Por: Carlos Querido
Dizem as crónicas da época, que Rafael Bordalo Pinheiro era um sedutor. Começou por conquistar o Chiado. Naquele tempo, quem conquistava o Chiado conquistava Lisboa, e talvez o reino. Depois conquistou o Brasil. Finalmente, deixou-se conquistar pelas Caldas, onde chegou no ano de 1884, e de onde nunca mais partiu, porque a permanência nos lugares que se ama é feita de memórias que ficam. Eis que regressam novamente, a Isabel e o Bordalo, com a mesma cumplicidade, a pretexto de uma efeméride: a inauguração no dia 15 de maio de 1927, do busto do Mestre na Rua dos Plátanos do Parque D. Carlos I. 1-Entre muitos outros pseudónimos, usou os de Anastácio das Lombrigas, Anacleto dos Coentros, O Antigo Juiz das Almas de Campanhã, José Mendes Enxúdio e D. Rosária dos Cogumelos.
Pelas ruas e parque da nossa cidade ficaram espalhadas reminiscências do percurso do Mestre, pegadas que resistiram ao tempo, e a Isabel Castanheira, nas “Caldas de Bordalo”, de braço dado com Rafael, num animado grupo de que faziam parte, entre outros, Júlio César Machado, o gato Pires (que de súbito se esgueira pelo gradeamento do Parque), o Zé-povinho e a Maria da Paciência, numa linguagem simples e coloquial levou-nos a descobri-las, uma a uma.
Bordalo trouxe à vila das Caldas prestígio, modernidade, centralidade e emprego. Grata e reconhecida, a vila sempre lhe retribuiu com afeto. Ainda em vida do Mestre, na sessão de câmara do dia 4 de junho de 1902, por proposta do vereador José Pedro Ferreira, aprovada por unanimidade, a Rua Nova passou a chamar-se Rua Rafael Bordalo Pinheiro.
Volvidos 25 anos, dois anos após a fundação da Gazeta das Caldas e poucos meses antes da elevação a cidade, a vila reservou-lhe um dos seus mais belos recantos para a colocação de um busto da autoria de Teixeira Lopes.
Na celebração dos 90 anos da estátua de Bordalo Pinheiro e da elevação da vila das Caldas a cidade, a Isabel Castanheira propõe-nos uma pequena obra que convoca uma outra instituição: a Gazeta das Caldas.
Determinada, como é seu timbre, vasculhou minuciosa todas as edições dos dois primeiros anos do nosso mais antigo jornal, transcrevendo os textos que se referem ao Mestre, construindo dessa forma um livro ao qual chamou: “Rafael Bordalo Pinheiro À Sombra dos Plátanos”.
Folheamos o livro e encontramos velhas notícias do jornal, algumas surpreendentes, como as que relacionam o Mestre com duas das figuras mais populares da época: os escritores Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano.
No que respeita a Camilo Castelo Branco, as relações azedaram com uma caricatura mordaz, feita por Bordalo, aquando da atribuição ao escritor do título de Visconde de Correia Botelho, pelo rei D. Luís.
Camilo, que sempre revelou desprezo pelos títulos nobiliárquicos que na época se distribuíam a esmo, embirrava particularmente com os novos viscondes, tendo assinado alguns textos com o pseudónimo de “Visconde de Qualquer Coisa” , mas na hora da distinção, não hesitou, e a pena crítica de Bordalo nunca perdoava a incoerência.
Nalgumas cartas aos amigos, o escritor lamentava-se. Talvez com pouca razão porque, como nos diz José-Augusto França, Bordalo Pinheiro nas suas caricaturas procurava sempre o ponto fraco do visado, com malícia, mas sem maldade.
A mesma justiça lhe era feita por Raul Brandão, que nas suas Memórias traça esta interessante distinção: «… o lápis dos outros amolga, envenena, destrói, faz gritar ou faz cismar: é talhado na pena vermelha do Diabo e molhado em fel. No lápis de Rafael Bordalo Pinheiro mistura-se o riso com a emoção. Até mesmo quando ridiculariza, este artista de génio faz amigos».
Numa carta de Camilo a Bordalo, que a Isabel nos revela, o escritor louva o caricaturista e fala de George Sand, pseudónimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant, romancista francesa que vestia roupas masculinas e fumava em público, inspiração de Ana Plácido, a paixão do velho escritor que ambicionava a glória literária do amante, com quem esteve presa durante mais de um ano pelo crime de adultério.
Numa outra carta que descobrimos no livro, Alexandre Herculano autoriza Bordalo a publicar uma caricatura, declarando que a mesma não ofende o seu “carácter moral”. O tom é de cortesia e de enaltecimento do artista, contrariando uma alegada ameaça do escritor ao caricaturista, perpetrada junto à ombreira da Bertrand, no Chiado, relatada num outro texto escrito sob anonimato.
E ficamo-nos por aqui, para não levantar demasiado o véu sobre uma obra que será apresentada no dia 24 de junho, pelas 15 horas, na Rua dos Plátanos, ponto de reencontro da cidade com o seu mais ilustre filho adotivo.
Lá estaremos, com a Isabel, com a Gazeta das Caldas e com todos os leitores que quiserem associar-se a um momento de celebração da nossa memória coletiva.






























