Fez ontem, 2 de Novembro, 92 anos que Caldas da Rainha viveu um dia festivo quando recebeu em glória o seu filho da terra José Tanganho, o “fugitivo” da Volta a Portugal a Cavalo. E faz amanhã, 4 de Novembro, 92 anos, que a então vila voltaria a festejar a vitória do intrépido cavaleiro ao confirmar que este tinha sido o vencedor daquela prova épica.
No entanto, José Tanganho tinha cruzado a meta, em Lisboa, em segundo lugar e, ainda por cima, a pé, com o cavalo pela rédea porque o quadrúpede estava com uma imensa bebedeira. Nessa noite, porém, um acaso do destino fez com que Tanganho se sagrasse o vencedor da Volta a Portugal a Cavalo.

José Tanganho dá nome a uma das ruas da cidade, mas poucos são os que sabem quem foi este caldense. Ficou famoso por ter vencido a primeira e única Volta a Portugal a Cavalo em 1925. Foram 1458 quilómetros percorridos em 25 dias num país que mal tinha estradas e onde cada cavaleiro levava uma arma para se defender dos assaltantes ou para abater o cavalo ferido se tal fosse necessário (o que chegou a acontecer). Uma prova que começou com 39 cavaleiros, dos quais só três chegaram ao fim.
Disputando o primeiro lugar com oficiais do Exército, o jovem caldense foi o favorito dos portugueses, o herói do povo que ia quase sempre à frente, que ganhava etapas, mas que se deixou ultrapassar já perto da meta que viria a cortar em segundo lugar.
A prova começara em Lisboa a 10 de Outubro no Jockey Club, no Campo Grande. Havia 43 inscritos, mas só compareceram 39 cavaleiros que passaram pelo hospital veterinário de campanha para pesagem e exame dos cavalos. Dignitários da então jovem República Portuguesa não faltaram ao tiro de partida. Estavam presentes os ministros da Guerra e da Agricultura, o Chefe do Estado Maior do Exército, o comandante da GNR, o governador civil e o presidente da Câmara de Lisboa.
A iniciativa de organizar a I Volta a Portugal a cavalo era do Diário de Notícias e seria um retumbante sucesso pois, mesmo sem televisão e sem rádio, o país iria segui-la com grande entusiasmo através das páginas dos jornais. E num país que então não pendia como hoje para o litoral e não tinha o seu interior despovoado, foram muitos os portugueses que tiveram a oportunidade de ver os cavaleiros que ao todo passaram por 70 vilas e cidades do país.
Mas para já são os lisboetas que, sob chuva intensa, assistem à passagem da caravana pelo Rossio, Rua Garrett, Rua do Alecrim e Cais do Sodré, onde esta embarca em dois vapores para Cacilhas. A prova só então vai começar e a primeira etapa será de Cacilhas a Setúbal. Pelo caminho passam por Azeitão, por volta das 16h00, e chegam à beira do Sado ao fim da tarde sob o estrelejar de foguetes e a música da Banda do Regimento de Infantaria 11.
Setúbal acolhe os cavaleiros na sua primeira etapa, mas José Tanganho, Germano Rodrigues (um bombarralense que também participava na prova) e mais dois cavaleiros arrancam logo para o próximo controlo em Alcácer do Sal e prosseguiram noite fora para Grândola.
Com poucas horas de sono, e cavalgando muitas vezes durante a noite, a dupla Tanganho e Germano chegam a Faro quatro dias depois (a 13 de Outubro) com duas horas de avanço sobre o tenente Brandão de Brito e o capitão Rogério Tavares.
Segundo a caderneta de José Tanganho, o caldense e o seu cavalo – chamado Favorito – chegaram a Faro às 16h00 e partiram às 18h46. A partir daí iniciam a subida para S. Brás de Alportel onde pernoitam entre as 20h50 e as duas da manhã. Segue-se Mértola e Beja (a 15 de Outubro), Évora no dia seguinte e Vila Viçosa e Elvas no dia 17 de Outubro.




O civil de origem humilde
A travessia do Alentejo é feita sob uma intensa chuva, mas José Tanganho é quase sempre o primeiro a cortar a meta e vai acompanhado do seu amigo Germano Rodrigues. O bombarralense é um dos três cavaleiros civis. Os restantes eram oficiais do Exército, todos alferes, tenentes e capitães. Tinham o apoio de veterinários e alguns eram eles próprios oficiais veterinários. Daí a preferência do povo por José Tanganho. Em 1925, no estertor da I República, fartos de revoluções e golpes de Estado, os portugueses não morriam de amores pelos militares e simpatizavam claramente com um civil de origem humilde que disputava o pódio com os chamados “scientíficos” que possuíam cartas militares e conhecimentos técnicos para enfrentar a prova.
Com um clima adverso (naquele tempo em Outubro chovia e fazia muito frio), José Tanganho é também o primeiro a chegar a Portalegre. A caravana tem cada vez mais baixas, mas o caldense continua a dar nas vistas e mantém-se como o favorito, ao lado do seu Favorito.
Na Beira Baixa, o caldense perde a primeira posição, mas vem a recuperá-la em Castelo Branco, onde chega a 19 de Outubro pelas 14h55. Cavalgando noite e dia, sob condições duríssimas, cavalos e cavaleiros arribam à Covilhã na manhã de 20 de Outubro. Atente-se bem: saíram de Lisboa a 10 de Outubro e apenas dez dias depois já desceram o Alentejo até ao Algarve e subiram pelo interior até aos contrafortes da Serra da Estrela.
O “pelotão” da frente é composto por José Tanganho e três capitães. Partem depois de dez minutos de descanso para a Guarda onde chegam às 17h50. Mas não param: às 23h12 entram em Celorico da Beira. O grupo seguinte só ali chega às 11h30 do dia seguinte, com 13 horas de atraso.
Por esta altura, José Tanganho reúne um consenso quase nacional. É vencedor em Foz Côa e vai disputando o primeiro lugar em cada etapa com os outros três fugitivos.
Em 22 de Outubro, o caldense é o segundo dos quatro a chegar a Bragança. A partir daqui serão só três porque o cavalo do capitão Ramires adoece. As crónicas da época dizem que “com enorme temporal à mistura, chegaram a Chaves totalmente encharcados devido à luta que travaram contra o mau tempo”. A meteorologia, com chuvas intensas e trovoadas (há relatos de relâmpagos que iluminam as figuras fantasmagóricas dos cavaleiros isolados na serrania), é inclemente e explica muitas desistências.
Em Chaves, Tanganho amealha mais uma vitória (e a respectiva recepção apoteótica). Chega a esta cidade às 15h00 e só arranca no dia seguinte às 17h00, naquilo que foi uma das mais prolongadas pausas de todo o percurso.

Cavalos que morrem de exaustão
A diferença de classes é notória na logística entre civis e militares. Enquanto o tenente Brandão e o capitão Rogério Tavares, a convite da empresa de águas Pedras Salgadas, jantaram e pernoitaram na estância termal, o civil Tanganho dorme num estábulo com a sua montada.
O trio continua fugido de um pelotão cada vez mais disperso e desalinhado. Há cavaleiros que se perdem, cavalos que morrem de exaustão.
Em 25 de Outubro José Tanganho cruza três postos de controlo: Vila Real, Amarante e Penafiel. No dia seguinte está em Braga onde é recebido por 5000 pessoas.
Os “fugitivos” da Volta a Portugal a Cavalo (José Tanganho, capitão Rogério Tavares e o tenente Brandão) disputam as etapas minhotas de Arcos de Valdevez, Monção, Valença e Viana do Castelo, onde o caldense chega em primeiro lugar no dia 28 de Outubro às 12h51.
A organização da prova impunha nesta cidade uma pausa de dois dias para iniciar a descida até Lisboa. Dos 39 participantes iniciais, só nove alinham para o tiro de partida.
Nesta fase, José Tanganho fica para trás. Para seu azar, o Favorito teve quatro “furos” e por quatro vezes o cavaleiro teve de lhe mudar a ferradura. No Porto o cavaleiro das Caldas da Rainha já não vai na dianteira como até então se acostumara.
Mas a sua recuperação vai ser rápida e surpreendente. Em Aveiro já é novamente o primeiro. Chega à cidade do Vouga às onze da noite, mas às três da manhã já está novamente a cavalo, rumo ao sul. Às 5h40 passa por Anadia e Coimbra recebe-o às 9h40 do dia 1 de Novembro. Já leva cinco horas de avanço sobre os seus seguidores. Mas a paragem apenas dura quatro minutos. Ao meio dia, cavalo e cavaleiro estão em Condeixa e às 21h40 em Leiria. O avanço já é de sete horas. José Tanganho não dorme. Ainda não são 2h00 da manhã e já está de novo em marcha. Às 5h40 chega a Alcobaça e só descansa uma hora porque é muita a pressa e a vontade de chegar à sua terra Natal.
Herói caldense e herói nacional
Soam foguetes. O herói caldense é, por esta altura, também já um herói nacional, carimba a sua caderneta no posto de controlo das Caldas às 12h44 do dia 2 de Novembro. O “camisola amarela” é abraçado, felicitado e não resiste a demorar-se na calorosa recepção de que é alvo. Está a 200 quilómetros de Lisboa porque o percurso inverte agora para Leste a fim de tocar Santarém e descer depois pelo Tejo até à capital.
Tudo parece bem encaminhado, mas há um homem que não perde tempo e se mantém firme no encalce do fugitivo – o capitão Rogério Tavares.
No mesmo dia em que parte das Caldas, José Tanganho chega a Santarém às 21h40 onde só se detém dez minutos. E nesse mesmo dia, três minutos antes da meia-noite, está no Cartaxo.
É aqui que as coisas correm mal. O comerciante António Rosa, proprietário do Favorito, faz festa rija e oferece a totalidade do champanhe existente na vila durante a recepção ao cavaleiro. Tanganho perde tempo. Rogério Tavares ganha-o. E ultrapassa-o a menos de cem quilómetros de Lisboa.
Mais tarde o caldense haveria de contar que alguém lhe oferecera vinho do Porto para dar de beber ao cavalo, garantindo que era remédio santo para a montada ganhar forças.
O episódio não é uma simples lenda porque José Tanganho repete-o em várias entrevistas ao longo da vida. Afinal, o Favorito ficou com uma valente bebedeira e é isso que explica que, às 9h38 do dia 3 de Novembro, depois de noites sem dormir, o caldense cruze a meta com o cavalo pela rédea. Em segundo lugar.
Os jornais da época dizem que o povo – que se juntara para aplaudir o cavaleiro civil – ficou em silêncio ao ver chegar o capitão Rogério Tavares, mas que aplaudiu entusiástico o segundo, Tanganho, a chegar à meta. Seguiram-se o tenente Brandão de Brito e o capitão Silva Dias, algumas horas depois.
No dia seguinte haveria uma prova de saltos para terminar a duríssima Volta a Portugal a Cavalo. Mas nessa noite acontece o inesperado: Emir, o cavalo do capitão Rogério Tavares, morre de exaustão e o seu cavaleiro é desclassificado. A prova de saltos contará apenas com os três cavaleiros sobreviventes. Trinta e seis cavaleiros tinham desistido. Dez cavalos tinham morrido de exaustão ou sido abatidos.
No rescaldo desta volta épica, José Tanganho é, obviamente, o vencedor. E torna-se o herói do povo. Completam-se amanhã 92 anos deste feito de um caldense.
Quando o capitão Rogério Tavares ultrapassou José Tanganho
A Gazeta das Caldas, que tinha sido fundada há um mês, relata na sua edição de 5/11/1925 que para os lados do Ribatejo se vivia “uma noite estranha, de febre e de presságios, de neblina intensa e profunda” onde “os faroés dos automóveis recortavam sombras fantásticas numa multidão em delírio”. Assim escrevia o colaborador do jornal Branco Lisboa, pai do nosso conterrâneo farmacêutico João Branco Lisboa.
“Vai-se para o Cartaxo, a noite é maior ainda. Os automóveis ameaçam a cada momento desconjuntar-se, aos repelões, saltando aqui, mergulhando acolá, contorcendo-se mais além. Quando chegámos já Tanganho lá estava, e, com ele, a mesma multidão que encontrámos em Santarém”. Uma multidão composta de muitos automóveis e cavaleiros que acompanham os dois rivais da prova. “O capitão Rogério começa a perseguir o galope da montada de Tanganho. Seguimo-lo. Passáramos Vila Franca. Onde terminaria essa corrida louca? Os cavalos e os automóveis cada vez crescendo mais em número. A certa distância veêm-se dois obeliscos. Estamos a chegar à Póvoa. Outro grito se ouve na mesma voz de timbre cheio:
Eh… Tanganho!…
E Tanganho olha, com olhos de criança ao ver um brinquedo partido. Ainda tem um ímpeto agitar-lhe os nervos rijos. Aperta o cavalo. Mas o pobre “Favorito” já tinha andado demais. Dócil até ali… Mas já não pode…
Tanganho afaga-o e apeia-se.
Entretanto o capitão Rogério não corre – voa, entre quatro camaradas [não participantes].
Pobre Tanganho!…”.
A glória do cavaleiro
Mário Lino, autor do livro “José Tanganho na Volta a Portugal”, conta que o jovem caldense era de origem modesta, mas não miserável. O seu pai tinha um negócio de aluguer de trens e galeras. O miúdo crescera entre os cavalos e acabaria a trabalhar para o maior mestre de equitação do país – Vitorino Fróis – que o aconselharia no treino do Favorito.
Para se preparar para a Volta, José Tanganho levava o cavalo para a Foz do Arelho, atava-o a uma bateira e remava pela lagoa enquanto o Favorito era obrigado a nadar e a seguir o barco com o objectivo de “ganhar pulmão”. Depois, para poder alargar os músculos, com os cascos enterrados na areia, cavalgavam juntos criando um binómio sintonizado.
O cuidado com a montada levou a que grande parte dos 1458 quilómetros fossem feitos a pé. José Tanganho contou que em 25 dias rompeu três pares de botas.
A glória do cavaleiro durou ainda várias décadas. Durante algum tempo, Tanganho foi contratado para se exibir no Coliseu de Lisboa e no Palácio de Cristal no Porto. Era bem pago. Recebeu a alternativa e tornou-se cavaleiro tauromáquico.
“Nas corridas onde ele participava os bilhetes esgotavam. Enchia as praças, mas não porque fosse um grande toureiro… Era médio, modesto. As pessoas queriam era ver o vencedor da Volta a Portugal a Cavalo”, conta Mário Lino.
O herói torna-se amigo íntimo do mestre David Ribeiro Telles, com quem parte para Moçambique, em 1961 para fundar uma ganadaria. Regressa a Portugal em 1967 e morre no ano seguinte com 80 anos. Está sepultado em Coruche onde viveu os últimos tempos da sua vida.
Não foi por acaso que o director do Museu do Ciclismo se interessou pela Volta a Portugal a Cavalo. “A primeira Volta a Portugal em Bicicleta ocorre em 1927, dois anos depois da Volta a Cavalo. É também organizada pelo Diário de Notícias, com o mesmo itinerário e até com o mesmo número de concorrentes”, conta Mário Lino. “A volta a Portugal em bicicleta teve origem nesta volta a cavalo e pode-se dizer que José Tanganho foi tão importante para a época como mais tarde o Joaquim Agostinho e o Alves Barbosa no ciclismo, ou até o Eusébio no futebol”, acrescenta.
HOMEM DE FARRAS, COPOS E MULHERES
Cristina Bernardo, 57 anos, é a única neta viva de José Tanganho. E é a depositária de um espólio valioso: uma caixa cheia de recortes de jornais amarelecidos, alguns já desaparecidos como A Capital, o Diário Popular, O Século. Estão também o Diário de Notícias, A Bola, a Gazeta das Caldas. Todos trazem notícias do seu avô, mas a maioria são reportagens realizadas décadas depois do feito de 1925, mas com o cavaleiro ainda vivo a dar o seu testemunho. Entre os documentos guardados está a caderneta com os carimbos, horas e observações sobre o “estado da montada” nos controlos da Volta a Portugal e que, a par do livro de Mário Lino, permitiram escrever este artigo.
Cristina só viu o avô uma vez. Tinha nove anos quando foi com o pai à Herdade da Torrinha (Coruche) de onde guarda na memória um velhote muito magrinho deitado numa cama. José Tanganho tinha regressado poucas semanas antes de Moçambique e morreria dias depois.
Deixou três filhos e uma filha, que também já morreram. Restam uma neta (Cristina Bernardo) e sete bisnetos. O herói nacional não era uma figura simpática nem afável para a família. Encarnava o cliché do homem dos cavalos e dos touros. Gostava de farras, de copos e de mulheres.
“O meu avô viveu nas Caldas e em Alfeizerão. Foi cá que nasceram os filhos, mas quando enviuvou, mudou-se para Coruche e lá casou pela segunda vez. Era íntimo do David Ribeiro Telles e continuou sempre ligado aos cavalos”, resume Cristina Bernardo, que tem o projecto de digitalizar o espólio das notícias sobre o avô, apesar de notar que os filhos e sobrinhos não se interessam especialmente pelo figura do seu bisavô que foi um herói nacional.






























