos conflitos armados e de movimentos políticos populistas.
O futuro traz também questões relacionadas com trabalho e rendimento, ligadas à ascensão da tecnologia e da inteligência artificial, constatou Manuel Martins. O historiador defendeu que é preciso repensar a ideia de crescimento infinito da economia, assim como o ideal de que as pessoas trabalham para terem um final de vida com lazer e dignidade. “Temos economias cada vez mais sofisticadas, que vão dispensando cada vez mais trabalhadores, porque já não têm esse tipo de necessidades. Mais tarde ou mais cedo, temos que reformular a organização social para uma em que as pessoas já não terão como fim único trabalhar, com a adenda de que talvez venham a ter períodos de lazer como reforma secundária”.
Inês Pires acrescentou que será preciso “criar uma condição de esperança para as pessoas terem uma vida digna, porque também a falta de rendimentos terá de ser compensada de alguma forma”.
Andreia Galvão não acredita no fim da necessidade de mão-de-obra. “Na verdade, toda a história tem sido o oposto, quando tínhamos ferramentas para que as pessoas trabalhassem menos, as pessoas passaram a trabalhar mais”, afirmou. “Acho que não há um determinismo tecnológico”, acrescentou, dando como exemplo a luta recente em Hollywood contra a aplicação de inteligência artificial, quer no trabalho dos atores, quer dos guionistas.
A estes, Andreia Galvão acrescentou outro desafio para o futuro da humanidade, que chamou de “crise de esperança no Ocidente” e que, na sua opinião, a guerra na Palestina veio agudizar. “Nós europeus achávamos que éramos o continente dos direitos humanos, das pessoas que defendem os oprimidos, e de repente apoiamos o que é feito na Palestina. Como é que essas duas coisas se conjugam?”
Juntando esta problemática à do clima, na qual se sabe que há soluções simples, mas que são de difícil aplicação, Andreia Galvão teme que pode estar encontrada a receita para “criar uma geração de cínicos”. “E cínicos são bons para a extrema-direita”, apontou. “O André Ventura mente, mas ninguém quer saber, porque ninguém acredita nos outros e este pelo menos é mais popular. Se as pessoas não têm esperança de que as coisas podem ser diferentes, se pensam que não há nada a fazer, de que vale dizermos que temos a democracia?”, questionou, apontando à necessidade de se “voltar a ter forças de esperança”.
Os desafios locais
A última questão trouxe os três jovens de volta a casa, e aos desafios que, a nível local, o futuro reserva. E os três foram unânimes em apontar a rotatividade partidária à frente dos destinos da autarquia como algo fundamental.
“O mais importante para a nossa cidade é continuar a ter competitividade eleitoral suficiente entre os partidos, para que se esforcem a inovar e a desenvolver o concelho”, apontou Manuel Martins.
“Ter estado basicamente o mesmo partido durante quase 50 anos na Câmara levou a que as pessoas se tornassem bastante mais passivas em termos da sua atividade política”, acrescentou Inês Pires, que quer uma comunidade mais presente na vida ativa do concelho. “Quem quer que esteja à frente da Câmara, deve apostar numa abordagem mais próxima das populações, permitir que as pessoas consigam fazer-se ouvir, para que tenhamos uma democracia um pouco mais participativa dos cidadãos”, completou. Não o ter sido no passado provocou estagnação e dificuldade em reter os jovens, observou.
Andreia Galvão acrescentou que “Caldas têm todas as condições para ser um local onde as pessoas querem mesmo estar, porque há coisas a acontecer”, mas lamenta que essa atividade tenha esmorecido. “Havia grandes eventos que agora têm ficado muito empobrecidos, como o Caldas Late Night. A diversificação económica e a dinamização social e política são muito importantes para enraizar as pessoas e espero que o caminho seja esse, porque Caldas da Rainha tem todo o potencial”, concluiu. ■






























