I. Breve apontamento histórico
A vila das Caldas da Rainha começou por integrar a comarca de Alenquer (decreto de 28 de Junho de 1833). Mais tarde, na reforma introduzida pelo Decreto de 29 de Novembro de 1836, surge integrada na comarca de Leiria, com Alcobaça, Marinha Grande, S. Martinho do Porto, Óbidos e Porto de Mós. De acordo com o citado diploma legal, o concelho das Caldas tinha apenas 1.805 fogos, cerca de metade do concelho de Óbidos (3.156) e do concelho de Alcobaça (3.041).
Até ao ano de 1835, a vila compunha-se de uma única freguesia, a de Nossa Senhora do Pópulo, mas tudo se altera no ano de 1836, quando é promovida a sede de concelho, com sete freguesias, devido à integração das antigas vilas e concelhos dos coutos de Alcobaça (Alvorninha, Santa Catarina e Salir de Matos), bem como da freguesia de Vidais (anteriormente partilhada pelos concelhos de Óbidos e de Alvorninha) e ainda Coto e Tornada (anteriormente pertencentes a Óbidos).
Os mapas judiciários que se seguem vão reflectir a nova realidade geográfica e demográfica da vila, que passa a ser comarca por força do Decreto de 28 de Dezembro de 1840, promovida a “cabeça de círculo de jurados” em 1841, passando a englobar três julgados em 1855 (Caldas da Rainha, Óbidos e Peniche), a que acresce o Bombarral a partir de 1875.
Em 1895 a vila das Caldas é promovida a comarca de 1.ª classe (Decreto de 26 de Dezembro), estatuto confirmado e reiterado pelas reformas que se sucederam.
Em 1962 é criado o círculo judicial de Caldas da Rainha (Decreto-Lei n.º 44278, de 14 de Abril), com sede nesta cidade, onde se integram, para além da comarca das Caldas, as comarcas de Alcobaça, Lourinhã, Rio Maior e Torres Vedras.
Em 1967 são integradas no círculo judicial de Caldas da Rainha mais duas comarcas: Alenquer e Mafra. Finalmente, o Decreto-Lei n.º 214/88 de 17 de Junho reduz a área do círculo judicial de Caldas da Rainha ao território que ainda hoje se mantém: comarcas de Caldas da Rainha, Peniche e Rio Maior, onde se inclui o município do Bombarral, que se tornou comarca em 1999.
Na sequência da divisão administrativa do país em distritos (1835), estipulava o artigo 1.º da Novíssima Reforma Judiciária  aprovada pelo Decreto de 21 de Maio de 1841, que [a] divisão judicial do continente do reino de Portugal com as ilhas adjacentes, é em districtos, comarcas, julgados e freguesias.
A célula da divisão judicial passou a ser a comarca, que por sua vez correspondia em regra ao território do concelho. Nas sedes de concelho, muitas vezes na mesma avenida ou no mesmo largo, havia em regra dois edifícios que na imponência da arquitectura reflectiam diferentes poderes: os Paços do Concelho e o Palácio da Justiça. O paradigma que vigorou por mais de um século, era o da competência genérica: no Palácio da Justiça dirimiam-se todos os conflitos: de natureza cível, criminal, comercial, família e menores. A competência especializada era a excepção.
A necessidade de especialização decorrente dos novos tempos não alterou substancialmente este paradigma. Em muitos tribunais de comarca passou a haver juízos de competência cível e de competência criminal, mas o edifício era o mesmo. Ali se continuavam a dirimir todos os conflitos.
A reforma judiciária introduzida pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014 de 27 de Março (em vigor a partir de 1 de Setembro de 2014), altera um paradigma secular, suscitando preocupações que abordarei sem a profundidade que a reflexão merece.

II. Alterações de competência do Tribunal das Caldas

Actualmente, Caldas da Rainha é sede de comarca e de círculo judicial, com três juízos de competência genérica e um Tribunal do Trabalho cuja competência territorial abrange toda a área do círculo.
Com a Lei da Organização do Sistema Judiciário, Caldas da Rainha perde o estatuto de comarca, passando a integrar a comarca de Leiria, com todos os tribunais deste distrito, situação que não ocorria desde a reforma introduzida pelo Decreto de 29 de Novembro de 1836.
Vejamos o que determina o regulamento (Decreto-Lei n.º 49/2014 de 27 de Março):
Mantêm-se na cidade:
1) Instância Local: a) Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com tramitação de acções até ao valor de 50.000,00 e competência criminal para crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a cinco anos de prisão.
2) Instância Central: a) Secção do Trabalho; b) Secção de Família e Menores.
As acções de valor superior a 50.000,00, e os crimes com acusação a que corresponda pena superior a cinco anos, serão julgados na Instância Central – Secção Cível e Secção Criminal de Leiria.
Em Leiria haverá ainda as seguintes Secções de Instância Central: Secção do Trabalho; Secção de Família e Menores; Secção de Execução; Secção de Comércio; e Secção de Instrução Criminal.
Em Alcobaça, para além da Secção de Instância Local de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, ficarão as seguintes Secções de Instância Central: Secção de Comércio, Sessão de Execuções. Peniche fica-se por uma Secção de Competência Genérica.

III. A distância da justiça
Dispõe o n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que [a] todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Nos termos do n.º 4 do mesmo normativo, “[t]odos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Das normas legais citadas decorre o imperativo constitucional de proximidade da justiça, quer temporal, quer geográfica. A justiça que chega tarde, ou que se realiza longe sem que o cidadão tenha meios para se deslocar, não é justa.
Aqui se levantam as seguintes questões práticas e processuais:
1) As partes, os arguidos e as testemunhas terão que se deslocar à sede da comarca (Leiria) sempre que convocados para um julgamento ou qualquer acto judicial?
2) Os julgamentos decorrerão sempre no tribunal da sede, mesmo que os meios de prova exijam a presença do tribunal no local do conflito?
Vejamos os cenários possíveis:
1. Deslocação dos intervenientes processuais:
Na minha carreira de 1.ª instância exerci funções de juiz do tribunal de círculo de Torres Vedras, e de juiz do mesmo círculo judicial (após extinção do tribunal do círculo DR II, 215, 14/09/1999).
De acordo com o regime processual ainda vigente, deslocava-me às comarcas do círculo judicial – Torres Vedras, Lourinhã, Cadaval e Mafra -, onde presidia alternadamente aos julgamentos em tribunal colectivo. Os processos cíveis e criminais eram tramitados no tribunal da respectiva comarca, onde os juízes do círculo se deslocavam para presidir aos julgamentos.
Trata-se de uma tradição com profundas raízes no nosso sistema judicial, que remonta à figura do juiz de fora, com origem no ano de 1327, ao reinado de D. Afonso IV. Os intervenientes processuais advogados, partes, arguidos e testemunhas -, não tinham necessidade de se deslocar, porque os juízes do círculo judicial o faziam, compondo o colectivo com o juiz da comarca.
Seria possível transferir este conceito para as novas comarcas?
Parece uma solução muito difícil, face ao número de municípios que cada comarca (sede de distrito) engloba. No caso de Leiria, são 16: Alcobaça, Alvaiázere, Ansião, Batalha, Bombarral, Caldas da Rainha, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Leiria, Marinha Grande, Nazaré, Óbidos, Pedrógão Grande, Peniche, Pombal e Porto de Mós.
A solução poderá passar pela audição das testemunhas por teleconferência. No entanto, a generalização deste meio de comunicação e de produção de prova pode levar a uma situação absurda: um julgamento respeitante a um conflito ocorrido em Caldas, com testemunhas aqui residentes, sendo todas inquiridas por teleconferência, formalmente realizado na sede da comarca (Leria), numa sala de audiência vazia, apenas com o juiz e os advogados, ainda se poderá considerar realizado na sede da comarca?
Por outro lado, a generalização deste método põe em causa o princípio da imediação na produção da prova. Não é fácil procurar a verdade nos depoimentos contraditórios das testemunhas. Nada substitui o depoimento presencial. Há que considerar, para além da comunicação verbal, os gestos, os silêncios, as evasivas, os embaraços, conjunto de elementos não verbais relevantes para a formação da convicção do julgador.
Como afirmava um ilustre jurisconsulto, os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que são proferidas. A palavra não é só um meio de exprimir o pensamento, é também, por vezes, um meio de ocultar. Há que escutar para além das palavras: “não é o que dizes, senão o modo como o dizes”.
2. Deslocação do tribunal:
Por outro lado, há situações em que o julgador tem que se deslocar para melhor compreender e decidir. Reporto-me à inspecção judicial, à deslocação do tribunal ao local do conflito, para poder julgar em consciência a questão da estrema, da servidão de passagem, do acidente de viação ou para fazer a reconstituição do crime.
Na apreciação e julgamento de um conflito de direitos reais numa aldeia do município das Caldas, que opõe dois vizinhos devido a uma estrema ou a uma servidão de passagem, mesmo após audição de todas as testemunhas indicadas o julgador poderá ter dúvidas que só se esclarecem com uma inspecção ao local. Será mais fácil se o julgamento decorrer a poucos quilómetros de distância.
Nestas situações, os juízes da sede da comarca (Leiria) terão condições para percorrer os 16 municípios que a integram?
Os procedimentos processuais, no âmbito da nova estrutura judicial deverão ser cuidadosamente ponderados, de forma a não porem em causa a efectiva proximidade dos cidadãos relativamente à justiça, condição essencial da plena cidadania.

IV. Um debate urgente
Tudo se resume, afinal, a saber se esta alteração da estrutura judiciária será positiva no sentido de cumprir o imperativo constitucional de tutela jurisdicional efectiva: acesso ao direito sem constrangimentos e decisão em prazo razoável.
A justiça que tarda não é justa. Urge averiguar as razões dos atrasos e da ineficácia. Nos tribunais há muitos profissionais que todos os dias, com ilimitada dedicação, dão o seu melhor, com o profundo sentimento de frustração perante a ineficácia da resposta do sistema.
Apesar de não ser este o local nem o momento adequados a uma reflexão profunda, talvez a ineficácia da justiça tenha a ver com o desajustado confronto entre duas realidades: por um lado, vive-se uma profunda transformação das concepções de tempo e de espaço numa sociedade globalizada; por outro, assiste-se à estagnação de fórmulas processuais, métodos e procedimentos, que não permitem uma resposta adequada da velha estrutura a novas realidades.
Perante este cenário, parece não restarem dúvidas de que a resposta passa por uma alteração de paradigmas. Todas as reformas visam, pelo menos no plano teórico, melhorar o sistema em que interferem. Esta suscita à partida algumas perplexidades e outras tantas preocupações, sendo a maior a questão da proximidade entre os cidadãos e a justiça. A solução deste problema poderia passar pela deslocação dos juízes de instância central aos tribunais dos locais onde as causas nasceram e onde poderiam ser julgadas.

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*Juiz desembargador

Por: Carlos Querido*

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