Uma noite sobre carris no Lusitânia Expresso entre Lisboa e Madrid

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Notícias das Caldas Os comboios com carruagens-cama e restaurante já não têm o glamour e o toque de aventura de outros tempos. Mas ainda há algum charme e sobretudo muito conforto nas viagens de comboio internacionais. A CP mantém diariamente uma ligação directa desde Lisboa para Hendaya e para Madrid, tendo juntado num comboio único o Sud Expresso e o Lusitânia Expresso, que têm agora um trajecto comum pela linha do Norte e Beira Alta.
Trata-se do melhor serviço de passageiros que circula nos carris portugueses e que bem poderia passar pela linha do Oeste tendo em conta que entre Lisboa e Coimbra há mais gente concentrada no litoral (Torres Vedras, Caldas da Rainha e Leiria) do que pela linha do Norte (Entroncamento e Pombal).

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Há quem compare estas viagens às de um navio de cruzeiro em que, mais importante do que chegar ao destino, o que importa é o tempo que se passa a bordo. Neste comboio apagam-se as luzes da cabine e em vez do luar sobre o mar, vislumbram-se no escuro os vultos de colinas, casas e postes a passarem velozes pela janela. Beira Alta acima, adivinha-se ao fundo a Serra da Estrela, avistam-se luzes isoladas de aldeias e de apeadeiros onde o comboio não pára.
Chove nesta noite de Inverno, mas cá dentro está-se confortável e quente, a cama está feita, a luz de presença convida a ler antes de adormecer. É 1h00. Segundo o horário, circula-se algures entre as estações de Mangualde e Celorico da Beira. O comboio só voltará a parar na Guarda e em Vilar Formoso, onde a Notícias das Caldas locomotiva da CP dará lugar a uma máquina espanhola que rebocará a composição do outro lado da fronteira.
Mas por agora, são horas de dormir.
A viagem começara às 21h18, no preciso momento em que este comboio de 18 carruagens partiu de Santa Apolónia. Em rigor são dois comboios num só porque a primeira metade segue para a fronteira francesa de Hendaya e as nove carruagens detrás vão para Madrid. Em Medina del Campo, às 5h40 da madrugada, um ferroviário espanhol a tiritar de frio irá desengatar duas carruagens cortando o comboio ao meio, seguindo cada uma das metades para o seu destino.
Agora, na gare do  Oriente, onde o Sud e o Lusitânia têm dois minutos de paragem, esta comprida composição dá nas vistas por ser invulgarmente baixa e por ter carruagens muito curtas. Trata-se de um Talgo Pendular, uma tecnologia espanhola na Notícias das Caldas qual cada par de veículos assenta num par de rodas comum a ambos, diminuindo assim o peso e o atrito sobre os carris. Por sua vez, as carruagens não estão assentes ao nível das rodas como nos veículos ferroviários comuns, mas sim ao nível do tejadilho, funcionando assim como o pêndulo de um relógio de sala. Isto tem o efeito de, nas curvas, as carruagens se inclinarem de forma automática e natural, consoante a velocidade é maior ou menor, o que aumenta o conforto dos passageiros e  permite que o comboio circule a velocidade superior ao comum.
O compartimento da carruagem Gran Classe, de tons vermelho e rosa desmaiados, tem dois lugares que são transformados em camas e uma casa de banho privada com lavatório, WC e duche. O espaço, naturalmente pequeno, é engenhosamente bem aproveitado.
De resto, e como se verá mais à frente, o quarto só serve mesmo para dormir porque a vida social faz-se no bar e no restaurante. Para já, atente-se aos pormenores: A bolsinha que tem os logótipos da CP e da Renfe contém gel, sabonete, shampoo, escova de dentes, dentífrico, lâmina e creme de barbear, touca, lenços de papel, kit de costura, chinelos e graxa para os sapatos.

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O PASSAGEIRO É UM CLIENTE DE HOTEL

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Sendo um comboio-hotel, o passageiro é tratado como um cliente da hotelaria. Tem um cartão perfurado para abrir e fechar o seu quarto e o preço da viagem inclui o jantar e o pequeno almoço a bordo.
Não há pressa. Alhandra, Alverca, Vila Franca de Xira, Azambuja. A periferia de Lisboa passa a correr pela janela do compartimento, uma sessão de luzes amareladas, prédios, fábricas, armazéns. Abrindo-se a porta do compartimento para o corredor, avista-se pela janela o Tejo.
Sendo as carruagens muito baixas, sente-se o ruído da roda sobre o carril, que, no caso da linha do Norte, se acentua nos troços ainda não modernizados. Quinze anos e vários governos depois de terem sido começadas as obras, ainda há partes que não foram intervencionadas. Noutras nota-se a diferença: um suave e rápido deslizar, que mostra estar a via férrea em excelente bom estado.
Um Porto é um aperitivo oportuno num comboio cuja restauração está a cargo de uma tripulação portuguesa. O rissol vem acompanhado de raminhos de salsa e o tinto alentejano abre-se ainda antes da salada de fusili com salmão fumado. Segue-se um entrecôte e na sobremesa a escolha recai sobre uma tarte de amêndoa, que já se acompanha com um café e um digestivo.
Dito assim parece que o jantar se consumiu num ápice. Nada mais falso. Nas viagens de comboio é uma arte fazê-los durar. Este durou entre o Entroncamento e Santa Comba Dão. Segundo o horário, e com rigor de ferroviário, entre as 22 horas e 24 minutos e a meia-noite e quinze minutos. Quem não resiste ao vício, aproveita as paragens em Caxarias, Pombal e Coimbra para fumar apressadamente um cigarro no cais da estação.
O restaurante tem tons azulados que contrastam com o preto e branco das toalhas de mesa. Luzes indirectas e um design sóbrio dão-lhe uma atmosfera requintada e acolhedora. Sem paisagem, porque lá fora a escuridão é total, tudo convida a que os viajantes se voltem para o interior. Neste micro cosmos as pessoas cumprimentam-se, cúmplices, como se houvesse algo de distinto por estarem aqui a meio da noite a jantar à velocidade de 140 Km/hora.

BRASILEIROS, CUBANOS E ESPANHÓIS

Com excepção do jornalista não há mais portugueses entre os clientes do restaurante. Marisa é brasileira e viaja em classe turista. Prefere demorar uma noite a chegar a Madrid em vez dos 50 minutos da viagem de avião. “É confortável para descansar e dormir, é tranquilo, não tem atrasos, não é caro, sai e chega à hora marcada e não tem overbooking”, explica, acrescentando que é a segunda vez que viaja neste comboio.
Na mesa ao lado jantam uma angolana residente em Cuba, duas cubanas e um cubano. Foram a Fátima durante a tarde e voltaram para Lisboa de carro para apanhar o comboio, ignorando que bastaria tê-lo apanhado em Caxarias, a 25 quilómetros do santuário. Preferem o comboio para poder descansar durante a noite, mas acham que “é caro e o serviço não é muito bom”. Contudo é a terceira vez que viajam no Lusitânia.
Jorge Esteban, quadro de uma empresa industrial espanhola, é um habitué do Lusitânia. Vive em Valladolid e reparte a sua vida profissional entre Madrid, Tarragona e Portugal. O Lusitânia Expresso, diz, é uma excelente opção nas suas viagens de trabalho, em complemento com o carro e o avião.
À meia-noite a carruagem-bar, ao lado da carruagem-restaurante, tem um ambiente oposto. Basta atravessar o estreito corredor que as separa e a atmosfera intimista de uma dá lugar a um espaço amplamente iluminado, onde um grupo de espanhóis ocupa todo o balcão. Pelas gargalhadas e tilintar de copos e garrafas, parece que estamos num bar madrileno.
São jovens estudantes de Erasmus e fazem parte de um grupo de 30 que embarcou em Coimbra. Ana Alvarez e Ivan Rodriguez estudam Direito. Quando chegarem a Madrid, cada um apanha um avião. Ela vai para Santander e ele para Cartajena, em extremidades diferentes da Península. Outros colegas farão o mesmo, excepto os que vivem na capital espanhola. E explicam: este comboio directo de Coimbra para Madrid dá-lhes mais jeito e é mais barato do que irem a Lisboa ou ao Porto apanhar o avião.
Maria Luísa Martins é a excepção entre o ruidoso grupo. Tem mais do dobro da idade dos seus vizinhos de balcão. Aos 75 anos faz esta viagem uma vez por mês, desde que, há 25 anos, foi viver para Espanha. “Não gosto de andar de avião e ainda por cima o comboio agora é directo de Coimbra para Madrid”, conta. E há outra razão pertinente: como idosa, só paga meio bilhete. Com 70 euros vai e vem a Madrid. Em lugar sentado, sem direito a cama. “Mas durmo o tempo todo, é uma viagem tranquila”, remata.

PREÇOS PARA TODAS AS BOLSAS

O Lusitânia e o Sud são comboios democráticos pois procuram responder a vários segmentos de mercado. Por exemplo, o preço do Lisboa-Madrid vai desde os 60,50 euros em turística até aos 203,50 euros em Gran Classe Single. Pelo meio há ainda as classes de Cama Turista e de Cama Preferente, e combinações possíveis de grupos de três ou quatro pessoas num compartimento, bem como preços diferentes para crianças, idosos e em bilhetes de ida e volta.
Vilar Formoso, Salamanca, Medina del Campo, Ávila. Dorme-se embalado pelo andar do comboio, mas acorda-se nas estações, sobretudo quando as paragens se eternizam. Às seis da manhã (sete na hora espanhola) o diligente funcionário da Servirail acorda, através do telefone interno, os passageiros das carruagens-cama.
Lá fora é noite escura, mas a julgar pela quantidade de túneis, pontes, trincheiras e aterros, nota-se que o Lusitânia atravessa agora a Serra de Guadarrama. Apesar das curvas neste troço sinuoso, é impossível tombar para o lado no estreito habitáculo do duche, onde a água quente jorra em abundância. Mas é preciso algum equilíbrio ao fazer a barba.
Segue-se o pequeno-almoço. Sabe bem o café com leite quentinho, as torradas, o croissant… Mas é um pouco confrangedor, quando o comboio pára ou passa devagar em alguma estação, sentir os olhares indiscretos daqueles que, nas plataformas, aguardam o comboio suburbano que os vai levar para o trabalho em Madrid.
A manhã, invernosa, é adensada por uma neblina e uma humidade cortante, mas à qual o comboio-hotel parece blindado. Cá dentro está quentinho. Tempo ainda para um café expresso, de marca bem portuguesa, claro.
A estação de Chamartin aparece sem aviso prévio. São 8h20 quando o Talgo proveniente de Lisboa se imobiliza na gare. Pontualidade britânica no coração da Península Ibérica.

Nada impede que este comboio circule pela linha do Oeste
A ideia foi lançada no Verão passado (ver Gazeta das Caldas de 24/08/2012) por Eduardo Zúquete, que foi director de Planeamento da CP e professor do mestrado em Engenharia Ferroviária na Universidade Católica.
Em vez do Lusitânia e do Sud seguirem de Lisboa até Coimbra pela linha do Norte, porque não fazerem-no pela linha do Oeste, tendo em conta que num serviço deste tipo a velocidade e o tempo de viagem não é o mais importante? Na verdade, o comboio-hotel até tem um horário feito para que a viagem demore a noite inteira.
Numa carta publicada na Gazeta das Caldas de  24/08/2012, Eduardo Zúquete dizia:
“Numa síntese rápida direi apenas que o arco de cidades ferroviárias do Oeste – Torres Vedras, Caldas da Rainha e Leiria – e as inúmeras preciosidades históricas e turísticas a elas adjacentes – Fátima, Monte Real, Batalha, Alcobaça, Aljubarrota, Nazaré, Mafra, Linhas de Torres e por aí adiante – parece apresentar um interesse muito maior para o turista estrangeiro que o troço interior Santarém – Entroncamento – Pombal.
Por outro lado, o aumento de tempo de percurso entre Alfarelos e Lisboa (ficando o resto como atualmente) emerge não como inconveniente mas como fator positivo: a hora de saída de Lisboa só ganha antecipada, a hora de chegada só ganha retardada. É um bom exemplo que nem sempre andar mais depressa conduz à melhor solução.
Se a exportação é um das vias mais prometedoras para a reabilitação económica, se o turismo é a forma mais imediata de exportação e se a melhoria de acessibilidade é a maneira mais eficaz de dinamizar o turismo – então parece que esta proposta, aparentemente descabelada, tem interesse económico e pernas para andar.”
E para terminar imaginava o seguinte diálogo:
Encontrei os meus primos jantando num restaurante da cidade e fiquei surpreendido:
– Por aqui? Julgava-vos em S. Martinho a veranear, como de costume.
– E é onde estamos, de facto. Mas resolvemos, de repente, passar o fim-de-semana a Madrid, comprámos o bilhete pela internet e viemos apanhar o Lusitânia-Hotel a Caldas da Rainha. É mais prático do que ir tomar o avião a Lisboa.
– O Lusitânia? Madrid? Aqui, em Caldas da Rainha? Estarei mesmo a ouvir bem?
– Está muito desatualizado, meu caro! É o Lusitânia, mesmo, o autêntico. Vai partir de Caldas às 22h45 e amanhã, pelas 9h10, hora espanhola, estarei desembarcando em Chamartin!
Olhou para o relógio e acrescentou:
– Temos de ir andando. Queres alguma coisa de Madrid?
O actual presidente da CP, Manuel Queiró, é um homem de Coimbra e um dos principais defensores da região Centro, tendo reunido inúmeras personalidades e instituições em torno da ideia da abertura do aeroporto de Monte Real ao tráfego civil. Dificilmente poderá estar em desacordo com esta ideia de potenciar a Linha do Oeste nesta perspectiva da sua ligação com o turismo.

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