O comboio e as câmaras fotográficas dão o mote à exposição temporária que foi inaugurada no dia 11 de Novembro no Museu do Ciclismo. São mais de 300 “máquinas de fazer fotografias” e algumas dezenas de imagens de “máquinas que fazem andar os comboios” que estão expostas neste espaço da rua Luís de Camões, dirigido por Mário Lino.
Foi num dia 11 de Novembro, há exactamente 99 anos, que foi assinado o Armistício que poria fim à I Guerra Mundial. A assinatura teve lugar numa carruagem dos caminhos-de-ferro em Compiègne, a mesma carruagem que 22 anos depois Hitler exigiu que fosse o palco da rendição da França na II Guerra Mundial.
No Museu do Ciclismo, entre as fotos de comboios podem ver-se locomotivas alemãs que vieram para Portugal como indemnização de guerra depois da derrota da Alemanha na I Guerra Mundial. E este é apenas um exemplo de como qualquer foto sobre comboios, desde contextualizada, pode contar sempre uma ou várias histórias.
Apesar de não ter um fio condutor nem de obedecer a uma ideia prévia, as fotos de Mário Lino e de António Freitas (um ferroviário reformado que reúne uma boa colecção de imagens de comboios e de estações) são um mosaico do que foi e do que resta do caminho-de-ferro em Portugal.
Algumas foram tiradas em estações que já fecharam (Marvão-Beira, Moura, Miranda do Corvo) e mostram material circulante que já não circula como as velhinhas automotoras Noahb e locomotivas a vapor de via estreita. Há fotos interessantes da estação das Caldas da Rainha, algumas do princípio do século XX e outras dos anos 80 quando a linha do Oeste ainda tinha muito movimento.
Interessantes também as imagens do Vouguinha, o comboio histórico de via estreita que durante o Verão liga Aveiro a Macinhata do Vouga (Águeda), bem como as magníficas fotografias do comboio na linha da Beira Baixa, junto ao Tejo, numa das quais se vê uma área florestal queimada, negra, a contrastar com o amarelo das carruagens.
O CAMINHO-DE-FERRO EM PORTUGAL
O comboio foi inaugurado em Inglaterra em 1825 e demorou 31 anos a chegar a Portugal (estreou-se entre Lisboa e o Carregado em 1856). Era a tecnologia de ponta da época. Os monstros do carvão, do ferro e do aço eram a vanguarda da tecnologia e os engenheiros atarefavam-se em optimizar o funcionamento das caldeiras de vapor, da bielas, dos êmbolos, dos pistões.
As linhas férreas espalharam-se rapidamente pela Europa, pelos Estados Unidos, pelo mundo.
Em Portugal a História do caminho-de-ferro é indissociável da História do próprio país desde o séc. XIX. A futura rainha D. Amélia veio de comboio para Portugal para casar com D. Carlos I, Eça de Queirós comentava as modas, os livros e as ideias que vinham no Sud Expresso desde Paris e que desembarcavam no Rossio para logo seguirem para a Brasileira do Chiado. No 5 de Outubro a República foi comunicada ao país pelos telégrafos do caminho-de-ferro. Sidónio Pais foi assassinado na estação do Rossio. Durante o Estado Novo os dignatários do regime passeavam-se pelo país no Comboio Presidencial (que hoje é usado como comboio de luxo no Douro). Foi no Foguete, entre o Porto e Lisboa, que Humberto Delgado deu esperança de liberdade ao país em Maio de 1958. Foi de comboio que partiram milhares de portugueses para França nas décadas de 60 e de 70. Foi de comboio que Mário Soares regressou do exílio após o 25 de Abril de 74.
O caminho-de-ferro marcou o país durante o século XX, mas na sua segunda metade começou a ser maltratado e claramente preterido pela rodovia que reunia o consenso de governantes e governados. Uns, pouco interessados em investir na modernização de uma tecnologia que consideravam caduca e outros – o povo – deslumbrado com o automóvel que finalmente deixara de ser coisa para ricos e se massificava, na exacta medida em que agora os governos lançavam concursos públicos e PPP (Parcerias Público-Privadas) para rasgar auto-estradas pelo país.
Portugal é hoje o país da Europa com mais quilómetros de auto-estradas por habitante e é o segundo com mais quilómetros de auto-estrada por quilómetro quadrado. Outro indicador: o rácio entre o número de quilómetros de auto-estradas e o PIB é cinco vezes maior que a média europeia. Somos um país rico.
O homem das câmaras fotográficas

José António Querido, 59 anos, nasceu em Lisboa mas foi criado em Santa Catarina. É o responsável por um valiosíssimo espólio que neste momento está exposto no Museu do Ciclismo, constituído por mais de 300 câmaras fotográficas analógicas.
“Eu mandei para cá cerca de 550, mas não houve espaço para expor todos”, contou. Mesmo assim, ainda ficaram mais 300 na sua casa em Lisboa, pelo que este coleccionador pode orgulhar-se de ter à volta de 900 destes aparelhos.
A paixão pelas fotografias e pelas máquinas que as fazem tem origem numa história doméstica de quando ele tinha seis anos. O pai gostava de observar os astros e comprou um telescópio que montou junto à janela de casa de banho, que era a que tinha melhor vista para o firmamento. Mas a mãe não gostou da ideia e tanto “ralhou” com o marido que este foi à loja devolver o equipamento. Como não lhe deram o dinheiro de volta, trocou-o por uma máquina fotográfica, a qual viria a marcar indelevelmente o jovem José António Querido, que desde logo se entusiasmou pelo aparelho e pelas pequeninas fotos a preto e branco que então se tiravam.
José António Querido herdou a câmara fotográfica do pai, mas foi já em adulto, depois da tropa feita e quando trabalhava numa gráfica, que comprou a sua primeira peça do seu futuro espólio: uma Yashica. Seguiu-se uma Nikon F3 e a partir daí nunca mais parou porque simplesmente não resistia a comprar câmaras – a maioria em segunda mão – até ter hoje esta colecção de quase um milhar.
Entre as peças agora expostas podem ver-se exemplares Kapsa, Coronel ou Kodak, dos finais do século XIX. Nessa altura as próprias máquinas eram enviadas para Londres onde se revelavam as fotografias. O fotógrafo recebia depois as imagens e a sua máquina devolvida.
Entre as primeiras máquinas “modernas”, da época do digital, podem ver-se umas peças nas quais se introduzia uma disquete de computador e na qual se guardavam – pasme-se! – oito fotografias. Também se podem ver as primeiras máquinas analógicas que faziam fotografias panorâmicas a 180 graus.
Mas a colecção tem também câmaras usadas pelos snipers para fotografar e disparar sobre alvos, bem como aparelhos usados pelos espiões durante a Guerra Fria.
Não são estes os aparelhos mais caros. José António Querido apresenta também uma Hasselblad e uma Leica que, mesmo compradas em segunda mão, custaram-lhe alguns milhares de euros.
Fotografias que contam histórias

1 – A estação fronteiriça de Marvão-Beirã, um complexo ferroviário onde trabalhavam ferroviários, guardas-fiscais, funcionários da alfândega e Pides. Tinha oficinas para os comboios, escritórios, dormitórios, restaurante, cais de mercadorias e inúmeros serviços necessários à passagem dos comboios e ao funcionamento da fronteira. Por aqui passou durante décadas o Lusitânia Expresso, comboio que liga diariamente Lisboa a Madrid (hoje o percurso desta composição é feito pela Beira Alta) e por aqui entraram muitos refugiados da II Grande Guerra que acabaria por ir parar às Caldas da Rainha. A linha não resistiu à troika e fechou em 15 de Agosto de 2012. Hoje uma parte da estação é um hostel.
Em baixo a estação da Livração (concelho de Marco de Canavezes) na Linha do Douro, de onde partia a linha de via estreita para Arco de Baúlhe. Fechou em 2008 (quando já só tinha serviço entre Livração e Amarante) com a promessa do governo de que iria ser modernizada. Nunca mais abriu.
Em ambas imagens da autoria de José Freitas se podem ver automotoras Nohab construídas na Suécia e vindas para Portugal em 1949. Já não estão ao serviço.

2 – A estação das Caldas da Rainha em 1997 durante um evento que pretendia ser uma recreação histórica – a chegada do rei às Caldas da Rainha. Contudo, a locomotiva a vapor que deveria rebocar o comboio avariou quando vinha do Porto para as Caldas e a CP teve que colocar uma máquina a diesel.
Em baixo, a mesma estação nos anos 80/90. Locomotivas 1400 e automotoras Allan, de fabrico holandês, que vieram para Portugal nos anos 50. Modernizadas e pintadas de verde, algumas ainda hoje circulam (e avariam) na linha do Oeste.

3 – Um encontro de gerações ou de diferentes tecnologias: uma locomotiva a vapor e uma automotora a diesel. As fotos de Mário Lino são tiradas na Régua onde não poderia constar um comboio eléctrico porque ali a linha do Douro não está electrificada.
A locomotiva 0186 foi construída em 1925 na Alemanha e enviada para Portugal como indemnização da I Grande Guerra. Rebocou comboios de passageiros e de mercadorias em praticamente toda a rede nacional e acabou os seus dias nos anos 70 na linha do Douro. Mas foi salva da sucata e recuperada para fazer comboios turísticos. Circula durante o Verão entre a Régua e o Tua a fazer o Comboio Histórico do Douro.
Ao lado uma UTD (Automotora Tripla Diesel) 592 fabricada em Espanha e propriedade da Renfe. Faz parte de um conjunto de cerca de 20 unidades que foram alugadas pelos espanhóis à CP. Algumas vêm à linha do Oeste. Se viessem mais, não haveria tantas supressões por avaria do material.

4 – Uma foto que é um mistério por desvendar. Inícios do século XX. Na estação das Caldas há tropas perfiladas à espera de algum dignatário. Mas o comboio vem do Norte e não de Lisboa, de onde seria de esperar a vinda de alguém importante. Uma hipótese (que carece de confirmação): em 1925 ou 1926, o Presidente da República, Bernardino Machado, passa pelas Caldas da Rainha, de comboio, a caminho de Lisboa. Terá sido no dia que a foto documenta?






























