83 ANOS
CASADO, UM FILHO E DOIS NETOS
Venho de um meio rural onde, à partida, tudo estava destinado a que ficasse a trabalhar no campo, mas tive a sorte de arranjar um emprego na cidade. Modesto, é certo, mas mais caldense não podia ser: fui porteiro do Hospital Termal. A minha vida está ligada a este edifício onde também trabalhei nos banhos, nas oficinas e até nas enfermarias a cuidar dos termalistas.
Nasci em 12 de Março de 1933. Em casa, tal como os meus quatro irmãos e duas irmãs, porque naquele tempo ninguém nascia nos hospitais. De qualquer maneira, também não havia transporte. Os meus pais tinham uma carroça e uma mula e essa não era a melhor maneira de trazer para o hospital uma mulher que vai dar à luz. Por isso eram as parteiras que iam a casa.
É que eu nasci no Casal Cozinheiro, perto das Cruzes (freguesia de Salir de Matos). Éramos pobres como praticamente toda a gente naquelas freguesias rurais. Ia para a escola a pé. Cinco quilómetros para cada lado, da minha casa para as Cruzes. Descalço, à chuva e ao frio, a pisar as poças geladas no Inverno. Mas era eu e toda a rapaziada daquele tempo. A escola não tinha aquecimento. Ganhávamos frieiras nos dedos, mas lá aprendemos a ler, a escrever, a contar. Todos os dias a ver o crucifixo por cima do quadro, o retrato do Salazar e umas reguadas de vez em quando.
Mas fiz a 4ª classe. E depois, como muitos, fui trabalhar para o campo. Umas vezes a ajudar o meu pai, que todos tínhamos de contribuir para haver comida no tacho ao fim do dia, outras vezes à jorna, de sol a sol. Mais tarde ia com as minhas irmãs para a região de Santarém apanhar azeitona. Passávamos lá um mês e trazíamos algum dinheiro para casa.
Cresci no Casal Cozinheiro. E assim que tive dinheiro comprei uma bicicleta. Era nela que ia trabalhar e também era nela que vinha aos domingos às Caldas. Já não me lembro bem do que fazia, mas eu não era rapaz de ir aos cafés, nem ao cinema nem aos bailaricos. Acho que vinha só ver a cidade, ver as montras, os carros, o movimento.
Demorava uma boa horita a chegar cá, mas na altura quase não havia carros. Nem estradas alcatroadas, quanto mais carros! Das Cruzes a Salir de Matos era sempre a descer. Depois até ao Coto era a subir e do Coto para as Caldas era a descer. Sempre por estradas de terra.
Foi a tropa que me arrancou do Casal Cozinheiro, mas não fui para muito longe. A guia de marcha que eu recebi em 1954 dizia para eu assentar praça em Santarém. Vim à Câmara das Caldas levantar uma guia para não pagar o autocarro. Fiz a recruta e fui um mês para Lisboa. Aí sim, aprendi alguma coisa. Eu nunca tinha estado em Lisboa, se bem que, na verdade, estava num quartel em Queluz.
Eu era corneteiro. E lembro-me bem que nesse mês que passei em Lisboa que fui a uma parada militar para receber o Presidente da República do Brasil de visita a Portugal. Foi no dia 22 de Abril de 1955 e também me lembro que ele se chamava Café Filho.
Depois voltei para Santarém e foi lá que acabei a tropa.
Regressei ao Casal Cozinheiro, mas não por muito tempo.
Eu queria um emprego de costas direitas, como se dizia naquele tempo. Tinha 23 anos e queria viver nas Caldas. Disseram-me para ir falar com o Dr. Alcino Coelho (que era advogado mas era também director do Hospital Termal) porque havia uma vaga para porteiro. Ele foi muito despachado e mandou-me ir falar com o encarregado. Passados uns dias, apareceu-me em casa um rapaz que era ali das Cruzes, o José do Coito: “É pá! Tens ordem para ir para o hospital e se quiseres ir, vais já amanhã!”.
E foi assim que comecei a trabalhar como porteiro do Hospital Termal.
O que é que eu fazia? Naquele tempo havia aquela delicadeza de abrir a porta às pessoas quando elas se aproximavam. Eu perguntava o que desejavam e dirigia-as para a secretaria para se inscreverem e depois encaminhavam-nas para as consultas no primeiro andar, ou para os banhos. Havia o elevador que tinha um funcionário permanente para fazer subir e descer as pessoas.
GANHAVA 27 ESCUDOS POR MÊS
Ganhava 27 escudos (13 cêntimos) por mês. Era muito pouco, mas era muito melhor do que trabalhar no campo. E para dizer a verdade, eu gostava muito daquele trabalho porque afeiçoei-me àquilo e eu era delicado para as pessoas.
No primeiro ano só trabalhei entre 15 de Maio e 31 de Outubro, que era quando as termas estavam a funcionar. Mas depois arranjaram maneira de me dar trabalho o ano inteiro e durante o Inverno eu ia para as oficinas e fazia de tudo: trabalhos de pedreiro, de electricista, de pintura.
Mas depois vinha o 15 de Maio e eu voltava a ser porteiro. Nesse dia, com a cerimónia das Festas da Cidade e da abertura das termas, havia sempre gente importante. Presidentes da Câmara e das juntas de freguesia passavam ali todos, mas também conheci, depois do 25 de Abril, o Mário Soares, o Cavaco Silva, o Ramalho Eanes, o António Guterres. A uns apertei a mão, a outros nem por isso.
Ao cabo de uns tempos eu tinha uma farda de porteiro. Mas não fiquei por aí. Passei a fazer mais coisas. Fui banheiro, que era o nome que se dava aos funcionários que preparavam os banhos: misturávamos a água quente e fria até ficar nos 37 graus e chamávamos o utente seguinte.
Depois fui para a enfermaria. Era ajudante dos enfermeiros: fazia as camas, levava os doentes aos banhos, distribuía os almoços e os jantares e, se fosse preciso, até dava a comida na boca a quem não podia comer sozinho. As enfermarias chegavam a ter 60 pessoas. Havia muito trabalho e até cheguei a trabalhar por turnos. Cheguei a estar 48 horas sem vir a casa.
Por esta altura já eu estava casado. Devo quase tudo na minha vida ao Hospital Termal. Eu estava na portaria e um dia vejo uma rapariga muito bonita que se aproxima e pede para falar com o Dr. Costa Silva porque tinha um irmão que ia ser operado. Eu fiquei com ela debaixo de olho. Chamava-se Idalina, vinha do Casal do Amaro, ali ao lado do Casal Pardo, em Alfeizerão, e era criada de servir numa família ali na Praça da Fruta.
Foi um namoro rápido. Sete meses depois casamos, em 11 de Fevereiro de 1962. Fomos viver para a Rua da Feira para uma casinha pequena, mas passado pouco tempo mudámos para a Rua do Jardim. Em 1964 nasceu o nosso filho, António José.
Seis anos depois de casarmos, a minha mulher conseguiu emprego como cozinheira também no Hospital Termal. Passámos lá grande parte das nossas vidas. Às vezes eu saía de serviço às oito da manhã e cruzava-me com ela quando vinha para casa e ela ia trabalhar. Ganhávamos pouco – só fomos aumentados depois do 25 de Abril -, mas comíamos lá e o nosso filho cresceu lá, a brincar nas enfermarias, nos balneários, estimado por toda a gente.
NO HOSPITAL DISTRITAL
No início dos anos 80 fui transferido para o Hospital Distrital. Quando estava de porteiro nas urgências atendia as pessoas e inscrevia-as. Também trabalhava de noite e, às vezes, lá me sentava num cantinho a passar pelas brasas, mas sempre atento a ver se chegava algum carro ou alguma ambulância.
Vi muitas coisas que não gostei. Assisti a muitas desgraças, mas também a muitas alegrias, sobretudo na Maternidade, quando nasciam crianças.
Até que de repente eu próprio passei à condição de doente. Foi quando eu estava de serviço na tarde de 25 de Agosto de 1985. Eu estava no corredor a falar com o Dr. Curado e só tive tempo de lhe pôr o braço no ombro e dizer “ó doutor está-me a dar um enfarte”. Ele deitou-me logo numa maca e levou-me para o SO. Tive um AVC, fiquei uns meses de baixa, mas quando me apresentei ao serviço, mandaram-me novamente para porteiro do Hospital Termal porque sempre era um trabalho mais calmo.
Foi assim que voltei para o local onde já tinha sido feliz. E continuei a sê-lo. Reformei-me com 61 anos em 1995. E nesse dia chorei muito. Fiquei muito comovido quando me despedi daquela gente toda porque eu era muito querido entre eles. Também é verdade que eu estimava toda a gente, médicos, enfermeiros, pessoal administrativo, as senhoras dos banhos, os empregados todos.
Hoje olho para trás e há alguns nomes que eu recordo com consideração: o Dr. Valente Sanches, que era advogado e administrador do Hospital, o Dr. Campos, o Dr. Costa e Silva, o Dr. Mário Gonçalves, o Dr. Mário de Castro. Gostei deles todos.
Com 61 anos ainda me senti com forças de agarrar nas terras dos meus pais, no Casal das Cruzes e amanhar aquilo. Plantei uma vinha, fiz uma adega e ainda passei lá bons bocados entretido. Também cultivava batatas, ervilhas, cebolas, favas, feijão. Mas a saúde começou a falhar, tive mais três enfartes e deixei de trabalhar. Agora aquilo é tudo mato… Agora fico por casa, vejo os meus netos crescer e sento-me em frente à televisão.

































