Faleceu João Evangelista

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Morreu na passada quinta-feira, dia 17 de Fevereiro, João Evangelista, vítima de uma paragem cardíaca. Estava internado no Montepio desde segunda-feira, dia 14, após ter estado cerca de dois meses em casa.
O seu funeral realizou-se no sábado, dia 19, no cemitério dos Olivais (Lisboa) onde foi cremado.
O pai da Ecologia portuguesa morava nas Caldas há cinco anos, depois de ter vivido na Costa da Caparica. Natural de Óbidos, viveu vários anos nas Caldas da Rainha onde estudou e onde mais tarde liderou o pólo da UAL. Tinha pronto um livro sobre as suas memórias que iria ser lançado em breve.
Em sua homenagem voltamos a publicar um trabalho de 04/05/2001 (edição nº 4337 da Gazeta das Caldas).

“A-dos-Negros – Uma Aldeia da Estremadura”

Um livro escrito com o coração

O académico foi distinguido pelos Rotários como o profissional do ano e também homenageado pelas Câmaras de Óbidos e das Caldas

Quarenta anos volvidos, a pacata aldeia de A-dos-Negros (concelho de Óbidos) voltou a ser retratada na segunda edição da obra “Chorographia A-dos Negros – Uma aldeia da Estremadura”.
Este livro escrito por João Evangelista “com mais amor do que ciência”, mostra ao longo de mais de uma centena de páginas e fotografias da época, a história, aparecimento e povoamento da aldeia, a ocupação da sua população e a sua economia.
Na cerimónia de lançamento da reedição  da obra, que teve lugar no passado Domingo, muitos foram os filhos da terra que se reuniram no salão recreativo para estarem perto de João Evangelista, também ele natural de A-dos-Negros e a ela ligado por laços muito fortes de afectividade.
Segundo este professor e ambientalista, entre 1962, data da primeira publicação e os nossos dias, muitas modificações ocorreram nesta aldeia rural, e “se esboroou todo o mundo tradicional por via de transformações  muito significativas: a ponte nova, a estrada de asfalto e a carreira de camionetas, a electricidade, depois a farmácia, o café e os novos locais de convívio”. Os burros também desapareceram, passando as pessoas a deslocarem-se através do automóvel, e os carros de bois deram lugar aos tractores, passando a trabalho a ser menos penoso.
Também a fisionomia humana sofreu alterações. “no vestuário do homem morreu o barrete e a velha cinta, na mulher já é raro o uso do lenço na cabeça”, observa João Evangelista, actualmente com 80 anos. A melhoria das acessibilidades alterou a relação desta aldeia com as Caldas da Rainha, deixando esta de ser somente um atractivo  como mercado, para ser um local onde os jovens podem frequentar todos os níveis de ensino e posteriormente exercer uma profissão, “deixando de ter, como aconteceu aos pais, o trato da terra como único destino”.
Para além de todas estas mudanças, João Evangelista acrescenta uma nota critica  ao abandono que exibem algumas casas antigas que outrora foram lar de famílias abastadas. “Dão uma nota triste e feia à terra, em contraste com as construções novas e as restauradas”, realça.

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“Ser filho de camponeses é ser fruto da grande massa da Nação”

João Evangelista recordou ainda familiares e amigos que habitavam na aldeia de A-dos- Negros, destacando, entre eles, Francisco Maria “que foi um homem que para esta aldeia contribuiu de uma maneira que pouca gente percebia naquela época. Há 40 anos atrás já fazia contas das suas culturas, discriminando quanto havia gasto em adubos, sementes, quanto produziu e quanto valeu. Isso permitiu nessa época fazer um trabalho único a nível da Europa, pelo menos, onde não há nenhuma monografia de aldeia que tenha as contas como estas”.
Com fortes raízes na sua terra, João Evangelista enalteceu o papel do camponês que “constrói, retribui à terra muito do seu suor e consegue conserva-la durante séculos”. Parafraseando Miguel Torga, acrescentou ainda que “eu sou filho das leiras, das rochas e quem nasce no campo é assim. Não há que ter vergonha de nascer no campo nem de ser filho de camponeses, porque isso é ser fruto da grande massa da Nação”.
Considerando que actualmente o homem está a subvalorizar toda a dimensão humana e afectiva que o liga á terra, o humanista adverte que a continuar nesse caminho “a sociedade não terá um fim agradável” e conclui destrinçando a diferença entre saber e sabedoria. “O homem da cidade tem saber porque aprende através dos livros, o homem do campo tem sabedoria porque aprendeu com a sua experiência”. Uma sabedoria que segundo o ambientalista, actualmente “está a ser desfalcada e roubada pelas grandes multinacionais que vão buscá-la aos povos humildes das florestas para depois fabricar medicamentos e plantas”.
Este livro agora reeditado contou com o apoio da Junta de Freguesia de A-dos-Negros e da Leader Oeste, e teve uma tiragem de mil exemplares. A Junta de Freguesia  pretende agora oferecer um exemplar a cada filho, em representação da sua família, que residam em A-dos-Negros, de forma a dar mostrar aos mais jovens os usos, costumes e geografia desta aldeia da Estremadura.

Fátima Ferreira
fferreira@gazetadascaldas.pt

A vontade de ir mais além

João Evangelista, assim chamado devido ao santo daquele dia, nasceu em A-dos-Negros, a 27 de Dezembro de 1920.
Após a conclusão dos estudos primários nas Caldas da Rainha, empregou-se como marçano num estabelecimento comercial, frequentando em simultâneo o curso nocturno da Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro.
Entretanto, cumpre o serviço militar, onde pôde ingressar como furriel, “enquanto os outros rapazes de A-dos-Negros optavam por outro tipo de mealheiro para as despesas militares – cultivando para si uns pés de vinha, fazendo searas em pequenos tratos de terreno que o pai cede juntamente  com sementes e adubos ou criando um porco ou um borrego para vender na feira”, salientou Carlos Orlando na apresentação deste professor.
De regresso à actividade comercial, prossegue simultaneamente os seus estudos completando o curso liceal. “Ainda estava longe de ver o seu sonho concretizado, mas o facto de ser oriundo duma família humilde de A-dos-Negros não era justificação para não ser capaz de tirar um curso superior”, afirmou Carlos Orlando.
No inicio da década de 50, o professor João Evangelista matricula-se na Faculdade de Letras de Lisboa, onde tira a licenciatura em Ciências Geográficas. Entretanto foi bolseiro no Instituto de Alta Cultura e na Fundação Calouste Gulbenkian e colaborador  do Centro de Estudos Geográficos de Lisboa.
Ainda nesta altura inicia as suas actividades de assistente e professor na Faculdade de Letras de Lisboa  e de colaborador da Enciclopédia Luso-Brasileira, até 1967. É nesta fase que João Evangelista escreve a obra “A-dos-Negros – Uma aldeia da Estremadura”.
Posteriormente vai para Angola, onde continua as funções de docente na Universidade e no Instituto Comercial de Luanda. Ainda neste país faz diversos estudos de Planeamento e de Defesa do Ambiente.
De regresso a Portugal, em 1975, entra para a Comissão Nacional do Ambiente, tornando-se um percursor na formação e reciclagem de professores para a área de “Educação Ambiental”.
Actualmente João Evangelista é o responsável pelo pólo caldense da UAL  e continua a realizar diversas palestras, colóquios, visitas de estudo  e publicações, centradas essencialmente na temática da educação ambiental. Em 2000 foi homenageado pela autarquia caldense, tendo-lhe sido atribuído a medalha de mérito- grau ouro.

F.F.

Desapareceu um dos mais “jovens” intelectuais obidense- caldense

Era uma personagem simples, simpática e consensual, ajudou a sarar as  feridas das guerras internas na UAL lisboeta, que, de certa forma,  tiveram impacto no Pólo das Caldas e permitiu que a fase de declínio  fosse vivida sem dramas, desaparecendo essa estrutura num momento em que  o mesmo acontecia com outras similares por todo o país. Não conseguiu dar-lhe  mais alguma vida com outros cursos não universitários que  denodadamente tentou lançar, ligados às artes criativas, mas a história  do ensino em Portugal não lhe foi favorável.
Trata-se do Professor João Evangelista, que faleceu na passada semana nas Caldas da Rainha. Já tinha estado anteriormente internado nesta unidade de saúde e ultimamente já lhe era difícil deslocar-se com  autonomia, percorrendo como antes a cidade pacatamente e degustando com especial  atenção os pratos de alguns restaurantes, como numa das vezes  testemunhou para o nosso jornal.
Nasceu numa povoação do concelho de Óbidos, tendo vindo muito jovem trabalhar e estudar para as Caldas da Rainha, mais especificamente para a Escola Industrial e Comercial onde se notabilizou cedo pela sua   arguta inteligência.
Depois continuou a estudar em Lisboa, onde fez uma dissertação sociológica – A dos Negros: uma aldeia da Estremadura – que ainda hoje é referência metodológica da época sobre a sua terra natal. Depois a vida levou-o às colónias para desempenhar funções públicas, tendo regressado a Portugal a seguir ao 25 de Abril de 1974, desempenhando  então funções nobres na área ambiental.
Já depois de reformado da função pública, veio liderar o projecto nas  Caldas da UAL. Recentemente, em Outubro de 2009, teve um momento de grande tristeza quando perdeu a esposa, Maria de Lurdes Evangelista, que era também uma companheira de sempre e que foi  vítima de doença repentina.
Foi notícia em meados do ano passado pela oferta da sua biblioteca à Câmara caldense composta por alguns milhares de livros. A doação formalizou-se no final do ano passado.
Acho que o Professor João Evangelista é daqueles cidadãos que dava gosto conhecer e conviver e tinha cruzado magnificamente a sua pertença a dois concelhos (Caldas da Rainha e Óbidos) que desde há muito têm dificuldade em conviver e partilhar projectos.
Ele deu o exemplo. Esperemos que inspire os responsáveis destes concelhos vizinhos.
À família enlutada Gazeta das Caldas endereça os sentidos pêsames pelo desaparecimento dum amigo que muito nos honrava com a sua amizade.

JLAS

Singela homenagem ao Senhor Prof. Doutor João Evangelista, de um seu admirador

Só hoje, dia 20 de Fevereiro, tive conhecimento da morte do Senhor Prof. Doutor João Evangelista. A sua perda causa uma imensa amargura, sobretudo sentida por todos aqueles a quem o Senhor Prof. se deu a conhecer. A minha motivação para prestar este depoimento, resulta da convivência que, sobretudo a partir da década de noventa, me foi proporcionada pelo Senhor Professor e por mim vivida com crescente admiração.
Foi a fundação da Associação “ECOESTE” Fórum de Ambiente da Região Oeste, cuja criação foi da sua responsabilidade e sobretudo da sua liderança, que motivou a minha participação, entre os finais de 1994 e o início de 1999, em numerosas reuniões presididas pelo Senhor Professor, as quais, sendo confirmativas da sua hombridade e da excelência dos seus conhecimentos, representaram para mim outras tantas ocasiões de apreço. A minha assiduidade, em representação da Instituição que então dirigia, foi incentivada graças à primazia da sua presença. Foram assim acontecendo os Seminários, realizações relevantes dedicadas à defesa do Ambiente na Região Oeste, um dos quais, o 2º Seminário, que decorreu em Maio de 1996, teve um carácter prospectivo, conforme se pode deduzir do seu título: “O Ambiente no Oeste no Ano de 2010”.
Participei em duas das justas homenagens que lhe foram dedicadas nas Caldas da Rainha: A primeira, promovida pelo Rotary Club de Caldas da Rainha, que o elegeu Profissional do Ano 2002; a segunda, em data bem recente (19 de Dezembro de 2010), quando da abertura formal da Sala que reúne o valioso acervo da biblioteca que o Senhor Prof. Doutor João Evangelista doou, por inteiro, à Biblioteca Municipal das Caldas da Rainha.
Em ambas as oportunidades me foi concedido o uso da palavra.
Permito-me transcrever o que me foi dado ler na Biblioteca Municipal, na tarde de Domingo, dia 19 de Dezembro de 2010:
“Esta solenidade em que hoje participamos tem o significado de Homenagem a um Cidadão que confere à sua Vida um cunho ímpar de exemplaridade, por razão das suas próprias qualidades, que cultiva com a constância, a modéstia e o senso que sempre distinguem aqueles que são os mais competentes, os mais sabedores.
Na grande diversidade dos seus interesses intelectuais não têm lugar senão os que significam um enorme sentido de dádiva, de entrega a causas que promovam incentivos à formação, ao apuramento dos diversificados aspectos de índole cultural, dirigidos tanto ao indivíduo como à sociedade em que nos inserimos. Esta a sua forma de estar, a de quem exerce continuadamente e em plenitude os seus deveres de cidadania, prodigalizando o seu Saber sem colher outro benefício que não seja o de corresponder ao apelo íntimo de comunicar, transmitindo os vastos conhecimentos que o estudo e a profunda e clarividente reflexão lhe permitiram acumular, criando conceitos e perspectivas que, não raro, anteciparam no tempo as realidades de hoje e de um porvir que sempre pugnou para que seja mais favorecido sob os pontos de vista educacional, social, económico, cultural, e, com especial ênfase, no domínio ambiental que tão intimamente se relaciona com todos os demais aspectos, porque constitui, afinal, a matriz da vida que se deseja de qualidade, mais saudável e solidária.
O Professor Universitário, o insigne Pedagogo a quem hoje temos o ensejo de dedicar o mais justo louvor, não enjeitou nunca as suas raízes familiares e de naturalidade, orgulhando-se muito da aldeia que o viu nascer, A-dos-Negros, aqui perto, no Concelho de Óbidos. Foi há cerca de 40 anos que lhe dedicou uma monografia “ A-dos-Negros Uma Aldeia da Estremadura”, na qual reflecte o estudo aprofundado, evolutivo, dos usos e costumes da Sua Aldeia, estudo que, pelo seu valor histórico, mereceu uma segunda edição lançada em Janeiro do ano 2000.
A Sua relação com as Caldas da Rainha remonta ao tempo em que, muito novo, aqui iniciou a sua actividade profissional, marcando já, nessa fase da juventude, o seu inconformismo, a sua firme vontade de desvendar novos rumos, com suporte num progresso pessoal, formativo, educacional, que lhe permitisse o acesso a outros desígnios que legitimamente ambicionava cumprir.
Da frequência das aulas nocturnas da Escola Rafael Bordalo Pinheiro à elevação à Docência e Cátedra Universitárias, percorreu assim todo um percurso curricular feito de esforço perseverante, de competência demonstrada e amplamente reconhecida, fruto de um sentimento íntimo do Valor próprio que, sendo o justo motivo do seu conforto, é seguramente, a razão do nosso orgulho e do nosso maior respeito.
Sentir de perto a sua presença é um privilégio, presença que, aliás, nunca é recusada à nossa Região, por virtude de uma sincera e mútua afeição, que faz com que a possamos usufruir por diversas formas, tanto na qualidade de Professor e Pró-Reitor da Universidade Autónoma de Luís de Camões, como até na de conceituado guia em iniciativas que por vezes se concretizam com o intuito de veicular o gosto pelas coisas da Natureza ou ainda pela salvaguarda do Património. Ouvir o Senhor Professor, nomeadamente, nas Jornadas de “Descobrir Óbidos” ou nas suas visitas ao “Vale Tifónico”, são oportunidades únicas de aprender, de aprender com quem, em linguagem sábia, acessível, é capaz de transmitir as melhores noções que vão desde a Geologia e as suas dinâmicas, à Arqueologia, à Educação Ambiental, enfim, aos tantos outros assuntos que são atributo da Sua vasta Cultura de Pedagogo e de Cientista.
O momento que se celebra confirma sobremaneira a nobreza de carácter do Senhor Prof. Doutor João Evangelista, o quanto a sua Vida está dedicada para o bem-fazer, para agir em benefício dos outros. Este belo exemplo fica firmado hoje de forma perene, através da doação á comunidade do seu próprio acervo documental, científico, literário, precioso património acumulado, que espelha muito da sua grande vitalidade intelectual. Mais uma vez, é o sentido de dádiva que anima o Homem, que nos lega em vida tão preciosa herança cultural, a ser passada aos vindouros.
Vivemos com comoção esta entrega que tanto enriquece a Biblioteca Municipal, consolidando assim a sincera admiração que nos merece a Vida e a Obra do Senhor Prof. Doutor João Evangelista. Cumpre-nos enaltecer o seu tão generoso contributo, que tanto dignifica o Cidadão João Evangelista. Bem-haja Senhor Professor!”
Com o que fica escrito, quero reviver hoje os mesmos sentimentos, com igual franqueza, mas com uma profunda tristeza, pois à grande admiração que lhe foi dedicada, se junta agora esta inevitável saudade, sincera, para sempre.

Mário Gonçalves

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