
Fernando Lúcio foi em 1970 para Macau cumprir o serviço militar. Percebeu que naquele território no outro lado do mundo faltavam os sabores verdadeiramente portugueses e, com 22 anos, abriu o seu primeiro restaurante. Quando terminou a comissão na Marinha ainda pensou emigrar para a Austrália, mas mudou de ideias ao encontrar o edifício abandonado do que viria a Pousada de Coloane, que transformou num dos melhores hotéis de Macau. Naquele território abriu vários restaurantes e foi responsável pela promoção da portugalidade. E também conduziu e colaborou na organização do mundialmente conhecido Grande Prémio de Macau.
Regressou a Portugal em 2008 e hoje, com 70 anos, mantém-se em actividade com o Caldas Internacional Hotel, mas não esquece Macau, onde regressa todos os anos.
Fernando Lúcio nasceu em 1948 nos Casais da Serra, na freguesia do Landal, no seio de uma família humilde. Com 15 anos foi para Lisboa estudar e trabalhar no ramo da hotelaria.
“A vida na aldeia era bastante difícil. Foi um salto qualitativo que dei na minha vida ter ido para Lisboa”, diz Fernando Lúcio à Gazeta das Caldas. O empresário considera esses anos, durante os quais trabalhou em diversos hotéis, fundamentais na sua aprendizagem. “Não diria que foram bons tempos, mas não me queixo. Proporcionou o meu desenvolvimento cultural e abriu-me os horizontes. Levei dali bases que me ajudaram bastante na minha vida empresarial”.
Aos 20 anos, como era comum na altura, foi cumprir o serviço militar obrigatório e em 1970 partiu em comissão para Macau. “Muitos dos meus camaradas foram para as ex-colónias africanas, mas uma pequeníssima percentagem dos recrutas ia para Macau e eu tive essa sorte”, considera.
A viagem, feita de barco, demorou 64 dias. “Ainda éramos umas centenas de militares, uns iam para Timor, outros para Macau”, recorda. A viagem “não foi nenhum cruzeiro”. A soldadesca viajava no porão e dois meses seguidos no mar não são propriamente umas férias. Mas o espírito de camaradagem que se vivia a bordo fez com que também não tenha sido um grande sacrifício, recorda.
À chegada a Macau, o jovem Fernando, então com 22 anos, deparou-se com uma realidade bem diferente da que deixou em Lisboa. O clima era muito quente, o que aliado à poluição e aos cheiros das ruas, com as típicas barracas de comida, fez com que a adaptação não tivesse sido fácil.
Macau nessa altura era pouco mais do que uma aldeia. O prédio mais alto que tinha era o Hotel Lisboa, com sete ou oito andares, recorda. Não havia muito onde as pessoas se pudessem distrair, sobretudo os portugueses. “Havia dois ou três cinemas em chinês e em inglês. Não havia restaurantes nem cafés. Éramos uma comunidade um bocado fechada”, afirma Fernando Lúcio. Além disso, enquanto militares, não havia uma ligação com a comunidade chinesa local. “O militar era sempre olhado de lado, eles não eram hostis connosco, mas também não eram simpáticos”, conta.
Foi nessa carência de espaços onde a comunidade portuguesa se pudesse juntar e sentir os sabores de Portugal, que viu uma oportunidade para se estabelecer. Ainda com 22 anos começou a explorar por sua conta o restaurante do Clube da Marinha.
“Orgulho-me de ter sido proprietário do primeiro restaurante português de Macau. Havia algumas casas mistas, com comida de Macau e portuguesa, mas restaurante tipicamente português não”, afirma. Foi ali que se serviu a primeira bica, por exemplo, e outras coisas simples que antes não existiam, como queijos, vinhos e enchidos nacionais.
Mas essa não era a sua única ocupação além da tropa. Pegava no aquartelamento às 7h00 da manhã. Era o cabo do rancho, ou seja, um dos responsáveis pela cozinha. Servia os pequenos almoços e saía pelas 10h00 para ir servir os almoços no restaurante do Clube da Marinha. Às 14h00 regressava ao quartel para preparar os jantares e, com o serviço orientado, voltava a sair às 17h00 para entrar ao serviço no Hotel Lisboa, onde era chef, até às 2h00.
“Foram assim os meus dois anos de comissão”, afirma. Quando terminou o serviço militar, continuou a explorar o restaurante do Clube da Marinha, que manteve por cerca de quatro anos, e a trabalhar no Hotel Lisboa, onde ficou até 1977.
A POUSADA DE COLOANE
Uma nova mudança foi-lhe proporcionada pela oportunidade de voltar a abrir um negócio próprio, numa pequena unidade hoteleira na ilha de Coloane, a menos urbanizada e mais natural das três que compõem a região de Macau. Adquiriu e reabilitou o imóvel para abrir a célebre Pousada de Coloane, que ainda hoje existe como hotel de charme.
Essa foi a derradeira razão para permanecer em Macau, até porque na altura tinha intenções de emigrar para a Austrália e até chegou a tratar da documentação.
A Pousada de Coloane tinha cerca de 30 quartos e estava situada naquele que Fernando Lúcio considera “o melhor sítio de Macau”.
A fórmula que aplicou para o sucesso da sua pousada foi a mesma que o tinha levado a abrir o seu primeiro restaurante: os sabores da portugalidade, que agora explorou ainda mais a fundo. Levou de Portugal contentores de materiais, como o clássico azulejo português azul e branco para decorar e renovar todos os espaços.
Para potenciar o negócio, começou a organizar muitos eventos de cariz português. “Durante mais de 20 anos fiz um festival chamado Abril em Portugal”, conta.
Nesse festival, fazia viajar de Portugal para Macau alguns dos melhores artistas da época, do fado e da música ligeira, como Vicente da Câmara, Octávio de Matos, Carolina Tavares, Nuno da Câmara Pereira, ou Herman José. O festival mostrava tradições nacionais, como o folclore, e também o melhor da gastronomia. “Importava uma série de produtos e vinham os chefes famosos da época, como o chef Silva, que iam lá ensinar a boa culinária portuguesa”, acrescenta.
Num desses eventos, no início da década de 1990, Fernando Lúcio orgulha-se de ter conseguido levar a Macau uma comitiva com todos os autarcas do seu concelho natal (Caldas da Rainha). “Isso foi um marco importante para mim. Macau é pequeno, a imprensa falou disso e a comitiva foi recebida pelo então governador de Macau, o general Rocha Vieira”, conta.
Na comitiva seguiu também Francisco Antunes, um caldense emigrado nos Estados Unidos que viria anos mais tarde a construir o Caldas Internacional Hotel. “Não sonhava naquela altura que um dia ia comprar o hotel”, graceja.
Os eventos tinham como objectivo promover o que era português. “Mas não era apenas por bairrismo”, reconhece. “Era um meio de promover os meus negócios”. E a popularidade destes eventos foi crescendo, não só junto da comunidade portuguesa, mas também na comunidade inglesa de Hong Kong, que está relativamente próxima. “A maior parte dos meus clientes eram ingleses”, sustenta.
Estes eventos foram fundamentais para a prosperidade dos negócios de Fernando Lúcio em Macau, que se foram expandindo. Acabou por abrir vários espaços ligados à restauração, entre eles “o melhor e maior restaurante de Macau da altura” – o Lusitano, que abriu em 1998, um ano antes da transição administrativa de Macau para a China, que ocorreu a 20 de Dezembro de 1999.
O INCRÍVEL DESENVOLVIMENTO DE MACAU
Não foram só os negócios de Fernando Lúcio que cresceram. Também Macau registou um “desenvolvimento incrível”, principalmente no pós 1999, com a entrega da administração à China.
Quando, em 1987, se assinou o tratado que estabelecia a transição administrativa, instalou-se algum receio na comunidade portuguesa. “Ainda estava muito presente o que se passou na descolonização do pós 25 de Abril”, recorda. Também Fernando Lúcio chegou a pensar em regressar, “mas não me precipitei e ainda bem”, confessa.
“Os chineses respeitaram os acordos e não se sentiu hostilidade”, recorda. E a mudança acabou por resultar melhor do que se previa, trazendo prosperidade através da liberalização do jogo.
“O que desenvolveu Macau foi a abertura de novos casinos e hotéis, Macau já ultrapassou Las Vegas como a capital mundial do jogo”, refere Fernando Lúcio.
Esta região, que tem uma área de 22 km2, ou seja, é menor que o concelho das Caldas, atrai hoje 36 milhões de turistas por ano, quase o triplo dos que visitam Portugal.
Depois dessa transição administrativa, Fernando Lúcio ficou mais nove anos em Macau. Com 60 anos e com os cinco filhos criados e formados, “fizeram-me uma boa oferta e vendi o que lá tinha para voltar a Portugal”, conta.
Parar de trabalhar é que não estava nos planos. “Tudo o que construí foi com muito trabalho, não houve varinhas mágicas”, sustenta. E mesmo o regresso não foi ao acaso pois foi investindo em várias parcelas de terrenos na sua freguesia natal, o Landal, para formar a Quinta da Granja que tem preparada para abrir como turismo rural.
“Vinha cá sempre uma a duas vezes por ano e fui começando a investir com a intenção e o saudosismo de voltar às Caldas”, afirma.
Dois anos depois de voltar à sua terra, proporcionou-se a aquisição do Caldas Internacional Hotel, cuja gestão continua a fazer à beira de completar 71 anos.

O GRANDE PRÉMIO DE MACAU
A vida de Fernando Lúcio em Macau foi sobretudo de trabalho, que lhe tomava grande parte do tempo. No entanto, houve uma actividade de lazer para a qual conseguiu arranjar alguma disponibilidade: o automobilismo, que é o seu desporto de eleição.
Ainda numa fase inicial da sua estadia, participou em oito edições do mítico Grande Prémio de Macau, na chamada Corrida da Guia, que é dedicada aos automóveis de produção (carros “normais” que são adaptados para competir). E foi mesmo o primeiro português a fazê-lo. “Foi a minha única extravagância ao longo da vida”, comenta.
Participar naquele Grande Prémio, ainda hoje considerado um dos mais perigosos do calendário da Federação Internacional de Automobilismo, não era para qualquer um e por isso era algo que levava muito a sério. O seu bólide era um Toyota Celica que tinha um kit de competição que mandou vir directamente do Japão.
Depois de ter pilotado no circuito da Guia, chegou a ser presidente do Automóvel Clube de Macau, nos últimos anos em que esteve naquele território. Este clube é um dos organizadores daquele mega evento, por onde passaram alguns campeões do mundo de Fórmula 1, como Ayrton Senna, Michael Schumacher, Mika Hakinen, ou os mais recentes Sebastien Vettel, Lewis Hamilton, Nico Rosberg, entre outros pilotos de renome.
Fernando Lúcio conta que aquela organização é uma máquina pesada, que envolve vários organismos macaenses, principalmente a Direcção de Serviços de Turismo. E recorda que não foi o único caldense envolvido nesta organização. “O engenheiro Costa Antunes [antigo director do GAT] foi durante muitos anos um dos responsáveis principais pela organização do Grande Prémio”, afirma.
APAIXONADO PELO ORIENTE
A adaptação inicial às características de Macau foram difíceis, mas os 40 anos naquele território fizeram com que Fernando Lúcio se tivesse apaixonado pelo Oriente. Todos os anos regressa a Macau, onde trabalham duas das suas filhas, Ana Clara e Diana, uma delas como arquitecta e a outra no ramo hoteleiro. Os outros três filhos – Fernando Miguel, Isabel e João Fernando – estão em Portugal. Todos, porém, nasceram em Macau.
“Antes estava lá e tinha saudades de Portugal, agora acontece o oposto. Foi lá que fiz a minha vida e que passei a maior parte do tempo, por isso gosto de lá ir”, acrescenta.
Por norma, fica perto de um mês e aproveita para conhecer outras paragens, como a Tailândia, Vietname, Malásia, Hong Kong, Singapura e outros territórios vizinhos.
“O Oriente é bonito e fascinante, pela comida, pelas paisagens. Há tudo o que possamos imaginar, desde as belíssimas praias da Tailândia, à comida tailandesa e chinesa, passando pelos templos e o clima. As pessoas, na generalidade, são simpáticas, respeitam-nos, e sentimo-nos seguros. Nunca vi desacatos, pode-se passear de noite”, descreve.
Fernando Lúcio esteve emigrado durante 40 anos e defende que Portugal devia ter maior abertura para receber refugiados. “Portugal, na minha geração, foi um país de emigrantes. Quase todos fomos fugidos da miséria e, nos países de acolhimento, salvo raras excepções, fomos bem recebidos, governámos a nossa vida e trouxemos muito investimento para Portugal”, afirma.
O empresário acha, por isso, que o país deve retribuir e receber estas pessoas que vêm fugidas de situações extremas. “Há o problema do terrorismo, sabemos que misturado com o trigo vem também o joio, mas desde que haja cuidado devemos ajudar as pessoas que escolhem o nosso país para ter uma vida melhor”, acrescenta.
Outro motivo forte para receber estas pessoas é que o país se começa a deparar com problemas de falta de mão de obra. “Eles não vêm tirar o pão da boca aos nossos, fazem cá falta”, conclui.

































