Terminou, ao final da tarde de domingo, mais uma edição do Folio. O festival regressa para o ano, entre 9 e 19 de outubro para refletir sobre as fronteiras, “os limites que cruzamos, questionamos e superamos”
Mais de 100 mil pessoas visitaram a vila durante os 11 dias em que decorreu o Festival Internacional de Literatura de Óbidos (Folio). Os números foram avançados pelo presidente da Câmara, Filipe Daniel, na sessão de encerramento, depois de fazer um balanço “extremamente positivo” desta edição, composta por “11 dias intensos e de grande celebração literária e cultural”.
De acordo com o autarca o número é ainda revelador da “consolidação e da qualidade” que as marcas Folio e Óbidos representam. O festival estará de volta no próximo ano, entre os dias 9 e 19 de outubro, para a sua 10ª edição, que terá por temática “as fronteiras”.
Desta edição, Filipe Daniel destacou a ligação às escolas, expandindo e fortalecendo a sua “relação com a comunidade e civil, plantando sementes de conhecimento e cultura para as próximas gerações”. Uma das novidades foi a distribuição de vouchers de 20 euros para a aquisição de livros pelos alunos das escolas de Óbidos e, durante o evento, foram “utilizadas várias centenas” deles, “promovendo o gosto pela leitura de forma acessível e inspiradora”. Este ano esteve também à disposição dos visitantes a nova app do Folio, que permitiu o acesso em tempo real às informações relevantes do evento.
“O Folio tem-se afirmado como um elevador não só cultural mas, acima de tudo, social em Óbidos, permitindo-nos aproximar pessoas, estimular o diálogo e promover uma partilha de saberes que transcende fronteiras”, salientou o autarca, dando nota das cerca de 600 iniciativas que decorreram durante os 11 dias.
Tendo por temática a “Inquietação”, o festival celebrou os 50 anos do 25 de Abril e os 500 anos do nascimento de Luís de Camões. “Sentimos que este foi mais um ano em que conseguimos realizar aquilo a que nos tínhamos proposto, não pelo número de atividades que tivemos mas também pela logística, que foi muito maior”, salientou a vereadora Margarida Reis, destacando o trabalho das equipas.
A crescente ligação à comunidade e às escolas do concelho foi outro dos aspetos destacados pela autarca, que partilhou com o público o pedido do escritor Mia Couto antes de deixar o festival: “não entreguem a programação do Folio a pessoas externas, o que estão a fazer agora, com as pessoas da casa é que valoriza o vosso evento, porque vocês conhecem-nos e isso não acontece em mais lado nenhum. Gosto de vir aqui porque sinto-me em casa”.
A coordenação de um evento desta dimensão foi também destacada pela responsável da Ler Devagar, Joana Pinho.
Democracia e humor
A 9ª edição do festival terminou ao som do coro feminino Ninfas do Lis, que entoou melodias de José Afonso e Luís Vaz de Camões. Momentos antes José Pacheco Pereira, Fernando Rosas e Adelino Gomes refletiam sobre o 25 de Abril, 50 anos: e agora? Um tema longo para pouco tempo, como anteviu logo o historiador Fernando Rosas, para quem o futuro “não se apresenta risonho e não permite otimismos infundados”. Considera que estamos a viver a segunda crise histórica do liberalismo e que “não sabemos onde vai parar”. O historiador e político falou sobre os perigos do modelo neoliberal, que tem passado pela privatização dos serviços públicos, na ofensiva contra os direitos do trabalho e hiperconcentração dos grandes grupos informáticos e que tem levado a um aprofundamento das desigualdades. Pegando no conceito de Hannah Arendt, de banalização do mal, falou sobre a guerra, racismo, genocídio e também da “desdemocratização” da democracia e do cavalgar da extrema direita. E, embora sem receitas mágicas, Fernando Rosas, defendeu que é necessário outro modelo económico e o confronto entre esquerda e direita. Por sua vez, Pacheco Pereira explicou porque não gosta de utilizar a expressão esquerda e direita que, salientou, “passou a usar-se com o Bloco de Esquerda”. Considera que este tempo é muito propício a “modas” e que há uma crise política à esquerda. Para o também historiador, a democracia “é posterior à liberdade e é ela quem está em causa atualmente”.
Para o jornalista Adelino Gomes, que acompanhou a revolução de 1974, é “altura de pensarmos no agora e não ficarmos na glória do 25 de Abril”, apelando a que se “passe à ação” na resolução do que ainda não foi feito.
O humorista Ricardo Araújo Pereira voltou ao Folio, para lotar sessões e falar sobre o humor, mas também sobre religião, a propósito do livro O que é que eu Estou Aqui a Fazer?, em que conversa com o jornalista João Francisco Gomes sobre Deus, a fé, o humor e a morte. A acompanhá-lo nesta mesa estava também o padre João Basto, que participou numa das conversas do livro, cujo título surgiu numa aula de Religião e Moral e como resposta a um pedido do padre Manuel, professor de Religião e Moral, à turma de Ricardo Araújo Pereira.
Escrever sobre a guerra
O Prémio Fernando Leite Couto foi entregue a Francisco Panguana Jr., autor do romance “Os peregrinos da sobrevivência”. No Folio, o autor partilhou que foram os “cíclicos conflitos armados” em Moçambique que o levaram a escrever a obra agora premiada e que nela analisa “estes aspectos sociais, políticos e económicos”. Para expressar as suas preocupações, escolheu como personagem principal a filha. “Comecei a pensar que futuro teria”, partilhou o ativista dos direitos humanos e das alterações climáticas.
O concurso, destinado a estimular a produção de obras literárias da autoria de jovens moçambicanos, em língua portuguesa, possibilita a publicação de um livro em Moçambique e ter uma residência literária de um mês em Óbidos. O escritor Mia Couto esteve presente na entrega do prémio, que tem o nome do seu pai, e também na apresentação do seu mais recente livro “A Cegueira do Rio”, que tem como ponto de partida um incidente numa aldeia na fronteira entre a Tanzânia e Niassa, em que centenas de pessoas foram assassinadas pelo exército alemão que colonizava a África Oriental Alemã, a atual Tanzânia.
A participação das freguesias
As freguesias do concelho também participaram no festival. Começou com o Vau, logo na primeira sexta-feira do Folio, com a exposição “Memórias fotográficas do Vau – Antes e depois de Abril”.
A Usseira inaugurou uma biblioteca e A-dos-Negros assinalou o Dia da Freguesia com a apresentação da peça de teatro 25 de abril sempre, pelo grupo de teatro amador Reflexos. A exposição “Inquietação em todos os sentidos”, com a associação A Minha Casa, foi a proposta do Olho Marinho, enquanto que a freguesia da Amoreira levou a “inquietação” ao auditório da Casa da Música, com Anabela Ramalhão Almeida, Cláudia Pereira, Carlota Carvalho Teles, P. Mário Campos e Dora Afonso. “A palavra… A voz da inquietação – Leituras encenadas das ‘Novas Cartas Portuguesas’” foi a proposta levada ao Museu Abílio de Mattos e Silva pela União de Freguesias de Santa Maria, São Pedro e Sobral da Lagoa, enquanto que a Junta de Freguesia das Gaeiras promoveu, em articulação com o Espaço Ó e com a Associação O Socorro Gaeirense, o projeto “Árvore de Estórias” que pretende preservar e disseminar a memória identitária da comunidade. No local há um QR-Code que remete para conversas previamente gravadas e editadas pela equipa de desenvolvimento comunitário do Espaço Ó.
Gastronomia e literatura
A Rota Raynha das Águas desenvolveu uma experiência imersiva de gastronomia, cultura e musica seiscentista, sob o tema Inquietações Gastronómicas com Josefa d’Ayala. As cozinhas do Museu de Óbidos serviram de cenário para o banquete servido a cerca de 30 pessoas, elaborado com receitas seiscentistas e numa decoração inspirada não só na época em que Josefa viveu mas também nos pormenores de telas da artista, explica a responsável pela iniciativa, a caldense Margarida Varela. O repasto foi acompanhado por música do séc. XVII, interpretada por Hugo Sanches na Tiorba e as vozes da soprano Eunice Abranches d’Aguiar e a mezzo soprano Patrícia Silveira.
No Josefa d´Óbidos Hotel houve uma petiscaria literária, com a escritora e blogger Catarina Leonardo a apresentar a sua obra mais recente numa tertúlia com provas vínicas comentadas, experiências sensoriais com arte e chocolate e outras “inquietações”, fazendo jus à temática do festival. ■































