Homenagem à Amiga, à médica, à aprendiz de pintura …

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Conheci a Leonor nos meados dos anos 70, ainda estudante de medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Concluíu o curso em Dezembro de 1978 e, depois das provas sucessivas do internato e de um estágio de Saúde Pública em Beja, de Maio a Dezembro de 1980, acabou por escolher a Medicina geral e familiar, em Caldas da Rainha, onde exerceu sempre como médica e também Directora do Centro de Saúde.
Quis o acaso que eu própria fosse colocada como professora em Caldas da Rainha em 1981, quando a Leonor já se encontrava casada com o caldense António Salvo, com quem veio a ter duas filhas, a mais velha acabada de nascer quando justamente chegava eu às Caldas. Foi um reencontro feliz e a oportunidade de travar conhecimento com o marido, em Amizade com o tempo logo redobrada. Com eles descobri muita gente da cidade, frequentei lugares como o bar do Senhor Tavares em Óbidos, tive oportunidade de dar guarida ao Zeca Afonso, que impedia o Salvo de fumar na própria casa, instalei-me na Foz do Arelho, numa casa alugada para passarmos os fins-de-semana e que eles continuariam a manter pelos anos fora, viajámos juntos.
Como a maior parte das pessoas da nossa geração, partilhámos ideais, partlhámos alegrias e partilhámos tristezas.  Reunimo-nos frequentemente, em almoços e jantares animados, alguns deles fora do país, nomeadamente em Paris, onde eu me instalara e onde vivia também outro amigo das Caldas da Rainha, o João Calheiros Viegas, que acabara por ser meu amigo também.
Ao longo de todos estes anos, pude admirar as qualidades humanas da Leonor e a sua grande competência como médica. Irmã de médico, muitas vezes recorri a ela, pois tinha ganho uma prática clínica extraordinária, no contacto permanente com os doentes, que muito se empenhava em tratar e ajudar em tudo o que estivesse ao seu alcance. Incansável, pergunto-me quantas e quantas pessoas não terá atendido, aconselhado, medicamentado, ajudado, deixando, indubitavelmente, um enorme vazio e uma grande saudade aos seus pacientes, colegas de trabalho e todos quantos com ela colaboraram, de modo a dar o melhor serviço de saúde à cidade e aos seus habitantes.
Foi, para mim, uma grande surpresa quando um dia, indo visitá-la, descobri que pintava.  Nao levava muito a sério esta actividade (« até pareço pintora », disse-me, com ironia, numa das suas últimas mensagens, comentando a imagem que eu lhe enviara de um quadrinho que me oferecera), mas devo confessar que fiquei muito surpreendida com o sentido da cor e a luz que inundava os seus quadros. Pintou ainda bastantes e é uma pintura inesperada, com gradações e tons surpreendentes, e um sentido da composição que só podia vir de uma grande sensibilidade interior, assim revelada.
Que a Leonor tinha um grande sentido estético, que vinha associar-se à sua ética de vida, sabia-o já eu, na maneira como organizava e decorava as sucessivas casas em que habitou, sempre com gosto e imaginação ; e como dispunha bibelots e tantas outras coisas que vinham sempre enriquecer mais a casa, ou de testemunhos da casa dos pais em Moscavide, ou de recordações ainda mais antigas, dos avós, ou de viagens, ou de ofertas dos amigos, ou de cerâmicas, de que tanto gostava.
De tudo isto, eu, como tantos e tantos outros amigos, guardo imagens, guardo uma voz amiga, guardo conselhos, guardo estas flores rosas diluídas numa paisagem de verdes, que é a do quadrinho que me ofereceu, explicando-me que são as flores, e as folhas, e as sementes do café, estas em tons de laranja, e de amarelos e de dourados. Cores diáfanas, luz que irradia, na presença/ausência, da memória.
Uma memória que vem do fundo do tempo, de um tempo de ideais, de esperanças, de militância, por uma vida melhor, por uma saúde melhor, num futuro, risonho, que era então o nosso. Deixaste-nos no mês de Maio, Leonor, e desde então, os versos do poeta,  e da canção, da Canção com lágrimas e sol, não cessam de me atravessar o espírito, num refrão incessante, como as ondas.  E, como na canção, eu canto para ti este mês com lágrimas, e este mar de recordações que me avassala, e o « teu nome escrito com ternura sobre as águas » e a tua voz, a tua disponibilidade, a tua Amizade, e o teu retrato « trazendo no sorriso a flor do mês de Maio », a flor das giestas, a flor do café, a flor do quadrinho que me ofereceste, oh minha Amiga, « [minha irmã] tão breve ».

Lucília Verdelho da Costa
Villarepos (Suisse),
29 de Maio de 2015

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