• 80 ANOS
• CASADO, DOIS NETOS E UM BISNETO
Quando a UPACAL foi inaugurada era uma das maiores e melhores padarias do país. Um luxo para a época. Aqui se juntaram numa só sociedade 47 padarias que estavam espalhadas por toda a cidade e pelo concelho. Um investimento de 3000 contos (15 mil euros) onde chegaram a trabalhar 60 pessoas. Eu tinha 24 anos e já era padeiro. Aqui andei durante 34 anos até me reformar. A minha vida foi trabalhar de noite, a amassar e cozer o pão para os outros. A ganhar a vida, a ganhar o meu próprio pão.
Nasci filho de padeiro, mas resisti até aos 18 anos a entrar na profissão. Do Lavradio (Tornada), onde vivia com os meus pais (sou filho único), vinha a pé para a escola, na outra ponta da cidade onde era a polícia de trânsito. Fiz ali a 1ª e a 2ª classe, mas depois adoeci e chumbei um ano. Felizmente, tinha uma madrinha, que já está na Terra da Verdade, que era professora primária e me levou para Frei Domingos (Benedita), onde dava aulas e me ajudou a fazer duas classes num ano. Num espaço de meses fiz a 3ª classe na Benedita e a 4ª classe em Alcobaça.
Ainda andei um ano no curso comercial da Escola Bordalo Pinheiro, atrás do Chafariz das Cinco Bicas, mas chateei-me com uma professora e nunca mais lá pus os pés. Eu se calhar era um puto malandro…
Mas não foi logo que fui para padeiro. Empreguei-me nos Abílios, ali ao pé do Thomaz dos Santos, que vendiam roupas e fancarias. Mas não fiquei lá muito tempo porque fui desafiado para outra casa, a Cinderela, que era ali ao lado. Também ali vendia roupas, mas a loja foi à falência e então lá teve que ser e fui trabalhar para a padaria do meu pai.
Mas foi na minha passagem pela Cinderela que conheci a Aurora, com quem viria a casar quatro anos mais tarde. Ela estava hospedada no primeiro andar e eu trabalhava na loja no rés-do-chão.
O meu novo local de trabalho passou a ser na Rua Dr. Miguel Bombarda, na padaria Gomes & Parada, Lda, que ficava no local onde agora é a pastelaria Comtradição. Nela trabalhavam o meu pai, José Jerónimo, e o seu sócio, Abílio Varela. Empregados éramos eu e outro rapaz.
Os fornos eram a lenha e amassava-se à mão
Aos 18 anos comecei assim uma vida em que quase nunca dormia de noite. Estávamos em 1953. Os fornos eram a lenha e amassava-se à mão, embora já houvesse algumas padarias que tinham amassadeiras. Mas ali era tudo à força de braços. A farinha vinha em sacos de 75 quilos e eu, que pesava 50 quilos, carregava com eles às costas para a masseira. Depois despejava água, fermento e sal. O sal era pesado a punho. Deviam ser 2 quilos de sal por cada 100 quilos de farinha. Hoje, por motivos de saúde pública, é costume pôr 1,4 quilos de sal por 100 quilos de farinha.
Noite fora era amassar e cozer, amassar e cozer. Entrava à meia-noite e saía às… Não tinha hora. Era quando terminava a venda porque depois de cozer o pão íamos fazer as vendas ao domicílio, que era uma coisa que se usava na altura. Por volta das 14h00 é que eu ia descansar. Depois acordava às 19h00 para ir fazer o fermento e voltava a deitar-me até perto da meia-noite. Uma vida dura! A minha vida foi quase toda feita de noite. Mas eu preferia assim do que trabalhar por turnos. Pelo menos assim, o meu sono estava certo.
Naquele tempo não havia a mesma diversidade de pão que há agora. Nem nada que se pareça. Só havia de dois tipos: papo-secos e pão de meio quilo. Mas já a farinha havia de três categorias: farinha de segunda (farinha escura), farinha de primeira e farinha extra. A escura era para fazer o pão para os pobres e a extra era a preferida das senhoras ricas porque era toda refinada e branquinha.
Mas afinal estava tudo ao contrário. A farinha escura, que hoje já não existe, era muito mais saudável do que a extra e hoje já muita gente percebeu que a farinha branca não é propriamente a melhor.
Apesar de ser filho do patrão, ainda trabalhei uns meses à borla, como aprendiz. Só depois é que passei a receber qualquer coisita.
Até que fui obrigado a ir para a tropa. Tinha 21 anos. Mas conseguir fazer o serviço militar todo nas Caldas da Rainha. Não é para me gabar, mas fui esperto o suficiente para lhes dizer que era empregado de comércio em vez de padeiro. Assim não fui parar a Lisboa à Manutenção Militar, que era o destino de todos os padeiros, e acabei por ficar como amanuense no RI5.
Só fiz tropa entre 1956 e 1957 porque me casei. Mas como a minha futura mulher estava grávida de seis meses, naquela época, no tempo do Salazar, eu tive que escrever um requerimento ao ministro da Defesa, para que ele autorizasse o casamento.
Casei-me e já nem fui ao curso de cabos. Voltei para a vida civil e para a padaria do meu pai. Três meses depois nascia a minha filha Elisabete que, infelizmente, perdi há dois anos, levada por uma maldita doença.
A CRIAÇÃO DA UPACAL
Em 1964 o meu pai e o sócio desfizeram a sociedade e integraram-se na UPACAL, que foi formada nesse ano. Uma nova lei, muito exigente com as condições sanitárias das padarias, obrigou a que estas se juntassem numa só sociedade e se construísse uma grande fábrica aqui no Lavradio. No concelho das Caldas havia 48 padarias. Só uma se manteve sozinha.
A melhor padaria do distrito de Leiria custou 3000 contos (15 mil euros), uma fortuna para a época. Mas aquilo era um luxo: espaços amplos, balneários para o pessoal, refeitório. Aquilo deu que falar.
Mas ao princípio ainda continuei a amassar à força de braços. Só mais tarde se compraram equipamentos mecanizados: amassadeiras, peneiros e até um forno de túnel com 21 metros que era capaz de cozer 18 mil papo-secos por hora. Custou 3000 contos, tanto como a própria fábrica.
A empresa era uma das mais importantes das Caldas da Rainha e produzia 60 mil papo-secos por dia. E tinha dezenas de entrepostos e lojas espalhadas por todo o concelho. E uma frota com viaturas e motoristas que faziam a distribuição.
Trabalhei na UPACAL entre 1964 e 1998, dos 29 aos 63 anos. Trinta e quatro anos de uma vida feita de rotinas. Sempre a trabalhar de noite. Costumo dizer que a minha mulher teve que ser mãe e pai ao mesmo tempo porque eu não podia dar muita assistência à família.
Quando me reformei era encarregado-geral. E alguns anos antes já tinha passado a sócio porque o meu pai tinha-se aposentado e passou-me a quota. Mas ser sócio não significava ser patrão. Trabalhei sempre na padaria, às vezes até aos domingos.
O curioso é que, logo a seguir ao 25 de Abril, houve uma greve na UPACAL e eu, apesar do meu pai ser sócio, como era um operário como os outros, também alinhei. Era dos poucos que sabia trabalhar bem com o forno de túnel e então enfiei-me uns dias numa casita que eu tinha ali no Campo, onde guardava umas colmeias (dedicava-me à apicultura nas poucas horas vagas) e só apareci ao fim de uma semana. Fiz mossa porque iam dando cabo do forno para o conseguir pôr a trabalhar. Ao fim de algum tempo, lá conseguimos um aumento de ordenado.
Agora tudo isso já passou e é claro que fico triste quando olho para este edifício. Fico triste por ter fechado, porque o passado já não volta e também porque, no fim de contas, sempre recebia uns dividendos todos os anos devido à quota que tinha. Não era nada que desse para ficar rico, mas dava jeito.
Nos últimos 17 anos não fiquei parado. Ajudei a criar os netos e dediquei-me quase a tempo inteiro ao associativismo. Em 1961 eu tinha sido sócio-fundador do Atlético Clube Arneirense, que em 1989 se fundiu com o Centro Cultural do Bairro dos Arneiros, dando origem à Associação Cultural Recreativa e Desportiva Arneirense. Fui sempre dirigente da associação, mas desde há quatro anos passei a ser unicamente sócio. Agora dedico-me à agricultura, a semear uns tomates, uns feijões e umas alfaces no quintal e a cuidar de um terreno no Campo. Já é suficiente para dar cabo do corpo.
E que pão é que come um padeiro? Hoje já não há farinha de segunda, mas é pena porque essa é que era boa. Eu como pão integral. E é claro que sei distinguir um pão bem feito de um pão mal feito.
Os tempos mudaram. Antes havia 48 padarias nas Caldas. Depois veio a UPACAL que juntou 47. E agora assistimos a uma proliferação de padarias por todo o lado. Não há café, pastelaria, ou supermercado que não faça pão. Mas atenção que às vezes o que fazem é apenas cozer massa congelada.
Seja como for, enquanto no meu tempo praticamente só se fabricava papo-secos e pão de meio quilo, pelo menos agora há pão de todos os tamanhos e feitios e para todos os gostos.

































