Mesmo sem abstinência sexual recasar pela Igreja é um processo moroso e difícil

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Não são muitos os católicos que insistem num segundo casamento pela Igreja | DR

Numa época em que é tão fácil as pessoas viverem juntas, casarem, divorciarem-se e voltarem a casar civilmente, Gazeta das Caldas tentou perceber o que leva alguém a voltar a casar pela Igreja.
A fé é o motivo óbvio para querer recasar recebendo os sacramentos, mas isso obriga a um caminho difícil em termos burocráticos porque obriga a anular o primeiro matrimónio. As recentes declarações do cardeal de Lisboa, D. Manuel Clemente acerca da abstinência sexual dos recasados, não contribuem em nada para que muitos católicos queiram voltar ao altar no segundo casamento.

 

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Depois de um primeiro matrimónio que não foi bem-sucedido, a Igreja Católica pede aos seus crentes que, para voltarem a casar, tenham de anular o casamento anterior. Um processo que não é fácil e que alguns consideram doloroso e outros entendem que pode ser catársico e redentor.
O Papa Francisco introduziu novas linhas mais flexíveis para agilizar os processos de avaliação de nulidade e os pedidos aumentaram a nível nacional.
Agora, uma nota pastoral do cardeal de Lisboa, D. Manuel Clemente, lançou a polémica sobre o assunto ao apresentar a abstinência sexual como recomendação aos recasados. Vários bispos manifestaram opinião discordante em textos tornados públicos em jornais, revistas e redes sociais, provando que a Igreja não parece ter uma doutrina única e unânime sobre esta matéria.
Entre a hierarquia católicos, há quem defenda a valorização dos sacrifícios e há quem acuse o cardeal de estar a fazer um desvio a um caminho indicado pelo Papa Francisco.

PROCESSOS DOLOROSOS OU REDENTORES?

Em Portugal os processos de nulidade demoram, actualmente, cerca de um ano, contra os dois a três que costumavam durar. Segundo apurámos, na diocese de Lisboa, onde se inclui a paróquia das Caldas, a equipa que analisa os processos tem sido rejuvenescida e aumentada.
Durante esse tempo é feita uma revisão da vida do casal, com um questionário que vai da infância até depois do casamento. No processo de nulidade têm ainda de ser apresentadas provas documentais e testemunhas. No final pretende-se que o crente tenha uma maior consciência acerca do que é o matrimónio e do que é o sacramento.
Há casos vários que podem justificar a anulação de um primeiro matrimónio, como a infidelidade e os maus tratos, mas tudo isto tem de ser justificado perante as autoridades da Igreja, num processo que não é agradável.
Há outros casos em que só um dos elementos do casal pede a anulação do casamento após a separação porque quer ficar de bem para com a Igreja (ficar em situação regular) e com o caminho aberto para, no futuro, poder voltar a casar.
Mas também há outros que consideram que não vale a pena passar por todo este processo: ou porque é muito complicado e demorado, ou porque desperta sentimentos antigos, ou ainda porque a sua fé não é tão grande ao ponto de querer enfrentar os fantasmas do passado.

UM TESTEMUNHO

Não há muitos católicos a querer recasar pela Igreja e muito menos casais a quererem contar a história dessa experiência. Gazeta das Caldas não conseguiu obter nenhum testemunho de fiéis da nossa região. Mas conta a história de Paulo Alves, do Carregado, que casou com a primeira mulher a achar que era o amor da sua vida, construiu um projecto a dois sob a alçada da religião, mas acabou por se divorciar.
A vergonha e o sentimento de falha apoderaram-se de Paulo, que se afastou da família e amigos.
Mais tarde conheceu Maria José, por quem se apaixonou e com quem casou no civil. A situação irregular ditou um afastamento mútuo entre o casal e a Igreja.
Foi o acolhimento de um outro padre e uma mudança de paróquia que levou a uma nova aproximação da Igreja ao casal e do casal à Igreja.
Este acolhimento foi a alavanca para que Paulo tomasse a decisão de anular o primeiro casamento. Isto depois de a adiar durante anos. É que tratava-se de abrir a gaveta das memórias, “um processo difícil e que não queria reviver”.
Afinal, e apesar de doloroso, o processo foi o início da terapia psicológica, porque não é arrumando as questões que estas se resolvem. “Foi doloroso, mas fez-me bem”, disse.
Inicialmente imaginou que iria a um tribunal como nos filmes, com júri e juiz, tudo muito formal, mas enganou-se. “Pensava que alguém ia apontar o dedo, mas não. Fui recebido de coração aberto, com pessoas que queriam ouvir e compreender”.
Mas se este foi um processo complicado para Paulo, não foi menos para a sua companheira. A esposa, Maria José, “apesar de conhecer a história e de sempre ter achado que aquele casamento era nulo”, nunca o pressionou a tomar nenhuma decisão.
Durante o processo conversaram muito sobre o primeiro casamento de Paulo, o que tinha corrido mal, “em que medida a sua relação era e no que deveria ser diferente”.
Com o andar do processo, o “saco” que Paulo tinha às costas ia ficando mais leve e para o fim até já dizia: “mesmo que não seja considerado nulo, já valeu a pena, porque estou em paz com o meu passado”.
Seguiu-se a fase das testemunhas, que falaram sobre o namoro e o matrimónio. “Foi bom ler o que as pessoas disseram, compreender e aceitar as falhas cometidas”.
A carta com a resposta ao pedido de nulidade acabou por chegar dois anos depois do início do processo. Foi Maria José quem a recebeu e, ainda no carro, ligou a Paulo, que lhe pediu que a abrisse.
Em 2017, já com o primeiro casamento de Paulo anulado, o casal celebrou o matrimónio. “Foi sentido de forma diferente”, asseguram.

 

Norma genérica que tem de ser particularizada

O casal preferiu não comentar a recente polémica da nota pastoral do cardeal D. Manuel Clemente, que apresentava a abstinência sexual aos recasados como uma possibilidade a apresentar pelos padres.
Sobre esse assunto, o diácono da paróquia das Caldas, João Paulo Romero, nota que a mesma remete para um texto de João Paulo II. Ele que, com a esposa, foi o primeiro diácono responsável por uma pastoral familiar.
Segundo o diácono, a nota pastoral é “genérica e depois tem que ser particularizada”. Admite que a norma “se calhar, peca por excesso, mas não podemos generalizar”.
Por exemplo, muitas das vezes as pessoas só se apercebem que estão irregulares ou só pensam em fazer algo em relação ao assunto quando querem baptizar os filhos ou se querem casar. E os próprios motivos, frequentemente, não estão ligados à fé. Trata-se, em muitos dos casos, da aceitação social.
Segundo o diácono, é necessário “perceber o que é partilhar uma fé, que se recebe pelo baptismo e se robustece através dos sacramentos”.
Na diocese de Lisboa, João Paulo Romero nota que a juventude sente medo do compromisso sem prazo e não quer fazer sacrifícios.
Gazeta das Caldas tentou obter um comentário dos dois priores da paróquia das Caldas, mas tal não se revelou possível porque estes estavam em retiro.

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