JOÃO BUÍÇA – vida de caixeiro viajante

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Nunca tive um local de trabalho fixo e toda a minha vida andei na estrada | Joel Ribeiro

Este é um local possível para eu ser fotografado. Nunca tive um local de trabalho fixo nas Caldas durante mais de dois anos e toda a minha vida andei na estrada. Fui caixeiro viajante e este é o monumento a estes profissionais. Passei aqui neste sítio milhares de vezes, tal como noutras entradas da cidade. Saía de carro e percorria grande parte do país a visitar clientes em representação das empresas para as quais trabalhei e, mais tarde, por conta própria. Mas as Caldas da Rainha eram o meu poiso, o local de descanso, de regresso a casa onde, na verdade, não gosto de passar muito tempo porque sou um homem que gosta de andar à solta.

89 ANOS
VIÚVO, DOIS FILHOS E UMA NETA

Nasci em 28 de Junho de 1927 na Travessa da Misericórdia, paredes meias com o Hospital Termal. Mais caldense não poderia ser. Brincava ali no largo e o meu pai, sargento da tropa, servia no Regimento de Infantaria 5 que na altura tinha o quartel nos Pavilhões do Parque. Mas nunca fui baptizado. Os padres não queriam nada comigo nem com os meus pais por causa do nome Buíça, que é o mesmo do meu tio avô que assassinou o rei D. Carlos I em 1 de Fevereiro de 1908. Toda a minha vida carreguei com este apelido que tem tanto de estigmatizante como de libertário.
Também é certo que nunca fui muito certinho. Em miúdo eu saltava do primeiro andar da escola e fugia. À noite o meu pai chegava a casa e dava-me com o cinturão. Mas não havia meio! Só quando me puseram numa escola particular é que lá tive que estudar a sério. Fui fazer o exame da 4ª classe no Colégio Lusitano, que ficava no Parque e depois fui estudar para a Escola Rafael Bordalo Pinheiro, atrás do Chafariz das 5 Bicas. Andei no curso Comercial e no curso de Cerâmica também em Modelação. Nunca acabei nenhum. Eu gostava era de jogar futebol e chegava a Janeiro começava a faltar às aulas e pronto – já lá não punha os pés até ao fim do ano.
Mas pelo menos a jogar à bola ainda cheguei a campeão nacional de juniores, em 1945, pelo Caldas.
Cinco anos antes, tinha eu 13 anos, comecei a trabalhar. Os Armazéns do Chiado ficavam na Praça da Fruta onde é hoje o BCP e ali vendiam-se tecidos, confecções, artigos de praia, tapeçarias, roupas, fatos para homem, miudezas. Era uma casa grande com uma secção mais requintada e outra mais popular. Éramos oito empregados e além de estar ao balcão, eu também fazia as montras para atrair os clientes.
Nesse ano, 1940, o meu pai partiu em comissão para Cabo Verde. Três anos depois, quando faltavam 15 dias para vir de licença a casa, morreu subitamente. Não voltei a vê-lo. Ficou lá enterrado.

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Nos Armazéns do Chiado

Em 1943 fui trabalhar para a loja do Espinho, na rua das Montras. Acenaram-me com 350 escudos por mês (1,75 euros) e eu nem hesitei. Nos Armazéns do Chiado ganhava 200 escudos (1 euro).
Na loja do Espinho vendiam-se tecidos. Naquele tempo o normal era as pessoas comprarem tecido e depois mandarem fazer a roupa no alfaiate ou costurarem em casa. Os chamados pronto-a-vestir só apareceram mais tarde.
Três anos depois mudei de patrão. Fui para o Armazém de Miudezas da Estremadura, no largo João Barbosa onde continuei a vender tecidos, camisolas, peúgas, cuecas. Mas não cheguei a ficar ali três anos. Em 1948, com 21 anos, tirei a carta de condução e fui para a viagem, como então se dizia. Passei a ser caixeiro viajante. Hoje chamam-lhes técnicos de vendas.
Eu trabalhava por conta do José Marques Henriques que tinha um armazém de miudezas, tecidos e mercearia na rua das Montras. Eu só vendia a parte dos tecidos e roupa e dava a volta aí pelas aldeias e vilas da região a fornecer as casas comerciais. Não vendia ao público, mas sim às lojas. Guiava uma furgoneta Ford e ia para o Bombarral, Cadaval, Peniche, Óbidos, Nazaré, Alcobaça.
No fim dos anos 40 só havia estradas alcatroadas das Caldas para a Tornada e para a Foz do Arelho. O resto eram estradas de macadame, feitas com camadas de pedra e sem alcatrão. Por isso, eu quase nunca andava a mais de 60 ou 70 Km/hora.
Andei neste patrão um ano e meio. Eu sempre fui assim: passei a vida a saltar de empresa em empresa aproveitando quando me pagavam mais.
Em 1950 fui trabalhar para o David Pinto, que tinha um armazém de tecidos e uma representação do licor de ginja em Alcobaça. Ali a volta já era maior pois eu fazia o Ribatejo todo. Às vezes saía das Caldas à segunda-feira e só voltava na sexta e costumava dormir em Coruche porque eu corria aquelas aldeias e vilas todas à volta, por aquelas estradas de terra batida no meio dos pinheiros e dos eucaliptos. Mas também cobria a zona de Coimbra e ia à Figueira da Foz onde se vendia muito bem a ginja e onde eu gostava de pernoitar no Verão porque havia por lá umas raparigas jeitosas.
Agora só levava amostras no carro para exibir aos clientes: cobertores, peças de pano, miudezas e, claro, ginja. Faziam-me as encomendas e depois a mercadoria era enviada. Eu gostava desta vida porque não tinha que cumprir um horário fixo, embora fosse cansativo andar sempre fora de casa de terra em terra.

AS VIAGENS AOS AÇORES

Por duas vezes fui aos Açores. Na primeira fui num cargueiro que ia buscar gado a S. Miguel, mas que tinha uns camarotes para meia dúzia de passageiros. Como a tripulação era quase toda de Alfeizerão e eu conhecia aquela gente toda, tive um bom tratamento a bordo: era comer, beber e jogar às cartas. Na segunda vez já fui de avião. A TAP mal voava para lá, mas era em Santa Maria que faziam escala os voos intercontinentais que iam para a América. Por isso, fui para lá na KLM e voltei com a Pan América. Um luxo.
Graças a estas viagens fiquei a conhecer S. Miguel, Santa Maria, Terceira e Horta. E ainda tive por lá um namorico com umas irmãs gémeas, mas a coisa ficou por ali.
Cá nas Caldas eu namorei nove anos antes de me casar. A minha futura mulher, a Maria Alice, bem que apertava comigo. Mas eu gostava era de ir na minha bicicleta para os bailaricos. Cheguei a ter cinco namoradas ao mesmo tempo. Mas em 1954 teve que ser e acabei por dar o nó. Eu já tinha 27 anos e naquele tempo toda a gente casava mais cedo. Não mudei de casa porque eu vivia na altura com a minha mãe na travessa Cova da Onça e foi a Maria Alice que para lá foi.
Trabalhei para o David Pinto entre 1950 e 1956. Nesse ano mudei de patrão e também de ramo: passei a vender automóveis e camiões. Fui para a Lubrigaz, em Leiria. E é curioso que de todas as firmas para onde trabalhei esta é a única que ainda existe.
Por esta altura a Volkswagen lançou o carocha e aquilo vendia-se que nem pãezinhos. A par disso, também vendia os camiões Fargo e alguma maquinaria. Tive que tirar a carta de pesados, de tractores e de mota para poder ir buscar os veículos a Lisboa e entregá-los aos clientes.
Eu tinha um quarto alugado em Leiria e só vinha às Caldas ao fim-de-semana ou quando o serviço permitia que eu por cá ficasse. Gostava daquela vida, mas em 1962 deixei os carros e camionetas e regressei aos tecidos e roupas. A Pontífice era um fabricante de lanifícios da Covilhã que tinha um armazém no Porto, na rua dos Clérigos. Eu fiquei responsável pelas vendas no Centro do país, nos distritos de Aveiro, Coimbra, Guarda e Castelo Branco. Por esta altura eu tinha carro próprio – uma furgoneta Vauxhall – e percorria as cidades, vilas e aldeias, dormindo onde calhava, em pensões e estalagens. Procurava, no entanto, ter uma espécie de quartel general em Coimbra onde ficava mais vezes.
Eu gostava desta vida. Nunca gostei de estar em casa. Ainda hoje, viúvo e reformado, não gosto de estar fechado em casa muito tempo e ando sempre por aí. Conheço bem o país, vi como as estradas, pouco a pouco, iam melhorando, mas nada que se compare às auto-estradas de hoje. Naquele tempo, ir das Caldas à Guarda ou a Castelo Branco, ou até mesmo a Aveiro, era coisa para ir, ficar lá e só voltar no dia seguinte.

TRABALHAR POR CONTA PRÓPRIA

Dez anos, foi quanto me aguentei na Pontífice. Em 1972 resolvi trabalhar por conta própria. E foi nesta fase que ganhei mais dinheiro.
Tinha a representação de máquinas e equipamentos para fisioterapia e ginástica. Os meus clientes eram os hospitais, clínicas e ginásios. E a par disso tinha também uma colecção de artigos desportivos que vendia pelo país todo. Com a experiência que eu tinha, aquilo correu-me bem.
Em 1987, mal fiz 60 anos, reformei-me, mas continuei ainda a trabalhar por conta própria até 2002. Depois arrumei as botas.
Na verdade, as botas do futebol já eu arrumara há muitos anos, em 1953. Em 1945 eu tinha sido campeão pelo Caldas, mas joguei ainda mais nove anos. Ah! E sou o sócio nº 1 do Caldas Sport Club. Por causa disso, a Câmara Municipal ofereceu-me uma medalha no último 15 de Maio.
Também joguei ténis quando era novo e gosto de pescar e caçar. Desde que me reformei, já viúvo, participava em convívios com amigos. Tinha um grupo que todas as semanas ia almoçar uma caldeirada à Foz do Arelho. Mas já morreram todos. E tinha outro grupo com quem ia todos os domingos para Peniche – alugávamos uma traineira e íamos para a pesca. Mas também já morreram todos.  O mal de se chegar a esta idade é ver os amigos partirem. Pelos vistos isto é de família: o meu irmão tem 103 anos.
Agora vivo na rua Eng. Duarte Pacheco, mas tenho boas recordações da travessa Cova da Onça. Aquilo era do melhor, com comes e bebes, fados e guitarradas e a malta a juntar-se toda nos petiscos.
Ainda me lembro quando era garoto, no tempo da II Grande Guerra, que a minha mãe alugava quartos aos estrangeiros. Tivemos lá em casa austríacos, franceses, holandeses, quase todos judeus. Era gente simpática e que tinha dinheiro. Mas estavam cá uns meses e passava um barco em Lisboa e lá iam para a América.

Brincar com o Mário Soares

Outra recordação de infância que eu tenho é de ver e até de brincar com o Mário Soares cá nas Caldas. Ele é dois anos mais velho do que eu e viveu uma temporada em casa dos Freitas.
Eu era criança e não imaginava então que viria a ser membro fundador do Partido Socialista. Sempre fui um homem contra o regime e às tantas a Pide queria prender-me a mim e ao meu irmão porque assinámos as listas de apoio ao Humberto Delgado. Mais tarde, ainda antes do 25 de Abril eu acompanhava os alferes e os tenentes que reuniam nas Gaeiras e em Óbidos e sabia que vinha aí uma revolução. Só não sabia a data.
Fosse como fosse, eu no regime anterior nunca poderia ter ido longe. Com este apelido de Buíça nunca tive a vida muito facilitada. Tentei ir para a Guiné e para a Angola por conta da CUF para ser lá caixeiro viajante. Mas nunca me deixaram.
Do que o meu tio avô fez eu não me orgulho nem lamento, mas às vezes penso que faltam cá uns quantos como ele. É que há para aí tanta malandragem a viver à grande e a gozar com todos nós… A minha mãe contava-me que quando mataram o rei, eles tinham atiradores de 200 em 200 metros e que se o meu tio falhasse, havia outros que atiravam. Calhou-lhe a ele. Aquilo eram coisas da maçonaria. Eles eram todos maçónicos da Carbonária.

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