Editorial – Nelson Mandela – desapareceu uma história viva de África e do mundo

0
639
Foto DR

O mundo assistiu no final da passada semana, sem surpresa mas com muita emoção, à morte física de Nelson Mandela, que foi o primeiro Presidente da República da África do Sul depois da queda do appartheid.

Mandela foi uma personagem quase irreal e incomparável da história da Humanidade, próxima provavelmente de nomes como Ghandi ou Martin Lutther King, pelas causas que se bateram, mas também pela forma como o fizeram.

Acaba Nelson Mandela neste momento por beneficiar de um consenso global inultrapassável, apesar de na prática, as suas ideias e os comportamentos que demonstrou, serem pouco seguidos na quase totalidade do mundo.

- publicidade -

Quem mostra perdoar ou conciliar (não esquecendo) o que foi feito para trás ou o que é feito hoje?

Mandela provavelmente não é deste mundo, como dirão muitos, pois dificilmente se compreende quem de forma tão ingénua e pueril apagou da memória o que de profundamente mau lhe fizeram, não a si exclusivamente, mas a todo o seu povo, que sofreu anos a fio de uma discriminação inumana e vergonhosa.

O mundo e os homens são bastante imperfeitos, cabendo a cada um de nós e às sociedades num todo aperfeiçoarem-se para que corrijam e minorem essas imperfeições. Difícil é encontrar aqueles que de forma coerente e persistente conseguem ultrapassar os defeitos e as imperfeições que todos nós carregamos no quotidiano.

Poucos previram a forma como ocorreu e está a ocorrer a transição da África do Sul, de um sistema segregacionista, racista e autoritário ao extremo, para um sistema multipartidário, aberto e democrático, apesar de manter muitas injustiças sociais.

O voo do flamingo

Talvez seja de recordar um episódio dessa história recente da África do Sul, que não vimos referido por ninguém na imprensa internacional: Mont Fleur é uma pequena cidade nos arredores da Cidade do Cabo onde se desenrolou entre 1991 e 1992 um exercício do prospectiva para antecipar o futuro da África do Sul num horizonte de 2002 na sequência do fim do regime de Appartheid.

Este exercício, envolvendo personalidades até aí divididas pelo regime do appartheid, foi realizado num período de forte incerteza quanto à ordem política no país, quando ainda não tinha rumo definido, mas num momento em que era mais que nunca necessário dar-lhe um rumo desejável.

A iniciativa de construir os cenários foi tomada pelo economista Pieter Le Roux, professor da Universidade do Cabo, a que se juntou Adam Kahane, especialista do método dos cenários da Shell International, e foi apoiada financeiramente pela fundação alemã Friedrich-Erbert e pela Agência Suíça do Desenvolvimento.

O projecto agregou 22 personalidades sul-africanas, seguindo um princípio da diversidade, provenientes de todas as comunidades “raciais” definidas pelo appartheid, a que se juntava também uma diversidade de funções. Podiam-se encontrar responsáveis dos partidos políticos, sindicalistas, universitários, homens de negócios, etc.. As sensibilidades ideológicas presentes iam desde os marxistas aos liberais.

Estas personalidades não estavam em nada absolutamente de acordo até aí pois muitas haviam-se afrontado duramente anos antes. Mas todos tinham uma coisa em comum: o futuro da África do Sul. E todas puseram-se de acordo sobre um método comum para reflectir sobre este futuro.

No final foram encontrado vários cenários muito significativos, que hoje duas décadas depois, nos dá que pensar:

O primeiro cenário da avestruz (“Ostrich”) lembra esta ave incapaz de voar, que é conhecida por enterrar a cabeça na areia quando um perigo a ameaça, ou seja, a sociedade sul africana mantinha-se profundamente desigual e violenta. Vários sub-cenários seriam então possíveis, desde a insurreição geral, à “libanização” da África do Sul, podendo esta ser repartida em enclaves dominados pelos “senhores da guerra”, ou ainda com o retorno à mesa das negociações, mas agora em condições ainda mais difíceis.

O segundo cenário do pato manco ou coxo (“Lame Duck”) assume a imagem de uma ave claudicante, incapaz de retomar o seu voo apesar dos esforços que faz, ou seja, o compromisso, baseado numa transição lenta, produz efeitos paradoxais: destinado a contentar toda a gente não satisfaz ninguém. A decisão política torna-se quase impossível e a acção do Estado fica diminuída. A crise económica e social agrava-se, com repercussões negativas sobre a situação política. Os actores em presença radicalizam as suas posições. A década de 90 está perdida para a África do Sul.

O terceiro cenário Ícaro (“Icarus”) é construído à roda da hipótese de um governo democraticamente eleito e tentando cada vez voar mais rapidamente. É o ritmo de Ícaro revisitado (“Fly Now, Crash Later”): levantar voo imediatamente e despenhar-se a seguir. Ou seja, o apoio político ao novo regime afunda-se; o governo assume posições autoritárias para manter os objectivos. Como na América Latina em condições similares, grupos armados da direita ameaçam as instituições. As eleições seguintes levam ao poder um governo que será de inspiração quer marxista ou ultraliberal, mas de qualquer forma autoritário.

O quarto cenário do Voo do Flamingo (“Flight of the Flamingoes”), afinal o mais optimista mas ponderado, faz referência a esta ave pernalta e palmípede, com penugem geralmente rosa. Tal deve-se ao facto dos flamingos, segundo ensinam os ornitólogos, começarem a voar lentamente, sendo depois capazes de voar alto e durante muito tempo. Ainda para mais, voam em grupo de forma ordenada e cooperativa. Quanto à cor rosa, talvez pudessem marcar o optimismo deste cenário.

As negociações tinham êxito e davam lugar, rapidamente, a um novo regime político democrático, baseado na participação de todos e na representação proporcional de todos nas instâncias eleitas. O novo governo lutaria contra a corrupção, melhoraria a eficácia dos serviços públicos e implementaria uma política macroeconómica coerente com os imperativos financeiros.

O apoio da comunidade internacional, a abertura dos mercados e a estabilidade da região, chamariam de novo os investidores. O nível de violência diminuiria e o turismo desenvolver-se-ia e tornar-se-ia um recursos suplementar. O governo ajudaria para que esta renovação da actividade económica fosse o motor da integração social. Poria ainda em movimento um plano dirigido de investimentos sociais, nomeadamente dirigido para grupos que tinham mais sofrido o efeito do appartheid. Era dada prioridade à luta contra a mal-nutrição e a SIDA. O lugar das mulheres na sociedade era outra prioridade do governo.

Provavelmente nem tudo o que neste cenário se antecipava aconteceu, mas será a melhor imagem aproximativa ao quarto de século que a África do Sul atravessou e que o funeral neste momento de Nelson Mandela significa.

Mais do que embandeirar em arco e juntar-nos a esta unanimidade tão incoerente, deixamos esta reflexão que nos parece mais produtiva e compreensiva para todos que estamos a assistir a estes acontecimentos à distância.

Esperemos que o desaparecimento de Nelson Mandela sirva por mais anos de estímulo ao voo do flamingo sul-africano.

JLAS

- publicidade -