Gonçalo Silva editou o Tombo de Óbidos e diz que prefere “compreender” a “julgar”

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Gonçalo Melo da Silva, de 35 anos, natural de Lagos, é professor e investigador na FCSH-UNL e com IEM

O investigador fez primeiro censo a nível nacional para localizar arquivos locais contendo documentação da Idade Média produzida pelos municípios, que está a editar. Começou com Óbidos

Em outubro de 2024, foi publicado o livro do Tombo de Óbidos, com documentos do poder concelhio datados dos séculos XIV e XV. Trata-se de uma edição do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e do primeiro de quatro volumes de uma coleção, que inclui Castelo de Vide (séc. XVI), Miranda do Douro e Tavira, estes dois tombos elaborados no século XVIII. A coleção é coordenada por Gonçalo Melo da Silva e integra o projeto MEDDOCS: Digital Edition of Portuguese Medieval Documents.

A coleção “publica documentação que se encontra conservada a nível local, em arquivos municipais ou distritais, e que está relacionada com o poder concelhio no período medieval”, conta o professor e investigador da FCSH-UNL. “O objetivo é criar pontes com outros investigadores e com os municípios para tornar mais acessível a documentação e garantir a sua preservação”, continua.

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O historiador realizou “um estudo introdutório para sinalizar em que arquivos estava esta documentação”: o “primeiro censo realizado a nível nacional”. “A professora Manuela Santos Silva fez o estudo do Tombo de Óbidos”, já que foi ela quem o descobriu, elucida.

Este é “um cartulário, ou seja, é um livro produzido no período medieval, no século XV, que contém cópias dos documentos mais importantes que o concelho tinha na sua arca, datados desse século e do transato, muitos deles cartas enviadas pelos monarcas, que lhes dão privilégios, como isenções fiscais”, continua.

“É o tombo municipal onde podemos encontrar o maior número de cartas enviadas por rainhas e infantas a uma vila”, revela. D. Filipa de Lencastre e a sua filha, D. Isabel de Borgonha, são as principais remetentes. “Lembro-me de que, na altura em que estávamos a transcrever as cartas, até nos rimos, porque há uma carta de D. Isabel que diz, eu sei muito bem que não estão a cumprir com aquilo que eu, como vossa senhora, ordenei que fosse feito”, recorda, animado.

De assinalar também o “esforço de cartografar os espaços referidos no tombo, como o Bombarral, as Caldas ou o Mosteiro de Alcobaça”.

No livro ainda se dá conta do avanço da linha de costa que acontece, segundo o que o que há registo, desde o final do séc.XIV e sobretudo no séc.XV, desencadeado por areias vindas da região do Douro. “É principalmente na região de S. Martinho do Porto, da Lagoa de Óbidos e de Peniche”, onde se forma o tômbolo, mas de referir também “a luta que já no período medieval se faz contra esse processo de assoriamento”, informa o historiador, que, sendo natural de Lagos (Algarve), se tem debruçado sobre o estudo das cidades e vilas portuárias.

“Costuma-se pensar que as alterações climáticas ou da paisagem só acontecem nos tempos atuais. Mas têm-se dado ao longo da história, em determinados períodos. E o interessante é perceber como o ser humano contribui para esse assoriamento ou como o tenta travar.”

Concomitantemente, verifica-se uma diminuição da caça à baleia, animal que começa a desaparecer da costa portuguesa. Afinal, a sua “pesca”, como lhe chamavam, era muito praticada durante a Idade Média, nomeadamente na Atouguia da Baleia, onde, na Igreja de S. Leonardo, é possível observar um osso deste animal, comprovando os vários usos que lhe eram dados.

“A língua é a peça mais apreciada e, por isso, a mais cara”, conta o historiador, que deu um MOOC (Massive Open Online Course) acerca deste tema, acrescentando que a carne de baleia chegava à mesa real, à do abade de Alcobaça ou até à do Papa. “Descobriu-se que o seu delegado em Portugal, em meados do séc.XIV, comprou carne de baleia, mas a embarcação em que seguia sofreu um ataque de pirataria e perdeu a carga.”

Gonçalo Silva compara um historiador a um ator. “O teatro permite-lhe viver cem personagens. A história permite-nos viver mil e uma vidas em diversos períodos, e perceber que a natureza humana, em muitos aspetos, é sempre a mesma. É uma forma de evoluirmos e de aumentarmos a nossa compreensão face ao mundo que nos rodeia. Na minha família, gostavam que eu tivesse ido para direito, mas eu sempre gostei mais de compreender do que de julgar”, remata.

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