José Saloio viveu na Alemanha 36 anos e por lá viu o 16 de Março e o 25 de Abril

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O casal, José e Lurdes Saloio, no jardim da sua casa, em Salir de Matos

José Saloio é natural de Salir de Matos e trabalhou na tipografia Minerva Caldense e na Rol antes de emigrar, em 1971, para a Alemanha, onde ficou 36 anos. Lembra-se de ver na televisão alemã um mapa de Portugal com um círculo a assinalar as Caldas da Rainha. Foi a 16 de Março de 1974 e, para sua surpresa, a sua terra era notícia a nível mundial. Recorda-se também do 25 de Abril e ver Mário Soares a falar a um canal alemão.
Actualmente, ele e a esposa, Lurdes, dividem o tempo entre os dois países. Por cá divertem-se em caminhadas e entretidos no jardim e na horta. Na Alemanha têm dois filhos e quatro netos.

José Saloio nasceu em Junho de 1946 em Salir de Matos, numa casa onde hoje fica o Centro Pastoral. Fez a 4ª classe na sua terra e depois, apesar de até nem ser mau aluno, as possibilidades de continuar a estudar eram poucas.
Com quase 12 anos, começou a trabalhar na Minerva Caldense. O jovem ia buscar encomendas à estação de caminhos de ferro e distribuía-as. “Havia três tipografias nas Caldas e aquela era a mais antiga. O meu primeiro ordenado foram 150 escudos [0,75 euros]”, recorda. Com o tempo, foi aprendendo também a compor e a encadernar. “Na altura só tínhamos uma máquina automática, que era uma Heidelberg. Mais tarde soube que a sogra da minha filha tinha trabalhado na fábrica mãe, na Alemanha”.
José Saloio ia e vinha todos os dias a pé de Salir de Matos para as Caldas, excepto quando aparecia alguma boleia. “Quando chovia, tínhamos que fazer grandes desvios porque não havia estradas alcatroadas e os caminhos ficavam intransitáveis”, conta.
Dessa altura recorda ainda que chegava a ir mais cedo para as Caldas para poder jogar à bola no Campo da Mata. “Uma vez ou duas aconteceu chegar atrasado ao trabalho, com as botas todas enlameadas”.
Um ano depois, José Saloio foi trabalhar com o pai para o campo. O pai era caseiro da família Pereira, que detinha vários terrenos e quintas nas Caldas e arredores.
Mas o rapaz andou pouco tempo a trabalhar com o pai. Aos 14 anos surgiu-lhe a oportunidade de ir para a Rol como moço de recados. Por essa altura, José Saloio já tinha uma bicicleta e ia a pedalar de Salir de Matos para o Lavradio.
Na fábrica começou a aprender electromecânica e em 1962 foi estudar à noite para a Escola Industrial e Comercial (hoje Rafael Bordalo Pinheiro). “Praticamente fui estrear aquela escola, que tinha boas oficinas”, conta. O jovem saía cedo de casa, ia para o trabalho e de lá voltava para casa por volta das 18h00. Depois saía novamente a pedalar em direcção às Caldas para as aulas, que começavam às 20h00. Ao fim da noite regressava a Salir de Matos. Começou os estudos na área da serralharia, mas decidiu depois mudar para a parte eléctrica.
A certa altura, quatro dos cinco irmãos trabalhavam na fábrica de rolamentos. A José juntaram-se João, Arselino e Ilda Saloio.
Em Agosto de 1967, com 21 anos, foi para a tropa onde esteve três anos. Assentou praça em Leiria e tirou a especialidade em Santa Margarida e no Regimento de Transmissões do Porto. O resto do tempo foi cumprido em Tancos.
Na tropa, para vir a casa, os militares tentavam organizar-se em grupos de 30 ou 40 para alugarem um autocarro. Outra possibilidade era vir de comboio, que custava apenas 20 escudos (10 cêntimos). “Tínhamos de ir a Lisboa ou Alfarelos para vir a Caldas, portanto só utilizava essa via quando tinha um fim-de-semana mais comprido”. É que além disso, vir de comboio implicava, depois de chegar às Caldas, ir a pé até Salir de Matos. Por isso, muitas vezes ficava os fins-de-semana em Lisboa onde tinha um primo, o padre José da Felicidade Alves.
O seu primo nunca escondeu as suas discordâncias em relação ao regime político e religioso. “A casa do padre era um albergue para as pessoas de esquerda e foi mesmo considerada como uma casa de conspiração. Eu lembro-me de, mais do que uma vez, estar deitado num quarto e a porta abrir-se, com malta das reuniões que vinha ver se havia sítio para dormir”.

O aviso de um desconhecido

Numa das vezes em que ficou a dormir em casa do seu primo, vinha embora para a estação de Santa Apolónia e já não foi a tempo de apanhar o comboio. Pediu ao chefe de estação para lá ficar à espera do seguinte porque aquele era o último da noite e só havia outro comboio de madrugada. Mas sentiu-se seguido por um homem que tinha entrado no autocarro no mesmo local que ele e que também saíra na estação. Acresce que esse homem, depois de José falar com o chefe da estação, esperou que ele se afastasse e foi falar com o ferroviário. José Saloio ainda hoje pensa que foi seguido pela PIDE e que só não foi detido porque era militar.
Nesse momento apareceu um alferes miliciano que o avisou: “você saia daqui e esconda-se numa porta escura numa rua próxima até faltarem dois ou três minutos para o comboio e depois venha a correr e entre, porque nós fomos avisados e vem aí a Polícia Militar”. Ainda hoje José Saloio diz que está “muito grato a essa pessoa da qual não sei o nome, mas lembro-me das feições”.
Fez o que lhe mandaram e nada aconteceu, mas a partir daí, e apesar de nunca ter sofrido na pele nenhuma perseguição concreta por parte do regime teve “sempre um pressentimento de que não estava sozinho”.
Depois da tropa voltou para Rol até se despedir em 1971. Ainda se lembra do director, “de quem pouca gente gostava”, o senhor Loi, que lhe ofereceu um aumento de salário para ficar. “Disse-lhe que se eu merecia mais dinheiro amanhã, então também tinha merecido ontem. Por isso, algo tinha falhado”.
Foi por essa altura que meteu na cabeça que “tinha que sair de Portugal”. Sentia que “havia sempre uma pessoa perto dos portões e eu sabia que havia muitas pessoas em Salir de Matos que eram informadores”.
José Saloio até tinha conseguido obter legalmente um passaporte, documento que, à época, até nem era acessível para qualquer um. Conseguiu um contrato de trabalho para França, mas preferiu esperar por uma nova oportunidade e ir para a Alemanha trabalhar na metalomecânica na MaschinenFabrik.
A oportunidade surgiu porque um conselheiro alemão veio visitar a escola comercial nas Caldas e elogiou o estabelecimento de ensino, dizendo que era uma pena existirem tão poucas assim em Portugal. Contente com o que viu, abriu as portas das empresas alemãs aos alunos caldenses.

Viagens que foram aventuras

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José Saloio fez as malas e, como tantos outros na altura, apanhou o comboio em Santa Apolónia para além Pirinéus.
Em Vilar Formoso, como era habitual, o comboio foi controlado pela PIDE e pela guarda fiscal. Daí foi para Irun. “Aí é que foi um pandemónio porque tivemos que andar mais de um quilómetro em túneis e depois tínhamos mesas com mais de 100 metros de comprimento onde se punham as malas e era tudo revistado”.
Prosseguiu viagem, já num comboio francês, durante a noite e quando amanheceu, apercebeu-se que estava em Paris. Ia sozinho, mas nos dois ou três dias de viagem acabou por fazer vários contactos.
Da capital francesa seguiu para Frankfurt onde encontrou uma missão de católicos portugueses que sabia que o comboio ia chegar e que lhe deu um envelope onde dizia “Frankfurt x horas Gießen – Alsfeld” e depois tinha escrito em alemão “Gleiss e um número” que na altura nem percebeu. “Meti-me no comboio e a dada altura parou durante mais de meia-hora por trabalhos na via. Cheguei a Gießen e vi que a Gleiss era a linha que tinha de apanhar. Eu fui para essa linha, mas o comboio já tinha ido embora. Esperei um bocado e fiquei sozinho sem saber o que fazer, até que apareceu um tipo com um chapéu vermelho e eu, não sabia dizer nada, mostrei-lhe o papel. Ele disse qualquer coisa que eu não percebi e ele escreveu o horário e a linha, que já não era a mesma”.
A partir daí tudo bem, ou quase… É que na cidade para onde ia – Alsfeld – estava o pessoal da firma à espera que José Saloio chegasse no comboio que perdera. Não chegou e eles foram-se embora.
Quando finalmente desembarcou em Alsfeld, colocou-se à porta da estação. “Volta e meia vinha um carro e eu pensava: ‘olha é este’. Estive assim mais de uma hora e nada, até que peguei no papel verde que era o contrato de trabalho e que tinha o nome da firma, fui a um táxi, mostrei-lho e ele levou-me à firma, onde já pensavam que eu não vinha”.
Chegou à Alemanha em 1 de Novembro de 1971 e o seu primeiro dia de trabalho foi feriado. “Ganhei sem trabalhar”, graceja.
O chefe era alemão, mas falava português porque tinha estado vivido no Brasil durante a II Grande Guerra. Quando chegou à fábrica, ficou “decepcionado com a máquinas e porque aquela zona ainda apresentava muitos vestígios da guerra”.
Vivia numa casa, alugada pela empresa, com cinco portugueses que já lá trabalhavam. Era uma antiga moagem, com um canal de água a atravessar a casa e tinha um piano. Ficava numa aldeia próxima e iam de comboio para o trabalho todos os dias. “Os alemães foram muito acolhedores. Estive lá 36 anos e nunca tive a mínima razão de queixa. Agora vejo alguns comentários racistas e por causa disso até já deixei de falar com alguns colegas que lá tinha”.
No primeiro ano foi passar o Natal com o primo, em Monchengladbach, a mais de 300 quilómetros. Depois, uma vez por mês, fazia essa viagem para o visitar.
Cumpriu um ano de contrato nessa fábrica, que era perto da antiga Alemanha de Leste, e depois decidiu mudar-se para junto do primo, onde podia trabalhar na sua área.

Madrinha de guerra… sem ter ido à guerra

Mas regressemos um pouco atrás no tempo, ao momento em que José Saloio ainda estava em Portugal. Apesar de não ter ido para o Ultramar, o caldense teve uma madrinha de guerra, que se chamada Lurdes e era da Benedita. Durante três anos corresponderam-se trocando cartas, que era a única forma de comunicação possível na época pois quase não havia telefones e as chamadas eram caras.
Lurdes e José já se tinham visto uma vez nas Trabalhias, porque Henriqueta tinha uma tia que morava em Salir de Matos e um dia combinaram e ela veio visitá-lo, mas acabaram por não se conhecer. Lurdes Saloio conta que “vinha com uma prima minha e ele pensou que ela era eu”, lembrando que só travaram contacto visual.
Na altura estavam em Salir de Matos dois padres jovens que eram irmãos e que trabalhavam no campo, onde ganhavam ordenado como os outros trabalhadores. Era o padre António e o padre Jesuíno e “foram padres exemplares”, recorda. “Nunca vi o padre António a dançar, mas levava-nos no seu Carocha aos bailes, comia connosco e trazia-nos”.
Foi esse padre que levou José Saloio ao encontro de jovens da Benedita, para visitar a sua madrinha de guerra. “Conheci-a e era tudo real, o que ela tinha escrito era o que eu via, fui muito bem recebido pela família dela e gostei muito”. Depois foi para a Alemanha e Lurdes seguiu a sua vida profissional em Lisboa. Mas continuaram a escrever-se durante muito tempo até que em Abril do ano seguinte pediu-a em namoro. Um ano depois, ainda com Lurdes em Portugal, José veio à Benedita casar, arrancando o casal, duas semanas depois, para a Alemanha. Lurdes Saloio diz hoje que “fui passar a lua-de-mel à Alemanha e fiquei lá 36 anos”.

Na TV alemã um mapa de Portugal com Caldas assinalada

Os primeiros anos de José Saloio nesta nova firma foram passados a fazer os painéis eléctricos de máquinas de têxtil que preparavam os fios para os teares. Faziam 150 máquinas por mês para diferentes locais do planeta. José Saloio trabalhava na adaptação das máquinas para cada local.
“A 16 de Março de 1974 vi na televisão as notícias com um mapa de Portugal com um círculo a marcar as Caldas da Rainha”. Era o famoso golpe falhado. Pouco mais de um mês depois, no 25 de Abril, viu Mário Soares, que vinha da parte leste da Alemanha a entrar na parte ocidental, a falar a um canal alemão sobre a Revolução dos Cravos.
No ano seguinte nasceu a filha do casal, Sandra, e o filho, Marco, três anos depois. Em 1983, com as poupanças que angariaram, começaram a construir uma casa em Salir de Matos.
Os anos foram-se passando em solo germânico, onde recebiam as notícias através da Gazeta das Caldas, de que já são assinantes há mais de 30 anos.
Com a globalização e a redução de custos, a empresa em que trabalhava decidiu centralizar os serviços daquela fábrica numa outra a 45 quilómetros de distância. Propuseram-lhe a mudança e até lhe ofereciam um aumento, mas a nova localidade não tinha escola portuguesa. “Fizemos sempre questão que os nossos filhos estudassem em escolas portuguesas na Alemã e lá fizeram o 12º ano”.
José Saloio recebeu uma proposta para ficar na secção da assistência até passar a inspector de aparelhos eléctricos. A firma que tinha chegado a ter mais de 6000 empregados, tem hoje cerca de uma centena e foi sendo vendida aos bocado. Mal informado, o caldense acabou por perder 30 anos de casa, assinando por uma outra empresa e ficando a trabalhar no mesmo local, mas com exigências cada vez maiores.
Já com 60 anos, quiseram impor a José Saloio um cargo que o obrigava a conduzir o seu carro por centenas de quilómetros e que só começava a ser pago quando chegava aos locais onde ia trabalhar.
“Tive que me despedir para me reformar aos 60 anos”. O filho já tinha concluído a universidade e já estava a trabalhar, pelo que o casal decidiu então regressar a Portugal.
Hoje têm quatro netos. Os filhos e os netos vivem na Alemanha, mas costumam vir a Portugal e gostam muito desta região. Na Alemanha José Saloio dedicou-se ao coleccionismo e guarda 30 anos de selos nacionais e germânicos e uma colecção com mais de 2000 esferográficas.
Actualmente o casal divide o seu tempo entre os dois países e mantém-se activo. Fazem parte de vários grupos de caminheiros e estão a fazer o Caminho de Santiago por etapas. Mas o seu maior passatempo é o bonito jardim da sua casa e a horta, com árvores de fruto e um pequeno lago com peixes e rãs, cujo coachar constituiu a banda sonora durante esta conversa.

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