Mata das Mestras – quando o Estado não cuida do que é seu

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Gazeta das Caldas
Carlos Ribeiro é filho do penúltimo guarda da Mata

São 93 hectares de área arborizada, ocupada essencialmente por sobreiros, mas totalmente coberta de mato e silvas que, muitas vezes, ultrapassam os dois metros de altura. É este o aspecto da Mata das Mestras, no Carvalhal Benfeito, mas o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) diz que aquela floresta “tem tido o grau de intervenção adequado ao seu estatuto”.
A população local não pensa da mesma maneira e lamenta o abandono da Mata, a qual, por outro lado, tem proporcionado receitas ao Estado. No ano passado a extracção de cortiça rendeu 18.700 euros.

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Em 2017 o Estado vendeu, por hasta pública, 1540 arrobas (23.100 quilos) de cortiça que proporcionaram uma receita de 18.762 euros
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Por vezes os sobreiros mal se avistam por entre a vegetação

A Mata das Mestras é a maior área florestal do concelho das Caldas. Dos seus 93 hectares, há 84 que estão arborizados, tendo como espécie principal o sobreiro (que ocupa mais de 70% da área da Mata), seguido do pinheiro manso e de alguns carvalhos.
A informação é do próprio ICNF que tem a seu cargo a gestão da Mata, mas à qual não parece afectar muitos recursos, uma vez que aquela área tem um ar abandonado e desmazelado. Basta um curto passeio pelo seu interior para confirmar a enorme quantidade de mato e silvas que infestam a praticamente totalidade daquela área, ao ponto de algumas zonas serem inacessíveis.
Em termos de probabilidade de incêndios, a Mata das Mestras é um barril de pólvora porque há mais de 20 anos que não é desmatada, acumulando-se matéria combustível em toda a sua extensão.
Causa, por isso, perplexidade a resposta do ICNF à Gazeta das Caldas quando questionado sobre o estado de desmazelo daquela área arborizada: “A Mata Nacional das Mestras, com um área de 93 hectares, é uma Mata com estatuto de conservação e, nessa medida, tem tido o grau de intervenção adequado ao seu estatuto”.
Mais: apesar de ser visível a ausência de qualquer limpeza, aquela entidade, nas respostas enviadas por correio electrónico à Gazeta das Caldas diz que “o ICNF já concluiu a realização das faixas secundárias de gestão de combustível na Mata Nacional das Mestras”. E acrescenta: “com a sua execução, o ICNF dá cumprimento ao previsto na legislação, nomeadamente ao nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 124/2006 de 28 de Junho, na sua Republicação pela Lei 76/2017 de 17 de Agosto”.
O único edifício da Mata das Mestras é a casa do antigo guarda florestal, um edifício de fins dos anos 50 ou princípios de 60, de construção robusta e com um ar bastante moderno para a época. Está hoje em ruínas, invadido pela vegetação que a cobre até ao telhado. Os anexos, que mais recentemente serviram para dar apoio a actividades de lazer para jovens, estão também degradados.
O ICNF diz que a vigilância da Mata esteve cometida ao Corpo de Polícia Florestal, mas após a integração deste na GNR, a responsabilidade passou para esta entidade. Diz ainda que “existem vários postos de vigia fixos que têm bacias de visibilidade sobre a área”.
E, de facto, há até um bastante perto. Mas o patrulhamento da Mata das Mestras é que é coisa que deixou de ser feita. Aliás, neste momento até mesmo os veículos todo-o-terreno têm dificuldade em circular nos quatro quilómetros de caminhos de terra que existem no seu interior.
Apesar de maltratada, esta mata nacional não deixa de proporcionar receitas para o Estado. Há sete anos, o ICNF “procedeu à venda de um lote de 7,7 hectares de povoamento puro de Pinheiro Bravo, em hasta pública” do qual foram vendidos 2.627 metros cúbicos de madeira de qualidade no valor de 60.800 euros.
Os serviços florestais explicam que se tratou “de um normal acto de gestão” por se tratar de pinheiros que já tinham atingido o seu máximo crescimento, com uma idade superior a 70 anos. Com esta extracção, o ICNF diz ainda que procurou realizar a reconversão da área cortada num povoamento de sobreiro.
Já em 2017 o mesmo instituto vendeu em hasta pública 1540 arrobas de cortiça por 18.762 euros. Tratou-se, também, de um acto gestão normal pois, conforme estipula a lei, a tiragem deverá ocorrer de nove em nove anos.
Segundo alguns habitantes da Cumeira e das Mestras, para esta extracção de cortiça foi necessário abrir caminho com uma roçadora através do mato e das silvas para que os homens pudessem chegar aos sobreiros. Tal é visível no terreno pois subsistem pequenos corredores no meio do matagal por onde terão circulado pessoas e carga extraída. No resto, há sobreiros cujos troncos mal se avistam tal é a quantidade de vegetação que cresceu em seu redor.
Ainda assim, o ICNF diz que vai beneficiar os quatro quilómetros de rede viária florestal, a qual já foi adjudicada a um prestador de serviço e que “está planeado um mosaico de parcelas de gestão de combustível com 51,7 hectares, o que corresponde a 54,7% da área total da Mata”.

“REVOLTA-ME VER A MATA NAQUELE ESTADO”

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A freguesia do Carvalhal Benfeito é a que tem maior florestal do concelho das Caldas. Por isso, o seu presidente, António Colaço, é bastante sensível a esta questão e não disfarça o desalento que sente ao ver a Mata Nacional das Mestras, que poderia ser a jóia da coroa da sua freguesia, neste estado de abandono. “Responderam-nos o mesmo que a vocês – que está tudo bem, que a gente não se preocupe porque está tudo sob controlo”, contou o autarca à Gazeta das Caldas, relatando a conversa que teve com técnicos do ICNF há cerca de dois meses.
“O Estado é que deveria dar o exemplo e a mata deveria estar mais cuidada e mais limpa, mas não é isso que a gente vê”, diz António Colaço, que acrescenta que esta preocupação não é só sua, mas também dos seus fregueses. Contudo, diz que nada pode fazer pois não tem tutela sobre aquela área arborizada. “Revolta-me ver a mata naquele estado”, conclui.
Já a Câmara Municipal das Caldas não parece ter a mesma preocupação da Junta de Freguesia. Gazeta das Caldas perguntou ao município se tem conhecimento da falta de limpeza da Mata Nacional das Mestras e se intercedeu junto do ICNF para que este preste mais atenção aquele espaço arborizado, mas não obteve resposta.

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O guarda Ribeiro, a mulher e os filhos. Os 11 viveram na casa da Mata das Mestras. Da esquerda para a direita: Maria José, Manuel, Reinaldo, António, Porfírio José Ribeiro (pai), Zulmira do Céu da Cruz (mãe), Porfírio, Albino, Carlos, José e Adelaide.

“Eu e os meus irmãos conhecíamos a mata de ponta a ponta”

Carlos Ribeiro, 51 anos, nasceu na casa do guarda da Mata das Mestras. O seu pai, Porfírio José Ribeiro, foi o penúltimo vigilante daquela zona arborizada e Carlos recorda-se bem de o ver, devidamente uniformizado, a patrulhar o terreno.
O guarda tinha direito a viver na casa, que pertence ao Estado, e a usar pistola e carabina. O seu filho diz que nunca o pai necessitou de fazer uso de armas em toda a sua carreira e que só algumas vezes levantou autos, mas isso foi na Marinha Grande, onde Porfírio José Ribeiro trabalhou antes de ser transferido para a pacata Mata Nacional das Mestras.
Não foi só Carlos Ribeiro que viveu na casa do guarda. Ali foram criados os nove irmãos que constituíam o clã Ribeiro. “Eu e dois irmãos nascemos aqui, um nasceu na Marinha Grande e os cinco mais velhos já vieram do Minho pois o meu pai e a minha mãe são de Vieira do Minho”.
Em 1967, quando Carlos Ribeiro nasceu, as Mestras, a Cumeira, o Peso, o Casal do Rio, eram locais isolados no concelho das Caldas, longe de tudo. A estrada de Santa Catarina para o Peso só seria alcatroada pouco depois do 25 de Abril. A água canalizada e a electricidade tardaram a chegar àquela zona do concelho.
Mas o filho do guarda Ribeiro teve uma infância feliz. “Eu e os meus irmãos conhecíamos a mata de ponta a ponta, brincávamos por aí fora, subíamos às árvores, corríamos, esfolávamos os joelhos. Tínhamos umas espingardas de madeira e fingíamos que matávamos coelhos, lebres e perdizes”.
Quando fez a 4ª classe, não era obrigatório prosseguir os estudos e, por isso, Carlos Ribeiro ficou-se por ali. O pai comprara um rebanho de ovelhas e o miúdo tornou-se pastor na Mata das Mestras. Isto numa altura em que ainda não havia o conceito de “cabras sapadoras”.
A vida ao ar livre só durou um ano. A professora da escola primária contactou a família pouco depois para que Carlos regressasse à escola e fizesse, pelo menos, o 7º ano.
Em 1988 o guarda Porfírio Ribeiro adoeceu subitamente (morreria pouco tempo depois) e foi substituído pelo guarda Gabriel, que viria a ser o último guarda da Mata das Mestras (ao que a Gazeta das Caldas apurou, vive actualmente em Valado dos Frades).
A casa foi habitada até 1990 e desde então ficou ao abandono, embora de vez em quando fosse local de acampamentos para escuteiros e grupos de jovens em actividades de ar livre.
Agora as silvas e arbustos cobrem tudo e a sua degradação é um espelho do próprio desmazelo a que está sujeita a mata.
“Quando eu era miúdo tudo isto era roçado pelo povo, pois aproveitava-se a mata [hoje chama-se combustível] para fazer a cama aos animais. Depois passou a ser feito com máquinas do Estado. Lembro-me que vinham de Coruche fazer cá a limpeza… aí por volta de 1989. Mas agora há mais de 20 anos que a mata não é limpa”. Por isso, Carlos Ribeiro diz que está sempre com o coração nas mãos com medo que haja algum incêndio na mata onde em criança foi muito feliz e que, de certa maneira, ainda a sente com sua.

 

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