Norberto Ferreira foi “a salto” para França e demorou dez dias a chegar a Paris

0
2564
Norberto Ferreira com os seus troféus, obtidos nos torneios de petanca. Parte dos seus sábados são passado a praticar este desporto com portugueses e franceses.

Foi em cuecas, com água até ao pescoço e a roupa embrulhada numa trouxa em cima da cabeça, que Norberto Ferreira atravessou o rio Torto, perto da Serra da Malcata, que faz fronteira entre Portugal e Espanha. Ele e mais quatro rapazes da Atouguia da Baleia, que demandavam terras de França entregues aos (maus) cuidados dos passadores de emigrantes clandestinos. Demorou dez dias da Atouguia até Paris, atravessando Espanha a pé, dias seguidos sem comer e a beber água nos regatos durante a noite. “Passei muita fome, mas era novo e tinha o objectivo de chegar a França”, contou 55 anos mais tarde.

Norberto Ferreira nunca mais esqueceu aquela manhã quente de 17 de Agosto de 1963 quando se despediu dos pais e se meteu num carro com mais quatro colegas para iniciar uma viagem que demoraria dez dias até Paris. Eram 11h00 quando o “passador” (o primeiro de vários que se seguiriam) o veio buscar à Atouguia da Baleia. Seis pessoas dentro de um carro, um dia inteiro de viagem num Portugal que ainda não tinha auto-estradas, em curvas e curvinhas, até chegarem a Penamacor já de noite, onde foram depositados à beira de um rio.
A este grupo juntaram-se mais cinco homens da zona de Peniche que vieram num outro carro. Ali ficaram sozinhos à espera que o passador espanhol os fosse buscar. O rio Torto, que divide os dois países não tem em Agosto uma corrente forte, mas era suficientemente fundo para um homem ficar só com a cabeça de fora ao atravessá-lo.
Os portugueses despiram-se e procuraram não molhar a roupa, colocando-a à cabeça. O passador espanhol é que não molhou mais do que as pernas pois ia montado num cavalo branco, que os homens seguiram até ao outro lado do rio. Na outra margem vestiram-se e caminharam toda a noite até que ao nascer do sol, os deixaram abandonados atrás de um arvoredo com a promessa que ao fim do dia os haveriam de ir buscar. Estavam em Espanha, perdidos, isolados, clandestinos, e só lhes restava confiar na sorte.
Norberto Ferreira nasceu em Dezembro de 1944 na Atouguia da Baleia e o seu percurso de vida é, afinal, muito idêntico ao dos rapazes da sua geração. Fez a 4ª classe na escola local e começou cedo a trabalhar no campo para ajudar os pais. Aos 14 anos foi para Peniche aprender o ofício de canalizador.
“Uns eram canalizadores, outros pedreiros, outros carpinteiros, outros torneiros. Chegava-se a esta idade e aprendia-se uma profissão. Mas naquele tempo quase que tínhamos de pagar para trabalhar. Como éramos aprendizes, não tínhamos ordenado. O meu patrão, que por acaso era meu padrinho, dava-me cinco escudos por dia porque a camioneta da Atouguia para Peniche custava 25 tostões para cada lado”, conta o atouguiense, hoje com 74 anos.
Para economizar o dinheiro do autocarro, Norberto ia muitas vezes a pé. Acompanhava a mãe, que vendia na praça de Peniche o resultado do trabalho familiar – couves, batatas, laranjas, cebolas. “Partíamos às seis da manhã, eu ajudava-a com a burra, descarregava os cestos e depois ia para a oficina”, recorda.
Entre os 14 e os 18 anos o jovem torna-se um profissional da canalização e passa a ter ordenado: 10 escudos (5 cêntimos) ao dia, 15 escudos, ao dia, 20 escudos… “Quando deixei de ser aprendiz e já trabalhava sozinho, o patrão pagava-me 20 escudos [10 cêntimos]. Era pouco. Naquele tempo um par de sapatos custava 350 escudos [1,75 euros]”.

EMIGRAR ERA O NORMAL

Por isso foi com enorme naturalidade que decidiu emigrar. Na verdade, foi o que fizeram praticamente todos os jovens da sua geração.
Os “passadores” eram os homens que, a troco de dinheiro, tratavam de pôr os emigrantes “a salto” do outro lado da fronteira e os encaminhavam para França. Eles próprios tinham uma rede de angariadores e, no caso de Norberto, foi um caixeiro-viajante amigo do seu pai que estabeleceu o contacto. Levá-lo até Paris custaria 12 contos, pagos à cabeça, e que eram uma verdadeira fortuna para a época.
Doze mil escudos é o mesmo que 60 euros, mas em 1963 era o equivalente a 5000 euros. Norberto tinha poupado algum dinheiro porque, a par do trabalho em Peniche, criava carneiros que engordava e depois vendia. “Eu tinha seis contos guardados e o meu pai emprestou-me os outros seis. Depois de chegar a França paguei-lhe tudo”, conta o emigrante.
Os 12 contos eram distribuídos por uma longa cadeia de cúmplices que colocavam a mão-de-obra portuguesa em França, a salvo de serem apanhados pela Guarda Fiscal e pela Pide (em Portugal), pela Guardia Civil ou pelos carabineros (em Espanha), ou pelos gendarmes franceses, mais permissivos que as autoridades portuguesas e espanholas, cujos países viviam sob uma ditadura.
E é aqui que voltamos à madrugada de 18 de Agosto de 1963. Ao todo são dez homens que vieram da zona da Atouguia da Baleia e que passam o dia escondidos na raia espanhola até que um discreto “passador” vai ao seu encontro e os conduz, por montes e vales, durante toda a noite, numa caminhada que se haveria de repetir por mais oito dias.
“Atravessámos a Espanha a pé. Andávamos entre as seis da tarde e as seis da manhã. Depois deixavam-nos num sítio com arvoredo e ficamos ali escondidos até que viesse outro homem buscar-nos. Eu acho que eram pastores, que conheciam bem aqueles caminhos. Nunca, mas nunca, vimos uma aldeia, uma casa… nem pessoas. Íamos sempre por sítios escondidos, longe de tudo. E passámos tanta fome…”.
Para os primeiros dias, Norberto levou uns papo-secos. Havia a promessa de que os passadores lhes dariam de comer, mas isso só aconteceu uma vez, logo depois de passarem a fronteira. “Era um pão rijo como ferro. Nem conseguíamos comer aquilo. Mas o Mário Santos guardou-o num saco e foi o que nos valeu. Dois dias depois já estávamos a pedir-lhe que nos desse um bocadinho”.
E água? “Bebíamos quando podíamos, nos regatos, de cócoras. Parecíamos animais a matar a sede. Era Agosto e aquilo em Espanha fazia um calor… Andávamos sempre transpirados, dez dias seguidos com a mesma roupa colada ao corpo. Mas éramos novos. A gente aguentava tudo”.
Norberto não sabe por onde andou, mas terá sido algures pelo País Basco espanhol onde um dia lhes chegou uma camioneta com uns taipais de madeira onde os 17 homens se deitaram. O grupo aumentara entretanto “porque vieram mais sete lá de cima do Norte que falavam assim à nortenho…”, recorda. “Taparam-nos com um oleado e ficámos ali debaixo. Andámos oito horas. Em Agosto! Um calor daqueles e a gente debaixo do oleado!”.
A viagem e o incómodo estavam longe de terminar. A última etapa foi feita no reboque de um camião TIR. “Éramos 80, todos deitados, a cabeceira de uns era os pés de outros. Parecíamos sardinha em lata”.
Num tempo em que não havia telemóveis nem correio electrónico, as redes clandestinas pareciam ser eficazes. Norberto e os colegas foram tratados como gado, mas nunca lhes faltou “passadores” que, de etapa em etapa, os levaram até Paris.

A CHEGADA A PARIS

- publicidade -

Chegaram à cidade-luz depois de um dia de viagem enfiados no TIR. “Tivemos de aguentar a bexiga. Que remédio. Deixaram-nos numa avenida perto de Champigny, o bairro de lata onde viviam os portugueses, ao lado de umas casas de banho públicas. Foi ali que bebemos água e nos lavámos. Estávamos escanzelados. Dividimo-nos em pequenos grupos e cada qual foi à sua vida”.
Norberto Ferreira escapou ao bidonville. Tinha a morada da irmã e do cunhado, que viviam em Chevilly-Larue, nos arredores de Paris, e foi para lá que se dirigiu.
Duas semanas depois estava a trabalhar como servente de pedreiro. Enquanto esteve em França, entre 1963 e 1978, não voltaria a exercer o ofício de canalizador, mas, tal como grande parte dos portugueses foi maçon (pedreiro). Recorda-se que nos primeiros tempos ganhava 1,90 francos à hora, o equivalente a 58 escudos, enquanto que em Portugal ganhava 20 escudos por dia.
Em pouco tempo pagou a dívida ao pai. Sempre que podia, fazia horas extras. A sua vida era igual à de milhares de portugueses em França nos anos 60 do século passado. Trabalhava o máximo, gastava o mínimo e mandava tudo o que podia para Portugal.
À Atouguia da Baleia só veio dois anos e meio depois de ter emigrado. Nessa altura compra uma Zundap, que envia para Paris de comboio. Mas descobre em França que a legislação do país não lhe permite a circulação de motorizadas portuguesas porque estas não tinham pedais. O proteccionismo da indústria francesa era grande. Norberto acaba por devolver a moto a Portugal.
Por essa altura, o emigrante já trocava cartas com a namorada, Diamantina Delgado Dias, uma rapariga da Lourinhã com quem viria a casar em 1968.
Foi nesse ano, quando veio de férias, que Norberto Ferreira apareceu na terra ao volante de um Peugeot 204 novinho em folha que acabara de comprar. “Eu tinha 24 anos e aparecer assim na Atouguia com um carro… Eu sentia-me um lorde!…”
A fuga “a salto” para França valera a pena.
O casal Ferreira vai viver para Athis Mons, no vale do Sena, perto do aeroporto de Orly. É já em França que nasce a sua primeira filha, Isabel, em 1971. Mas a segunda filha, Sónia, nasce em Portugal em 1981. Norberto e Diamantina tinham decidido regressar às origens três anos antes.

O REGRESSO A PORTUGAL

“Vivi em França 15 anos e achei que estava na altura de voltar”, contou à Gazeta das Caldas o atouguiense. Tinha 34 anos. Regressa à sua profissão de canalizador e instala-se por conta própria. Com os conhecimentos de pedreiro, acaba, mais tarde, por fazer uma sociedade com um genro e possuir uma empresa de construção civil. E nunca se desliga do trabalho do campo porque herda as terras dos pais e é nelas que se entretém hoje, reformado, a cuidar de árvores, hortas e flores.
De França, além da língua francesa, ficou-lhe o gosto pela petanca, o desporto gaulês que agora pratica, chegando até a participar em alguns torneios. Juntam-se-lhe franceses reformados que têm casa na região e que encontram nestes portugueses muita coisa em comum. “É tudo malta na casa dos setenta”, diz Norberto. “Nós vivemos em França e agora vivem eles em Portugal”.
O convívio é visível num sábado à tarde de Maio em Casal Moinho, perto da Consolação. Portugueses e franceses jogam à petanca e em breve estarão na colectividade local a ver o futebol.
Questionado sobre os migrantes que atravessam o Mediterrâneo em condições degradantes para poderem chegar à Europa, Norberto Ferreira é peremptório: “faz-me lembrar quando fui eu a ir para a França”. O português não partilha sentimentos xenófobos nem anti-emigração. “Está-lhes a acontecer o mesmo que a mim. Não sou contra isso porque eu fiz o mesmo”.
E recuando há 55 anos, à fome e ao desconforto de uma viagem épica, só diz: “o objectivo era chegar à França. O resto era aguentar.”

- publicidade -