Foram três meses em que a aldeia do Vau, em Óbidos, viveu um verdadeiro filme de terror. Estávamos em 1964 e a população saía armada à rua porque tinha medo de dar com a misteriosa fera. Um lobo? Uma hiena? Um urso? Várias eram as versões que se contavam, foram duas as batidas organizadas para caçar o animal, mas a única verdade que se confirmava é que este se alimentava dos cães daquela zona.
O “bicho” foi depois encontrado morto no Casal do Ameal, na propriedade de Henrique Clemente Félix, 96 anos, com quem Gazeta das Caldas falou para recordar esta história – que foi notícia nacional e veio depois a tornar-se uma lenda no Vau. Afinal, a maldita fera era um lobo. Anos mais tarde (1973) a história repetir-se-ia em Rio Maior com um leão que afinal também não era.
Onze de Julho de 1964. A Gazeta das Caldas noticia que “foi visto mais de perto o ‘estranho’ animal que vem assaltando os redis e assustando as pessoas do vizinho concelho de Óbidos”. Suspeitava-se que fosse um lobo ou uma loba de corpulência média, embora “a fertilidade da imaginação de alguns chegasse a conceber a ideia de se tratar de um monstro vindo do mar, ou anfíbio, ou terrestre, saindo de algum paquete transportador de feras para qualquer zoológico”.
Certo era que a fera – apadrinhada por alguns como “comedor de ovelhas”, ainda que nunca se tenha confirmado que o tivesse feito – tinha que ser banida daquelas redondezas com a maior urgência possível. Três dias depois, o mesmo semanário dá conta que havia sido organizada uma batida que juntou “mais de 300 caçadores e outros tantos batedores para caçar a já célebre fera que nos últimos tempos tem alvoraçado as pessoas da zona de Vau-Óbidos”. Contudo, realçava a Gazeta que “quanto à verdadeira espécie do animal nada se sabe de concreto, pois são várias as opiniões de todos quanto dizem tê-lo visto – se é lobo ou loba, urso ou hiena”.
Este foi um acontecimento tão insólito que chegou mesmo às páginas de vários diários nacionais. Um deles, O Século, que igualmente no dia 14/07/1964 dedica uma reportagem sobre o tema na sua revista semanal O Século Ilustrado. Intitulado “O ‘Monstro’ de Óbidos”, o artigo descreve ao detalhe a primeira batida ao animal, realizada no dia 12 de Julho (duas semanas depois seria organizada uma segunda, novamente sem sucesso). “Os homens estão atentos de arma na mão e semblante carregado. E revivem também aventuras de infância. Enquanto o monstro não for abatido há distracção e motivo de conversa para indígenas e forasteiros”, pode ler-se. E começa o relato: “pelas seis horas, o movimento pelas estradas que conduzem à lagoa de Óbidos era intenso e todos os que podiam tomavam parte da batida que tinha por fim matar o bicho”. Dá-se conta que os caçadores se encontravam armados, “desde o simples pau de marmeleiro e forquilhas até toda a espécie de armas caseiras que se possam imaginar” , e que “toda a gente tinha uma única vontade, um único desejo, o de apanhar o bicho”.
Às dez horas e três minutos começa a batida. Os homens penetram no mato e as suas vozes fazem-se ouvir por todas as serras em redor num raio de 30 km. Todos os caçadores estão a postos. “Ouvem-se os primeiros tiros e num curto espaço de tempo duas raposas, vítimas inocentes, são abatidas”, afirma O Século Ilustrado, que também confirma que a batida termina sem que tenha sido abatido o “misterioso” animal.
MEDO DE SAIR DE CASA
Quem confirma a história é José Félix, hoje com 61 anos, na altura com oito. Era uma criança e a mãe não o deixara participar na batida. Podia ser perigoso. Mas o seu avô, Albino Félix, esteve presente e disparou da espingarda. “Sabíamos que o animal tinha sido atingido porque foram vistos rastos de sangue, sabíamos que podia estar ferido, mas na altura ninguém o apanhou”, contou José Félix à Gazeta das Caldas. Duas semanas depois voltou a organizar-se outra batida, mas o bicho não apareceu. “Pensou-se que pudesse estar morto ou então que tinha ido para outro lado”, acrescentou.
O seu pai, Henrique Clemente Félix – actualmente com 96 anos e naquela altura com 43 – seria quem, três meses mais tarde, viria a encontrar o animal misterioso. Mas antes disso, durante todo aquele tempo, desde o dia em que Henrique Félix reparou numa grande pegada no seu terreno no Casal do Ameal, não houve naquela terra quem tivesse descanso. “Inicialmente pensei que a pegada fosse de um cão, mas poucos dias depois ouvi dizer que uma das cadelas do senhor Guilherme Malcemino tinha sido morta por um bicho que só não lhe tinha comido as patas”, lembra o vauense, realçando que de tempos em tempos aparecia mais um caso de outro canino morto. Foram pelo menos quatro.
“Quando o animal começou a fazer estragos, todo o povo tinha medo de sair à rua. Com tantos agricultores a trabalhar no campo, levavam-se espingardas e paus por prevenção. Trabalhávamos, mas sempre em alerta”, conta Henrique Félix, com certeza que a “fera” nunca atacou pessoas humanas ou outros animais.
BICHO ENCONTRADO MORTO TRÊS MESES DEPOIS
Passado o Verão, foi no dia 13 de Outubro que o pai de José Félix encontrou o maldito bicho. Descobriu que era um lobo, embora já houvesse essa desconfiança. O alerta foi-lhe dado pelo senhor José Antunes, a quem tinha emprestado uma parte da sua propriedade. O local situava-se no Casal do Ameal, próximo do terreno onde Henrique Félix já tinha encontrado a primeira pegada: desconfia-se, por isso, que o lobo se abrigava ali perto.
Como José Antunes não teve coragem de avançar no mato foi Henrique Félix quem deu a certeza que o animal estava morto. “Tinha a boca aberta e o resto do corpo tapado com caruma de pinheiro e folhas de eucalipto. Na parte que estava deitada na terra já não havia pele nem carne, só se viam as costelas. E não cheirava mal, pelo que se conclui que o lobo já estava morto há algum tempo”, relembra.
A 200 metros do local estava José Félix que andava no terreno do pai a apanhar abóboras. Tinha-o mandado a mãe. Recorda-se que o corpo do lobo tinha sete furos provocados pelos bagos de chumbo, que o pelo era cinzento e que o animal tinha pelo menos 1,50 metros de comprimento. Embora já tenham passado 53 anos, José Félix lembra-se daquele momento como se tivesse ocorrido a semana passada: “quando se soube, foram milhares de pessoas que se deslocaram ao terreno do meu pai. Era tanto povo, a GNR, jornalistas e entidades como a Câmara. O lobo ficou em ‘exposição’ durante alguns dias, sempre guardado por dois vigias que ali ficavam como verdadeiros tropas em sentido para não deixar que ninguém tocasse no bicho”. Tanto de dia como de noite (no escuro, iluminadas por candeeiros Petromax) chegavam muitas pessoas que até ali se deslocavam a pé, de tractor, ou de carro de bois.
Se o episódio fosse hoje, rapidamente as redes sociais se inundariam de fotografias e relatos, bem como directos da televisão, mas naquela altura só os jornalistas tinham câmaras fotográficas. As notícias corriam mais devagar, a emoção durava mais tempo. “Quando saíam os jornais toda a gente ia comprar, sem dúvida que foi um acontecimento marcante porque o Vau foi tema de conversa a nível nacional”, afirma José Félix.
Gazeta das Caldas também noticiou o desfecho desta história na edição dessa semana: “Está desvendado o misterioso caso da fera”. “Ao termos conhecimento que tinha sido encontrada morta a cerca de três quilómetros do Vau a fera que ao longo de vários meses amedrontou as gentes daquele lugar, quisemos ver ‘in loco’ o que de concreto se passava”, refere o autor da notícia, que na ocasião entrevistou José Antunes, quem encontrou o lobo em primeiro lugar. “Teve medo quando viu o lobo no meio do mato e com a boca aberta?” perguntou o jornalista, a quem José Antunes respondeu: “Fiquei todo assarapantado”.
Esta foi uma história que marcou a aldeia do Vau, que ainda hoje é recordada pela população e que se transformou na lenda “O bicho do Vau”, contada às crianças na escola. Alterou-se-lhe o final, de forma a transmitir uma mensagem: diz-se agora que o lobo volta, com vontade de pregar uns quantos sustos, mas que não tem mais onde esconder-se. A floresta foi cortada para se construírem campos de golfe e resorts de luxo. “Grande parte das matas foram-se. Vais encontrar, isso sim, betão, alcatrão e extensões enormes de relva, fora o resto que está esventrado. E sabes? Disseram-me que tudo isto era a bem do progresso acreditas”, diz a história que é da autoria de Rogério Santos.

| D.R.































