Muitas dúvidas sobre a municipalização do ensino num debate em Santarém

0
625
municip ensino
|Apesar de restringido apenas a directores e presidentes de Conselho Geral das escolas, o evento contou com centenas de participantes de todo o país que foram ouvir Humberto Marques, Licínio Lima e António Nóvoa

O Conselho das Escolas organizou no passado dia 19 de Janeiro em Santarém um debate nacional sobre a municipalização do ensino, destinado aos directores e presidentes dos conselhos gerais das escolas. Entre os principais receios que a sessão expôs em relação a este modelo – que ainda não está a vigorar no país – estão a menor autonomia das escolas, o desinvestimento na educação e o caminho para a privatização da escola pública. Humberto Marques, presidente da Câmara de Óbidos, foi um dos oradores e tentou tranquilizar a plateia em relação ao novo modelo.
Para além de Humberto Marques, o painel de oradores foi composto por Licínio Lima, da Universidade do Minho, e António Nóvoa, da Universidade de Lisboa. O presidente da Câmara de Óbidos teve uma missão difícil na sessão, já que tanto os directores de escolas e presidentes de conselhos gerais, como os dois restantes oradores e os representantes da FNE e da FENPROF mostraram-se contra a municipalização do ensino, que deverá começar a ser testado em 10 municípios no próximo ano lectivo.
Todos os interlocutores defenderam a necessidade de a escola passar a ser gerida em regime de proximidade, no qual as entidades locais que a rodeiam tenham um papel interventivo nos modelos a seguir. Mas se as ideias base até eram partilhadas entre todos os oradores, Licínio Lima e António Nóvoa manifestaram dúvidas ao nível da sua aplicação.
Por um lado, duvidam que o Ministério da Educação se distancie tanto do processo como se anuncia, instrumentalizando para isso os municípios. E, por outro, duvidam que todos os municípios abracem a causa da educação da mesma forma empenhada como Óbidos tem feito, o que acarreta riscos de uma educação desigual, ou pode mesmo levar à privatização da escola pública.
Licínio Silva apelidou a municipalização da educação nos moldes em que está a ser preparada de uma desconcentração e não de uma descentralização, por não existir uma “transferência de poderes”. Lembrou que as autarquias, em toda a sua esfera de competências, não têm intervenção directa, nem indirecta, do Estado. Teme, por isso, que esta delegação de poderes “transforme os municípios em executores subordinados e sob vigilância das políticas actualmente definidas, o mesmo que sempre foi feito com as delegações regionais”.
O professor da Universidade do Minho sustentou esta opinião com a criação de ferramentas de monotorização de processos através de plataformas electrónicas.

UM Caminho para a privatização?

As preocupações não se ficam, porém, por aqui. Licínio Lima, que foi o mais céptico dos três oradores, lamenta que as competências sejam delegadas no município e não no Conselho Municipal de Educação (CME), como vem defendendo desde os anos 80.
Primeiro porque “quando os municípios querem centralizar têm mais poder que o Governo, porque estão mais próximos”, sustenta. O que pode resultar numa autonomia ainda mais diminuta para as escolas.
Depois, porque se uma autarquia entender que não tem capacidade para gerir as escolas do concelho, ou que isso não é rentável, nada a impede de subcontratar uma empresa para o fazer. “Uma empresa privada pode, nesta lógica, ser preferível através da delegação ou subdelegação pois está previsto que o município pode subdelegar determinadas competências”, argumentou.
Os dois professores universitários falaram da realidade brasileira, onde a municipalização da escola resultou em desigualdade. “É frequente dois municípios contíguos terem escalas diferenciadas de avaliação e de currículo”, referiu Licínio Lima.
Já António Nóvoa realçou a entrega do ensino público brasileiro a entidades privadas como algo “assustador”, em que o município não tem qualquer intervenção em áreas como a formação dos professores, a estruturação do currículo ou os manuais escolares. Também nos Estados Unidos o ensino público é monopolizada por “uma das maiores empresas norte-americanas”, a Edison, sublinhou Licínio Silva.
E em alguns países, como a Suécia, onde o ensino público também esteve sob alçada dos privados, está agora decorrer o processo inverso, regressando a educação e as escolas para a tutela do Estado.

- publicidade -

Óbidos quer ser exemplo positivo

Humberto Marques disse que é prematuro dizer que vai acontecer uma centralização do poder nas autarquias, embora admita que “poderá acontecer num caso ou outro isolado, mas se acontecer a culpa também é dos professores e das escolas, que não se envolveram”.
O autarca disse que não pretende substituir-se ao ministro da Educação e que a subdelegação de poderes no município de Óbidos será, precisamente, no CME. “A posição do município será reconduzida para o Agrupamento de Escolas e para o CME, onde tem assento”, referiu, acrescentando que não tomará decisões estratégicas “se não tiver um parecer vinculativo” desse órgão.
Para sublinhar o relevo que o CME tem em todo este processo, Humberto Marques desmistificou outra das grandes dúvidas dos seus interlocutores: a marginalização das escolas e dos professores na discussão do processo de municipalização da escola pública.
O autarca diz que se não existir um diálogo com as escolas e com todos os seus agentes, isso gera desconfiança e desconforto, mas adianta que em Óbidos o processo foi sempre aberto e não só com os professores, como também com o pessoal não docente, alunos, associações de pais, empresas, associações culturais, desportivas e de solidariedade social. “Estamos a construir a matriz de competências dos diversos órgãos, da base até ao topo”, referiu.
De resto, Humberto Marques notou que não estavam presentes na sessão representantes das escolas dos municípios que vão iniciar a fase de testes da municipalização do ensino, ou pelo menos não colocaram questões, o que significa que nesses concelhos o processo é claro.
E ao envolver toda a comunidade no sistema de ensino, Humberto Marques acredita que a escola pode libertar-se do trabalho de assistência social que muitas vezes é obrigada, e passa a concentrar-se no que é essencial: “a produção de conhecimento, centrada não nos alunos, mas em cada aluno”.

Currículos locais são respostas para o mundo

É também neste sentido que nasce no programa de ensino espaço para currículos locais, que poderão corresponder a 25% do currículo geral. Licínio Lima também revelou algum cepticismo em relação a esta questão, rotulando-o de tão acessório como a Religião e Moral caso se mantenha o actual modelo das provas nacionais.
Opinião diferente manifestou Humberto Marques, que afirmou que Óbidos é um exemplo desde 2002 do que pode ser a importância dos currículos locais, através da introdução nas escolas do concelho do ensino do Iinglês no primeiro ciclo, “quando não se ouvia falar em AECs”.
Desde aí os alunos do município têm recebido conteúdos programáticos extra curriculares de várias índoles em programas como o My Machine, a Fábrica da Criavidade, ou os programas de Yoga e de Filosofia para crianças.
Humberto Marques sublinhou que as disciplinas do currículo local não podem ser apenas mais uma disciplina, nem devem “falar de uma identidade local, são uma resposta local para o mundo”, preparando os alunos para as necessidades reais do mercado de trabalho.
As dúvidas levantadas na sessão incidiram ainda em aspectos como o modelo de financiamento do ensino, a eleição do director da escola e a possível politização desse acto. E ainda a contratação dos professores.
Em relação a estas duas últimas questões, Humberto Marques garantiu que os processos se mantêm tal como têm sido até aqui. A contratação dos professores continua sob alçada do Ministério da Educação e mesmo para as disciplinas do currículo local, “se houver professores no quadro de zona, a colocação será através dele”, explicou.
Todos os órgãos da escola ou agrupamento “funcionam exactamente da mesma maneira, sem intervenção do CME, nem da câmara”, garantiu.
Fazer mais com o mesmo dinheiro

De todos os pontos falados na sessão, aquele em que Humberto Marques considera haver mais a discutir será o modelo de financiamento. O projecto do Governo passa por atribuir uma verba correspondente à média dos últimos quatro anos lectivos e todos os oradores consideraram que é pouco, tendo até em conta a política de desinvestimento verificada em especial nos últimos dois anos.
António Nóvoa citou seis objectivos do programa: conter a despesa pública; eficiência na gestão dos recursos; ganhos de eficácia; racionalização dos recursos; articulação entre níveis da administração pública; salvaguardar e ampliar a liberdade de escolha das famílias. “Seis ideias que dizem tudo em relação às intenções do Governo”, considerou
Humberto Marques disse que a proposta do Governo para o modelo de financiamento ainda está a ser analisada pelos municípios com vista à negociação dos valores. No caso de Óbidos o autarca diz que já sabe quando gastam os agrupamentos e também qual a verba que o próprio município investe actualmente na Educação e que corresponde a 10% do seu orçamento. Menos que esses valores “não chega para fazer o que sonhamos”, adverte.
O autarca acredita, no entanto, na maior capacidade negocial dos municípios e dá um exemplo: “a construção de muitos edifícios escolares pela Parque Escolar custou acima dos mil euros por metro quadrado e os municípios conseguiram fazer com 500 ou 600 euros, o que demonstra que, sem tocar nos professores, é possível fazer mais com o mesmo”.

 

- publicidade -