Manuel Branco Antunes ia descalço para a escola de Salir de Matos, fez a 4ª classe, mas só 20 anos mais tarde, no Canadá, é que conseguiu continuar a estudar. Foi nesse país, para onde fugiu depois de ter feito a tropa (e a guerra) em Moçambique, que fez vários cursos, se realizou profissionalmente e se meteu no sindicalismo e na política. Foi vereador e vice-presidente da Câmara de Wasaga Beach, uma pequena cidade turística, a duas horas de Toronto, que tem a segunda maior praia de água doce do mundo. Empresário, agora reformado, da mediação imobiliária, Manuel Branco Antunes diz que tem um coração e dois amores: Portugal e o Canadá. Passa metade do ano em cada um dos países.
Uma das primeiras memórias de infância de Manuel Branco Antunes é a de acompanhar a sua mãe, descalço, numa longa viagem a pé entre Salir de Matos e a Pederneira, na Nazaré. O pai era cantoneiro da Junta Autónoma de Estradas e tinha a seu cargo o cantão (troço de estrada) entre a Pederneira e o Valado dos Frades. Era Verão, fazia calor e a mãe de Manuel levava ao colo a filha mais nova.
Ia juntar-se ao marido e ao filho mais velho, Carlos, que já lá viviam, numa pequena casa à beira da estrada.
Seria ali o lar da família durante quase um ano. No dia 7 de Outubro de 1950 Manuel Branco Antunes apresentou-se na escola primária do Sítio da Nazaré, mas é devolvido a casa porque tinha seis anos (nascera em 1944) e não podia frequentar já a 1ª classe.
A família regressa entretanto a Salir de Matos e é ali que o jovem frequentará a escola para fazer os estudos mínimos. O diploma da 4ª classe, com data de 27 de Julho de 1956, ainda hoje o guarda. É um documento vistoso, que atesta que Manuel Branco Antunes Marques (o apelido “Marques” haveria de o perder mais tarde ao legalizar-se no Canadá devido a um erro do funcionário ao ler-lhe o passaporte) realizou o exame com êxito.
“Eu queria continuar a estudar. Sempre quis estudar, aprender, ter um curso, ser alguém, mas o meu pai disse que não podia ter um filho doutor e sete lavradores. Éramos sete irmãos. E lá fui eu trabalhar. Tinha 13 anos quando fui para a loja do António Sousa Novo”. Um envelope da firma, que Manuel mostra à Gazeta das Caldas, explicita que se trata de um “armazém de fazendas, brancos, malhas e miudezas” no qual o rapaz de Salir de Matos fazia de marçano e moço de recados. Uma das suas tarefas era ir à estação de caminhos-de-ferro buscar as mercadorias que vinham por comboio, como era normal na época.
No resto, apesar de ser órfão de mãe (que morrera quando ele tinha oito anos) e viver pobre numa família de sete irmãos, Manuel Antunes tem recordações que o fazem sorrir: ia a pé das Caldas para Salir, descalço com as alpergatas aos ombros, às vezes pendurado nas escadas das camionetas da carreira, outras à boleia de camionetas de carga. Nada de dramático para os parâmetros da época quando a segurança não tinha a mesma importância que hoje.
Mas as recordações mais felizes tem-nas Manuel anotadas num papel que escreveu para a Gazeta das Caldas: “as disputas de futebol durante a hora de almoço, as voltas de bicicleta no parque, os meus primeiros namoricos e os encontros na rua das Montras depois das sete da tarde, as inesquecíveis feiras do 15 de Agosto, as coboiadas nos desfiles carnavalescos, as marchas dos festejos do Dia da Cidade no 15 de Maio, as touradas à antiga portuguesa, a subida do Caldas à primeira divisão”.
E conclui: “as Caldas foram o paraíso da minha infância. Saí das Caldas, mas as Caldas não saiu de mim”.

A GUERRA EM MOÇAMBIQUE
Em Outubro de 1965, com 21 anos, o recruta Branco assenta praça no Regimento de Infantaria 7, em Leiria, de onde é transferido para a Base Aérea de Tancos. O agora militar vai servir a Pátria na Força Aérea como soldado condutor e, em Abril do ano seguinte, é mobilizado para Moçambique. Parte do cais de Alcântara em 28 de Julho de 1966 a bordo do Príncipe Perfeito, com milhares de soldados a caminho da guerra.
A viagem é longa. O navio faz escala no Funchal, em Luanda, cidade do Cabo (África do Sul) e chega a Lourenço Marques (hoje Maputo) a 17 de Agosto. A cidade, moderna, cosmopolita, encanta-o, mas rapidamente é desterrado para Nampula, no Norte de Moçambique, onde a vida do soldado-condutor decorre, mesmo assim, sem grandes sobressaltos, apesar do calor, do isolamento, das más condições, da má comida.
Mas o pior estava para vir. A guerra a sério estava mais para Norte, em Marrupa, para onde recebe guia de marcha e depois para Mueda, ainda mais a Norte e uma das piores frentes de combate de Moçambique. Ainda hoje, Manuel Branco Antunes tem dificuldade em falar do que lá viveu. Morteiradas, corpos despedaçados, sangue, gritos, a aflição de estar debaixo de fogo… enfim, a guerra com tudo o que ela representa.
Novamente as notas soltas: “o prolongamento da vida é constantemente ameaçado; a viagem de Nampula a Mueda (cheguei a 15 de Abril de 1967), os ataques, funerais, sofrimentos inacreditáveis, histórias para esquecer; lamentos, frustrações, choros, rezas… eu estava tão mal preparado para ir para a guerra”.
Um ano depois Manuel Branco Antunes é enviado para Nacala, onde, para seu grande espanto, descobre que “a instituição militar estava desarticulada” e que “a tropa era tão desorganizada, os militares andavam todos à balda, que ninguém sabia onde é que eu estava”. O discreto soldado tira partido disso: veste-se à civil, afasta-se dos quartéis e trabalha até como motorista de materiais de construção para um empreiteiro local. “Em Nacala deviam pensar que eu estava em Nampula e em Nampula julgavam que eu estava em Nacala”, diz Manuel, pensativo, 50 anos depois.
Por momentos, a vida sorri ao soldado que cumpriu 30 meses de tropa no Ultramar. É certo que Manuel é um espertalhão. Em Nampula faz amigos e amigas. Tem contactos. E às tantas, consegue obter através de uma amiga uma coisa valiosa para a época: um passaporte! “Dizíamos que o passaporte era o documento dos cinco “P”: Propriedade Proibida Para Pobres Portugueses. Não davam um passaporte a qualquer um”.
“MUITA CAUTELA ATÉ MADRID”
Manuel é desmobilizado e regressa à Metrópole (como então se chamava) em 6 de Janeiro de 1969. Mas, como tantos outros jovens, não vê futuro no Portugal de então e pensa em emigrar. Quer ir para o Canadá. Mas descobre que afinal o seu passaporte, por ter sido passado em Moçambique, não lhe permite viajar para o estrangeiro, embora, uma vez lá fora seja válido perante as autoridades dos outros países.
Já se disse aqui que Branco Antunes é um fura vidas. E sabe estabelecer contactos. Desta vez há-de subornar um Pide. Encontra-se com ele nas Caldas, dá-lhe cinco contos (o equivalente actualmente a um valor próximo de 2000 euros) e fica tudo acertado: o caldense irá passar no dia marcado na fronteira alentejana de Vila Verde de Ficalho (Serpa) acompanhado de um garrafão de cinco litros, que seria o elemento identificador. Vale a pena ler as notas da sua odisseia até chegar a Toronto: “no dia 5 de Julho de 1969 fui de camioneta para Vila Franca de Xira e mudei várias vezes até chegar a Ficalho. Era um dia de calor escaldante, dia que continuo a viver, cheio de incertezas e de sonhar acordado. As horas de viagem pareciam não ter fim. O calor era demasiado e nem mesmo abrindo as janelas ajudava o meu desconforto. Quando cheguei a Vila Verde de Ficalho, através da guarita, o oficial da Pide olhava directamente para o meu garrafão empalhado. Poucas palavras. Carimbou-me o passaporte e só disse: ‘muita cautela até Madrid’”. Meu Deus! Pensava eu que tinha chegado à liberdade e afinal estava enganado”.
Atravessada a terra de ninguém, já ao início da noite, Manuel Antunes chega a uma estação ferroviária e esconde-se num vagão de carga. Viaja toda a noite num comboio de mercadorias até chegar a Madrid. “E depois foi fácil. Fui ao aeroporto, comprei um bilhete, mostrei o passaporte e apanhei o avião”.
O emigrante chegou ao Canadá com uma mala, um garrafão e duas dívidas: “uma para com quem me emprestou dinheiro para a viagem e outra para comigo mesmo pois eu queria estudar, ser doutor ou engenheiro, subir na vida e ter êxito”.
NO SINDICATO E NA POLÍTICA
Mas o único trabalho onde se começa por cima é a abrir buracos. Manuel Branco Antunes vai trabalhar para a construção civil e depois para a agricultura nos campos de Bradford. Mas vai subindo. É admitido na Fittings Limited, uma fundição em Oshawa, e aprende inglês num curso nocturno.
A fábrica emprega mil trabalhadores e o caldense constata que, “apesar de estarmos no séc. XX, as condições eram próximas da escravidão”. Diz que “vi a necessidade de haver alguém destemido para alterar o que parecia estar errado” e torna-se delegado sindical.
Na Union Steward o português começa a dar nas vistas. Sabia comunicar com os outros trabalhadores e negociar com a administração. Torna-se respeitado. “Eu era muito activo e tratava dos problemas como se fossem meus. Apresentava factos concretos e procurava soluções”, conta.
O sindicato encorajo-a a continuar a estudar e paga-lhe algumas formações. E na própria empresa passa de operário de base a técnico de manutenção.
Em 1970 vai de férias para um destino que lhe irá mudar a vida – Wasaga Beach. “Aquilo era uma coisa formidável. Fazia-me lembrar a nossa região, com montes, água, árvores… Era mesmo lindo!”. Com as poucas poupanças e com a ajuda de um empréstimo bancário, compra logo uma casa de praia e decide que um dia irá para lá viver.
Entretanto, matricula-se no Durham College de Oshawa. Estuda de dia e trabalha na fábrica no turno da noite. Dois anos depois conclui o curso de mediador imobiliário.
Em 1974 a Fittings vive um conflito laboral intenso e está prestes a entrar em greve. Mas Manuel Branco Antunes por essa altura já tinha optado por um emprego de costas direitas e muda-se para Wasaga Beach onde arranjara trabalho como vendedor numa firma de imobiliário.
A partir de agora a vida do caldense emigrado no Canadá tem um rumo sempre ascendente. “Em 1975 e 1976 fui aceite como membro da Câmara do Comércio da cidade, entrei no Club Lions e fundei a Associação de Futebol de Wasaga Beach”, conta. Mete-se na vida cívica e política local e em 1982 concorre à Câmara e é eleito vereador. “Eu até sou liberal, mas fui numa lista de um partido conservador”, conta. Em 1984 faz parte da comitiva da cidade que recebe o Papa João Paulo II e um ano depois candidata-se novamente às eleições autárquicas e chega a vice-presidente da Câmara de Wasaga Beach.
A lista de feitos que conta à Gazeta das Caldas é extensa. Em 1988 é distinguido pelo primeiro-ministro do Canadá como “cidadão de mérito”. Com 44 anos, diploma-se em Economia na Universidade de Waterlloo (Ontário).
Por essa altura já trabalhava por conta própria no ramo imobiliário e tinha adquirido várias propriedades.
Em 1990 admite reformar-se e regressar em definitivo a Portugal. Cinco anos depois vende a quota da imobiliária ao seu sócio, mas continua a hesitar entre dois amores – Wasaga Beach e Caldas da Rainha. Acaba por decidir andar cá e lá, atravessando o Atlântico várias vezes por ano.
O solteirão empedernido, que adorava “viajar e gozar a vida”, acaba por casar aos 59 anos. Foi em 2003 que deu o nó com Debbie Grant, a canadiana que se apaixonou pelo português e também por Portugal.
“A minha mulher aprendeu a falar português e gosta de cá estar. Temos a nossa casa em Salir de Matos”, conta.
Manuel Branco Antunes não esconde que ganhou dinheiro, que tem bens e que isso lhe tem permitido conhecer mundo. “Mas quanto mais viajo, mais gosto de Portugal”, conclui.


































