Quem levou anos a subir a um pequeno escadote
para chegar às prateleiras de cima, sem sinal de vertigens,
almeja o quê, merece o quê?
António Cabrita (para Isabel Castanheira).
Teresa Perdigão
antropóloga
A Loja 107 encerrou em Novembro de 2011. Lembro-me da última tertúlia, a 19 desse mês, e da prenda que Isabel distribuiu aos presentes. Num envelope vinham recordações do passado, como num adeus final, em memória: partilhando leituras com a cidade-1976-2011.
Lembro-me desse dia gélido. E dos anteriores, quando já não apetecia olhar pela montra, esse paraíso de Hélia Correia: O paraíso, tal como o entendo, estava naquela montra com livros e com gatos1 . Vicente e Florbela já não ronronavam ao som das conversas ao balcão, nem se espreguiçavam sobre as pilhas de livros que Lídia Jorge assinalou: havia uma pilha de livros equilibrada sobre uma outra pilha de base mais ampla, e essa outra sobre uma banca carregada de livros (… 2).

Lembro-me bem do cenário daquele enorme espaço pequeno com a livreira em permanente rodopio entre uma estante e outra para chegar ali e subir acolá. À sua volta havia os que conversavam, os que compravam e muitos que pediam informações sobre a cidade, Bordallo, D. Leonor, D. João V e outros assuntos para os quais a Isabel tinha respostas e sugestões. E a livraria foi-se transformando em paragem obrigatória, como Carlos Querido assinalou: Na Loja 107, entre os livros, as figuras de Bordalo e outras memórias, dormitavam dois gatos, e a sua presença discreta e tranquila contribuía para a atmosfera de intimidade cúmplice em que nos refugiávamos do bulício da rua3 . Na verdade, tudo parecia tão normal e evidente que só a memória nos pode trazer esses momentos 4:
O tempo não tinha medida na 107
As palavras intemporais de Eugénio, de David, de Ruy, de Natália voavam
À volta de quem entrava.

Lembro-me do dia em que, pela primeira vez, a livreira não abriu a 107. Vim a saber, pela própria Isabel, que manteve o ritual de tomar a bica matinal na Venézia, mesmo em frente à livraria, para imitar o quotidiano perdido. Restava o painel de azulejos a anunciar a livraria que já não existia.
Nada mais saía daquela porta fechada, de onde, faz neste Novembro 20 anos, o Outono se festejou assim: “No início deste novo ciclo do ano, em que o frio, o vento e a chuva se têm feito sentir, a Loja 107 programou um ciclo de Cafés Literários, que denominou Palavras de Outono”.
Vieram às Caldas, nesse mês, Isabel do Carmo, Ana C. Miranda, Maria João Fagundes, Daniel Sampaio, Laurinda Alves, Inês Pedrosa e Mário de Carvalho. É obra, Isabel! Dezembro estava guardado para o seu amigo Lobo Antunes.

À parte esta iniciativa, que preenchia os nossos Outonos, Os Cafés Literários decorriam ao longo do ano. O Camaroeiro, o café Lála o antigo Pópulus, o Central e Os Pimpões enchiam-se para celebrar autores, ou para festejar os 120 anos do nascimento de Bordallo, ideia da Isabel que mereceu honras de primeira página no Expresso.
Hoje, nem o painel de azulejos, nem um apontamento em verso, nem uma citação de um dos livros que a Isabel mais apreciava, nem referência a Bordallo, seu amante preferido, nem um símbolo que dê vida à memória da loja desaparecida, como o gato Gil ou a gata Florbela, os seus guarda-livros.
Relembrar a Loja 107 é fazer com que os seus 35 anos de vida (1976-2011) fiquem na história das Caldas, dignificando o papel que este lugar teve na identidade colectiva, que se revela pela voz de tantos caldenses, como a do poeta José Ricardo Nunes: A Isabel e a 107 estão para sempre ligadas ao meu gosto pelos livros e pela literatura. Foi lá que adquiri aquelas obras que se lêem aos vinte anos e que nos acompanham para sempre. Boa parte da minha formação literária deve-se à Isabel e à 1075.
Esta forma de ser livreira ainda se nomeia 107 – Loja – Livraria. Basta retirar as camadas publicitárias que cobrem o painel de azulejos, existente entre o 107 e o 109 da Rua Heróis da Grande Guerra.
Não há um fim. ■
1 www.ccc.com.pt/2-ccc/815-criticas-livro-as-caldas-de-bordalo-de-isabel-castanheira-e-miguel-macedo
2 Idem.
3 QUERIDO, Carlos (2014) – Rubricas Semanais, in Jornal Gazeta das Caldas.
4 Poema de Clara Melo, feito expressamente, a meu pedido, para esta publicação.
5 NUNES, José Ricardo in Homenagem à Loja 107.






























