Geneticista caldense quer diminuir sofrimento no diagnóstico do cancro

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Especialista em Genética Molecular, criou a Stab Vida durante o doutoramento

Orfeu Flores é o CEO da Stab Vida, empresa de genética que tem dado um impulso às biópsias de cancros realizadas através de análises ao sangue

O caldense Orfeu Flores, 55 anos, tem-se destacado na genética molecular, área em que é doutorado. É o CEO da Stab Vida, uma empresa com 23 anos, com instalações no campus da Nova FCT (na Caparica) e em Madrid, cujo trabalho assenta na descodificação de amostras ao nível da deteção de marcadores genéticos. As amostras de DNA podem provir de doentes cancerosos, de animais ou mesmo do ambiente, estas últimas tendo estado recentemente a afluir em abundância ao laboratório. A Stab Vida realiza ainda testes de paternidade, conta.

A empresa está “consolidada” na Península Ibérica e, de entre os produtos inovadores que tem desenvolvido, sobressaem as biópsias líquidas e a máquina de testes PCR de bolso. As primeiras consistem em amostras de sangue de doentes cancerosos que o laboratório analisa para deteção de células tumorais, e que representam uma alternativa às tradicionais biópsias, cuja extração pode ser “extremamente invasiva” para doentes “muito debilitados”. Foi em 2016 que a Stab Vida se alistou a esta investigação que “se estava a iniciar”. “Em cinco mililitros de sangue há por volta de 10 a 20 células tumorais. É necessária uma técnica hiper seletiva, capaz de detetar aquelas células entre os milhões que lá estão.”

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“Temos tido resultados muito interessantes”, afirma, para salientar o sucesso desta técnica que muito ajudaram a desenvolver: Orfeu e a sua equipa com cerca de 40 cientistas.

“Atualmente está cada vez mais integrada na prática clínica”, no âmbito da “medicina personalizada”, que procura fazer o diagnóstico da genética do cancro do paciente para poder prescrever uma terapêutica adequada, porque se descobriu, para o cancro do pulmão, que certas “opções terapêuticas não impediam a proliferação do mesmo”, enquanto outras surtiam efeito e “contribuíam para uma esperança de vida muito alargada”.

Já os testes PCR (muito badalados durante a pandemia de covid) que “cabem na palma da mão”, foram desenvolvidos para “democratizar” o teste, estando à venda por cerca de 200 a 250 euros, face aos cerca de 25 mil euros que uma máquina de PCR de laboratório está a custar. Orfeu destaca que este aparelho não serve para fazer análises a amostras de origem humana, mas pode ser utilizado na área da veterinária e da agrofood. “Estamos quase a lançar para o mercado um destes testes PCR de bolso para deteção de salmonela, o que para a indústria alimentar é muito importante”, diz. O aparelho que nasceu em 2021 foi batizado de Dr. Vida.

A Inteligência Artificial também faz parte das rotinas do laboratório da Stab Vida. O Paco, um computador que atua no Controlo de Qualidade desenvolvido pela empresa e treinado com os muitos dados que esta tem (milhões de sequências de DNA obtidas diariamente), permite economizar três horas de trabalho, fazendo com que os resultados cheguem mais cedo ao cliente.

Recentemente a Stab Vida celebrou um contrato com a Comissão Europeia para fazer parte de um consórcio em que está a analisar as águas residuais de 40 aeroportos, por forma a despistar a eventual presença de um microrganismo “preocupante” que esteja a circular pelo espaço europeu, e que tem nos aeroportos a “porta de entrada” primordial. “Ficámos em primeira lugar nesse concurso”, diz. “Para cada um dos aeroportos, fazemos 120 milhões de sequenciações de DNA” a cada duas semanas, conta. “Não vou revelar o nome do aeroporto, mas estamos a notar alguma diferença nas análises das suas águas.” Estas permitem identificar as doenças provocadas pelo agente patogénico, para que o médico saiba tratar logo quando os primeiros casos comecem a aparecer.

Outro grande projeto em que a Stab Vida esteve envolvida foi no desenvolvimento de uma técnica para fazer chegar ao interior do cérebro anticorpos que desintegrariam as placas da proteína beta-amiloide, cujo acúmulo entre neurónios é responsável pela doença de Alzheimer. A dificuldade no tratamento desta doença reside no facto da membrana que protege o cérebro, chamada de barreira hematoencefálica, impedir a passagem para dentro do órgão da maior parte das substâncias (que não é o caso da pequena proteína beta-amiloide, que existe no ser humano), daí que, por via intravenosa, a medicação não surta efeito.

“No nosso projeto criámos umas vesículas muito promissoras, os lipossomas, que no seu interior levavam anticorpos (o medicamento), que também desenvolvemos. Eles tinham a capacidade de atravessar a barreira, para depois libertar os anticorpos, que, por sua vez, iam à procura dos precipitados de beta-amiloide e retiravam proteína a proteína, até desfazerem a placa.”

“Foi um projeto de uns seis ou sete milhões de euros, financiado pela Europa, mas só conseguimos ir até aos ensaios pré-clínicos, com os ratinhos”, diz. Porém, já há ensaios clínicos em andamento, salienta. “Houve um que chegou mesmo quase ao fim. Eu até estava na conferência em que a multinacional farmacêutica responsável mostrou os resultados dos seus últimos ensaio clínicos, que envolviam o anticorpo que também testámos. Disseram que iam abandonar o projeto porque não viram grande efeito terapêutico”, afiança.

Ao laboratório chegam, por dia, entre duas e três mil amostras vindas de Portugal, Espanha, Reino Unido, Malta, Bélgica ou mesmo a Islândia. “Na maior parte temos 24 horas para identificar os marcadores genéticos. Porém, há resultados que ficam disponíveis dentro de uma hora, quando é o “laboratório que vai à amostra”. A Stab Vida surgiu quando Orfeu estava no segundo ano do doutoramento, e durante 15 anos teve como sede social a morada dos pais nas Caldas. Foi aí que deu os primeiros passos na ciência. “Com 10 anos, pedi ao meu pai um laboratório, e ele fez-me um nas traseiras de casa. Passei lá tardes a fio”, recorda, animado.

Orfeu é ainda avaliador na Comissão Europeia, no âmbito do programa “Horizonte Europa”, e canta no coro de câmara da Universidade Nova. Além disso, praticou surf no Baleal, tendo tido uma empresa de aluguer de carrinhas pão-de-forma “todas grafitadas”. Mesmo em terra, continua atento à onda certa.

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