David Brito não queria emigrar, mas não teve outra opção quando se viu numa situação de seis meses de salários em atraso. Casado e com três filhos pequenos, a situação tornava-se insustentável e por isso decidiu tentar a sorte com uma empresa suíça que estava a recrutar em Portugal, corria o ano de 1987. Dos 50 candidatos foi um dos cinco seleccionados, esteve lá 24 anos dos quais não se arrepende, apesar de ter vivido muitos momentos difíceis.
David Brito vive nas Caldas da Rainha desde 2011. Esta foi a cidade que escolheu para desfrutar da sua reforma depois de uma vida de trabalho árduo. Uma escolha que ficou nas mãos do destino. Quando saiu de Wetzikon, perto de Zurique (Suíça), onde esteve emigrado durante 24 anos, não queria voltar à Lisboa que o viu nascer. Trazia uma verba destinada a comprar uma casa num conjunto de opções que incluíam as Caldas, Setúbal e o Algarve. A habitação nas Caldas foi a primeira a ser visitada e já nem viu as outras. “Gostei da casa, da cidade, da região, e gostei muito da praia da Foz do Arelho, não a trocava por nada”, resume, assim, a escolha.
Nas Caldas encontrou para si e para a sua família a tranquilidade após uma vida que muitas vezes foi madrasta.
David Brito nasceu em Lisboa em 1951. Aos cinco anos de idade viu-se sozinho com o irmão. “Perdi o meu pai, e a maneira como fui criado, na rua, sem pai nem mãe, a atirar pedras com fisgas aos carros, podia ter feito de mim um delinquente”, diz David Brito. Mas um tio não permitiu que fosse esse o seu destino. Inscreveu-o, a ele e aos irmãos, na Casa Pia. “Foi onde fizeram de mim homem”, garante.
Além de estudar, na Casa Pia desenvolveu o gosto pelo desporto, algo que foi importante no seu percurso, em bons e maus momentos. Em miúdo, gostava de jogar à bola e até lhe chamavam Matateu (nome do famoso avançado do Belenenses na década de 1950). Jogou federado pelo Casa Pia nos escalões jovens, e até chegou a ir treinar com os juniores do Sporting. Não ficou, na altura, a jogar de leão ao peito, mas a experiência abriu-lhe a porta para ficar no clube de Alvalade a praticar boxe.
Desporto à parte, David Brito é grato pelas oportunidades que a passagem pela Casa Pia lhe abriu. Com 15 anos tornou-se operário estudante e formou-se como serralheiro. Em 1965 começou então a trabalhar numa empresa da Amadora, a Celeno – Construções Electromecânicas Inoxidáveis, Lda. Ficou nesta firma até 1978, onde começou a trabalhar em serralharia pesada.
O percurso nesta empresa foi interrompido entre 1972, altura em que foi chamado a servir no então Ultramar. Na recruta, o gosto pelo desporto pregou-lhe uma rasteira. “Disseram: quem sabe jogar bem à bola dê um passo em frente. Eu não queria andar ali a marchar o dia todo e enquanto estivesse a jogar à bola não estava a marchar, dei o passo e escolheram-me”, conta. Mas a pergunta era uma armadilha. A escolha não foi para jogar à bola, mas sim para ir para as tropas especiais. Deram-lhe guia de marcha para Lamego, onde fez a especialidade e depois embarcou para a Guiné, onde esteve até 1974.
Finda a guerra, voltou a Portugal e retomou a carreira de serralheiro que tinha abraçado. Em 1978 saiu da Celeno e seguiu para os estaleiros navais de Setúbal, a Setenave, como serralheiro montador, no fabrico de navios. No início continuou a conciliar o trabalho com a escola, o que lhe valeu o estatuto de operário qualificado.
EMIGRAÇÃO FORÇADA
Na Setenave começou a construir a sua vida de forma estável. Casou com Maria Helena em 1981 e formou família. Só que no período pós-revolucionário a Setenave e outras empresas semelhantes, como a Lisnave e a Sorefame, começaram a ter dificuldades.
“Os problemas políticos obrigaram à fuga da família dos Mello, que detinha a empresa, e esta ficou com problemas. Cheguei a estar seis meses sem receber salário”, recorda.
Nessa altura já David Brito e Maria Helena tinham três filhos: Sandra com seis anos, Rui com quatro anos e Carla com apenas sete meses. Sem ordenado, David Brito tinha que fabricar, em casa e à noite, algumas peças metálicas, como fogareiros e outros objectos, que vendia para pôr comida na mesa. Mas tal não era suficiente e, apesar de não querer, emigrar foi a única opção.
Teve colegas a desafiá-lo para trabalhar em plataformas petrolíferas no Médio Oriente e na Venezuela, onde os profissionais de serralharia eram bem pagos, “mas tive medo e não fui”, confidencia.
Só que a situação ficava insustentável e David Brito inscreveu-se na Junta Nacional de Emigração. Começou por se candidatar a um emprego na Austrália, para o qual chegou à fase de entrevistas, mas foi a porta da Suíça que se abriu em 1987.
A empresa Lindab-Bartholet abriu um processo de recruta para quatro serralheiros e um soldador em Portugal. De um grupo de 50 candidatos, o currículo e os conhecimentos de David Brito destacaram-se e foi um dos escolhidos.
Com os mil escudos (5 euros) que lhe deram para a viagem, comprou a passagem para Zurique. Apanhou o comboio em Santa Apolónia e a aventura começou. “Hoje a viagem faz-me lembrar os filmes de antigamente: o carregar malas, o sair numa estação em Espanha que afinal não era a correcta, as mudanças de comboio…”, conta.
Chegado a Zurique, na companhia dos outros quatro selecionados pela Lindab, David Brito começou a ter dúvidas se teria feito a melhor escolha. “Ficámos quase um dia inteiro à espera que nos fossem buscar. A Suíça é um país complicado, as pessoas olhavam desconfiadas porque pensavam que éramos ilegais, fomos logo maltratados na estação” conta.
A BARRIGA VAZIA E A MÃO PARTIDA
Mas o transporte lá chegou. Da estação foram de encontro ao patrão da empresa, por quem David Brito nutre grande estima. “O senhor Bartholet é um grande amigo e um grande homem, que ajudou muita gente”, explica. “Ele viu logo que estávamos cheios de fome, o dinheiro mal chegava para os bilhetes e não tínhamos mais nenhum, não comíamos há quase dois dias”, relata. O patrão levou então os novos funcionários para um restaurante, onde comeram uma boa refeição. Pelo caminho, ainda lhes mostrou os locais onde não deveriam ir por razões de segurança.
Mas os problemas na Suíça ainda mal tinham começado para David Brito. Um acidente nas vésperas da viagem fez com que viajasse com a mão direita partida, algo que tentou esconder. Sem sucesso.
As dores eram muito fortes e acabou por ter que ir ao hospital. Quando teve alta e se apresentou ao serviço, um dos responsáveis da empresa mostrou-lhe a porta de saída, mas o patrão segurou-o e deu-lhe trabalho numa outra firma, de montagem de computadores, onde só tinha que usar a mão engessada para segurar o ferro de soldar.
Quando tirou o gesso, cerca de dois meses volvidos, foi então para a Lindab-Bartholet, mas outro entrave – e bem grande – se levantou: não sabia alemão, a língua oficial daquele cantão e na qual estavam escritas as fichas técnicas dos trabalhos da empresa.
“Como especialista, os trabalhos que me davam para fazer eram muito complexos. Eu olhava para o esquema e não percebia nada daquilo”, recorda. Um dos chefes apercebeu-se quando David Brito pediu ajuda a um colega italiano e ficou furioso quando percebeu o que se passava. “Gritou que queriam pessoas que percebessem a língua, entre outras coisas que não se podem dizer. Pensei para mim que, mal recebesse o primeiro salário, fugia de volta para Portugal. Não estava ali para ser maltratado”, conta.
Sem perceber os esquemas de fabrico, David Brito foi colocado a carregar camiões com tubos pesadíssimos às costas, trabalho destinado a ajudantes, não a serralheiros. “Eu só chorava, não aguentava aquilo, queria vir-me embora”, recorda.
“O INÍCIO FOI MUITO DOLOROSO”
As questões laborais eram apenas uma parte das razões para querer voltar a Portugal. “Tive momentos muito maus. O início foi muito doloroso. Uma pessoa queria falar e não sabia. Depois era o estar sem a família, sem os filhos pequenos”, recorda. “Digo, com sinceridade, que estive em África na guerra e nunca sofri tanto como nos primeiros meses de emigração”, afirma.
A comunicação com Portugal era, como para tantos emigrantes portugueses nessa altura, uma dificuldade extra. “Durante o dia, telefonar era impossível. À noite, a partir das 21h00, as redes estavam sobrecarregadas porque estava toda a gente a tentar telefonar”, recorda. Era necessária muita resiliência para conseguir ligação. Depois metia-se 5 francos na cabine telefónica e falava-se um bocado com a família para matar saudades.
Mas David Brito aguentou aquele período difícil e percebeu que valia a pena o esforço quando recebeu o primeiro salário. Como fazia muitas horas extraordinárias, a primeira folha de pagamento chegava perto dos 4000 francos suíços. “Eram quase 500 contos na altura [2500 euros] e aquilo era uma fortuna”, afirma.
Quando foi ao banco para receber o dinheiro, o alemão já não foi entrave. O caixa perguntou-lhe quanto queria levantar, a resposta saiu pronta: “alles [tudo]! Era um montão de notas”, exclama.
Mal saiu do banco ligou à esposa e disse-lhe: “nunca vi tanto dinheiro na minha vida! Já não me vou nada embora, vou é ficar aqui!”.
Foram cerca de três meses naquele trabalho de ajudante, até começar a dominar a língua o suficiente para perceber os planos de trabalho. Começou por fazer pequenas peças, mas depois a sua capacidade de trabalho fê-lo crescer dentro da Lindab.
TRABALHOS PARA A BAYER E A PHILLIPS
A empresa produzia condutas de ar gigantes para túneis, edifícios, chaminés, peças para fábricas encomendadas à medida e que exigiam grande precisão, tudo em metal. Entre os trabalhos de que David Brito se orgulha estão algumas instalações para a farmacêutica Bayer e trabalhos especiais que fez para uma exibição da Phillips e outros para uma exposição em Zurique, como uma máquina de flippers gigante na qual os visitantes podiam ganhar prémios.
“Era tudo material super pesado, em chapa de quatro milímetros, e tinha que fazer tudo sozinho. Tornear, soldar e as coisas tinham que ser certinhas, não podia falhar um milímetro”, diz David Brito.
Continuou, fez o primeiro contrato, depois o segundo e assim por diante. Nove meses a trabalhar na Suíça, três meses em Portugal, de acordo com o regulamento da imigração helvética.
Ao fim de quatro anos, como era também habitual na altura, adquiriu os direitos equivalentes aos dos cidadãos suíços e recebeu autorização para ter, finalmente, a família junto a si, o que aconteceu em 1991.
Mas mesmo esse processo teve obstáculos. Para que a família fosse autorizada a estabelecer-se na Suíça, era preciso comprovar que tinha condições, sobretudo ao nível da habitação. “Era preciso uma casa com quartos para todos”, realça. Isso obrigou-o a um esforço adicional. Nessa altura, para garantir a casa com as condições ideais, arranjou um segundo emprego, nocturno, a fazer pizzas numa pizzaria. Saía do emprego às 17h00, pegava no restaurante às 21h00 e só voltava a casa perto da meia noite, após um turno de duas horas. No dia seguinte tinha que estar a pé às 5h00 da madrugada.
COLEGAS NÃO ACEITAVAM LÍDER PORTUGUÊS
Na Lindab-Bartholet, a forma empenhada e rigorosa com que trabalhava levou David Brito a ser promovido a operário chefe, em 1994, passando a dar formação aos novos funcionários. O ordenado crescia, mas também as responsabilidades e até os problemas. É que nem sempre os colegas suíços, italianos e espanhóis reagiam bem à liderança de um português. “Muitas vezes me prejudicava porque era preciso acabar o trabalho e ninguém queria fazer horas. Houve até um suíço que me tratou mal e disse que me cortava o pescoço”, recorda.
Além disso, tinha tarefas acrescidas, sobretudo quando se tratavam de construções mais complicadas. “Éramos 10 homens para fazer o trabalho, mas a única pessoa que o sabia fazer era eu. Quinava, soldava, preparava tudo para os outros estarem sentadinhos a ver, só faziam as tarefas mais fáceis”, conta.
O trabalho pesado começou a causar-lhe problemas de costas, que ainda hoje o afectam. E tudo se precipitou a 13 de Agosto de 1997. Ainda jogava futebol, federado, nas velhas guardas do Wetzikon. Num jogo de taça, calhou no sorteio o Grasshoppers, da I Liga. David Brito ia jogar de início, mas não chegou a começar a partida. No aquecimento, caiu desamparado para trás e foi parar ao hospital. O problema que já tinha nas costas agravou-se de forma considerável e foi-lhe passada incapacidade para trabalhar a 50%, da qual não conseguiu recuperar. “Foi mais uma altura em que sofri bastante, quando estava no meu auge”, lamenta.
Ainda ficou mais sete anos na Lindab-Bartholet, mas acabou por sair após um convite de uma outra firma, a Assag, então só para dar formação na sua área profissional. Nesta empresa esteve mais quatro anos, até regressar a Portugal em 2011.
Mas é da Lindab-Bartholet que guarda as melhores recordações, que fazem com que todos os sacrifícios por que passou tenham valido a pena. “Fui muito estimado pelos patrões. Fizeram-me uma carta de louvor quando eu saí que guardo e que muito me honra”, sustenta.
Desde que voltou a Portugal, David Brito não regressou à Suíça e não tem planos de voltar, a não ser para, eventualmente, visitar a filha mais nova, Carla, que ainda por lá reside com o marido e os filhos.
Depois de uma vida de trabalho duro, prefere ficar por cá e aproveitar as coisas simples da vida, como, por exemplo, fazer caminhadas na Foz do Arelho.
Quanto às políticas anti-emigração que ganham escala na Europa, defende que não deviam existir: “a maior parte das pessoas que saem do seu país fazem-no, como também eu o fiz, à procura de uma oportunidade de ter uma vida melhor, que não lhes deve ser negada”.



































