Em Fevereiro de 1958 um caldense contemplava, num cargueiro encalhado junto à costa de Cuba, os canaviais da Sierra Maestra a arder durante a noite. Fidel de Castro e os seus guerrilheiros queimavam as plantações de cana do açúcar para boicotar a economia do ditador Baptista e tomariam o poder dez meses depois. Mas isso não podia imaginá-lo o jovem Jorge Sales, que então fazia a sua viagem de estreia como praticante de piloto da Marinha Mercante portuguesa.
Jorge Manuel Sales Henriques da Silva, 76 anos, andou embarcado uma década, o tempo suficiente para ficar marcado por histórias e viagens que, ainda por cima vividas aos vinte anos, jamais se esquecem.
Em Setembro de 1957 inicia a sua primeira viagem marítima no navio Alcobaça, da Sociedade Geral, vulgo CUF. No cais de Alcântara, em Lisboa, tem a família a despedir-se do jovem piloto que parte para a Índia ainda Portuguesa (ocupada em 1961 pelo exército indiano) num cargueiro vazio com o objectivo de carregar minério no porto de Murmugão.
A navegação decorre sem novidades pelo Mediterrâneo, Port Said e canal do Suez. Jorge Sales acerta a sua vida pelo ritmo dos quartos de turno – de quatro horas cada, três vezes por dia – agarrado à roda do leme, o olhar fixo na proa do navio e na imensidão do oceano.
Nascido nas Caldas da Rainha, na Praça da Fruta, no edifício onde está hoje a Caixa Geral de Depósitos, Jorge Sales viveu em criança em Tornada. “Dantes nascia-se em casa e os meus pais viviam na Tornada, mas a minha quis que eu viesse nascer às Caldas porque aqui sempre tínhamos mais condições”, contou.
E dantes a escola primária também não era para todos. Jorge Sales frequentou as aulas particulares da D. Rosa Magina, na Rua Capitão Filipe de Sousa, preparando-se para o antigo exame da 4ª classe, que aprovou com sucesso. De Tornada para as Caldas vinha então numa carroça puxada por um burro, ou à boleia, na bicicleta de Joaquim Leandro (já falecido) que era empregado do seu pai e cuja filha é hoje funcionária da Gazeta das Caldas.
Jorge Sales prosseguiu estudos no Externato Ramalho Ortigão onde fez o 6º ano no ano lectivo 1954/55. “Recordo-me bem porque foi nesse ano que o Caldas subiu à I Divisão… eu jogava nos juniores com o Vasco Oliveira, sabe?”.
Meses depois parte para Lisboa, onde ingressa na Escola Náutica, na rua do Arsenal. É lá que tira o curso de piloto da Marinha Marcante e é como praticante de piloto que parte para a Índia em 1957 onde atraca, 13 dias depois, em Murmugão.
“O minério era carregado por centenas de homens com cestos à cabeça que, em fila indiana, subiam por rampas para o navio e os despejavam no porão. Demorámos um mês a carregar”.
O N/M Alcobaça zarpa depois para a Holanda, fazendo a mesma rota no regresso à Europa, pelo canal do Suez, ainda antes do seu encerramento entre 1967 e 1975, na sequência da Guerra dos Seis Dias entre Israel e os países árabes.
Chegados a Amsterdão, com gruas, bastaram duas horas para descarregar o minério que demorara um mês a carregar.
A tripulação recebe novas ordens por telegrama e o navio faz-se de novo ao mar. Passa o canal da Mancha e cruza o Atlântico rumo à ilha de Cuba, onde atraca em Pilón, “um porto muito pequeno com um cais de madeira minúsculo e fomos carregar uns restos de açúcar que havia nos armazéns porque, devido à guerrilha [contra o regime ditatorial do general Fulgencio Baptista pelos guerrilheiros de Fidel de Castro], nos últimos anos não tinha havido mais plantações”, conta Jorge Sales. “Fiquei impressionado porque eram sacos de 120 quilos e havia uns matulões que pegavam naquilo às costas com uma facilidade…!”.
De Pilón zarparam para Niquéro, bordeado uma das extremidades da ilha, mas apesar de levarem um piloto local embarcado, este deixa o navio encalhar num banco de areia.
O acidente não foi particularmente grave pois não ficaram presos em rochedos, nem havia um mar tempestuoso a investir contra o navio, pelo que, durante o mês que ali estiveram parados, em águas cálidas e calmas, a centenas de metros da terra, a tripulação seguiu as suas rotinas normais. Mas das recordações mais vivas desse mês, Jorge Sales realça o clarão dos incêndios na Sierra Maestra, provocados pelos guerrilheiros de Fidel Castro e Che Guevara.
“A gente sabia que havia uma guerrilha no país, tanto que até havia recolher obrigatório. À vezes saíamos do navio, numa lancha, e íamos a terra, mas tínhamos de regressar antes das cinco da tarde”, conta.
Jorge Sales não se recorda como nem quando veio a saber que em 1 de Janeiro de 1959 a revolução cubana saiu vitoriosa. Naquele tempo as notícias mal chegavam a quem andava no mar e, se vindas de Portugal, tanto pior porque a censura calava quaisquer novidades que tivessem a ver com revoluções.
Mas, para já, o jovem praticante de piloto está a ter um Inverno tranquilo em Cuba. Desencalhar o navio foi um processo moroso. À falta de rebocador, foram colocadas barcaças à sua volta para transborda os sacos de açúcar, ficando assim o porão mais aliviado, e a própria máquina do Alcobaça, aproveitando uma maré alta conseguiu auto-propulsionar-se para fora do banco de areia.
Em Niquéro completaram o carregamento de açúcar e voltaram novamente a atravessar o Atlântico, mas desta vez rumo a Marrocos para entregar o açúcar no porto de Casablanca.
Ao fim de seis meses de navegação era altura de descansar e foi com ansiedade que Jorge Sales aproou a norte para em breve chegar a Lisboa.
A estada não durou muito. Dois dias depois volta a embarcar porque é essa a vida de um marinheiro. Mas agora já ostenta as divisas de terceiro piloto e o navio é outro: durante os próximos dois anos a sua casa será o N/M Bragança que fazia a rota do Império: Luanda, Lobito, Moçâmedes (Angola), Havre (França), Roterdão (Holanda), Bremen e Hamburgo (Alemanha) e Lisboa, às vezes também Leixões. Entre a partida e a chegada de Lisboa decorriam três meses.
Em 1960, Jorge Sales sobe a bordo do seu terceiro e último navio – o Rita Maria – no qual navegaria nos sete anos seguintes. A viagem completa era agora mais curta e fazia-se em dois meses porque já não se subia até ao norte da Europa, sendo a linha marítima apenas entre Angola e Portugal.
Em 1966 a rota é alterada para uma viagem ainda mais curta, um triângulo que unia Lisboa a Cabo Verde e Guiné. A carga transportada espelha bem as relações comerciais do Império português da época. Da Metrópole, como então se chamava a Portugal continental, carregavam-se bens e sobretudo muito vinho. “Às vezes o navio praticamente só transportava vinho”, conta o homem que durante os sete anos que nele andou, foi subindo de terceiro piloto a imediato.
Em Cabo Verde embarcavam-se animais vivos que serviriam de alimento na Guiné e o convés enchia-se de galinhas, cabritos e vacas. Em Bissau, o Rita Maria ficava vazio e não trazia nada para Lisboa.
“A verdade é que para África íamos cheios que nem um ovo, e para cá vínhamos vazios”, diz Jorge Sales.
Mas entretanto há uns carregamentos sui generis. Com a guerra colonial o navio transporta soldados para o teatro de guerra da Guiné. Centenas deles, que viajam nos porões, agora transformados em casernas.
Ainda assim, tal só aconteceu algumas vezes porque as tropas viajavam nos navios de passageiros da Companhia Colonial de Navegação e da Companhia Nacional de Navegação. O Rita Maria era um navio misto porque transportava essencialmente carga, embora tivesse camarotes para 70 passageiros.
Jorge Sales abandona a vida do mar aos 32 anos e vai directamente para o palácio de S. Bento. Não que se tivesse metido na política, mas porque o seu primo, o caldense Paulo Rodrigues, subsecretário de Estado da Informação e Turismo lhe dá a mão e o integra no Comissariado de Turismo.
Em 1970, após uma curta passagem pelo Serviço de Relações Públicas do Palácio Foz, o antigo piloto da Marinha Marcante vai chefiar o posto de turismo do aeroporto de Lisboa, onde fica durante 20 anos até se reformar.
“Aquilo não era o que é hoje!”, alerta. “Naquele tempo tínhamos 18 funcionários e o posto de turismo trabalhava 24 horas por dia”.
Esta estrutura veio a revelar-se decisiva para apoiar a ponte aérea que, em 1975, trouxe para Lisboa 700 mil retornados da ex-colónia.
Aos 76 anos Jorge Sales dedica grande parte do seu tempo ao desporto que sempre foi a sua paixão e que pratica desde os dez anos – o ténis.
Da vida de embarcado, guarda um álbum de fotografias e documentos antigos, entre eles as cartas da família, enviadas para os portos onde atracava e que, por vezes, chegavam já depois de o navio ter partido.
E há duas perguntas que sempre se faz a um antigo marinheiro: se enjoou e se apanhou algumas daquelas tempestades dos filmes e dos livros de aventuras.
Que sim. “Que ninguém diga que nunca enjoou no mar”, conta Jorge Sales. Nos primeiros meses claro, e também da primeira vez que atravessou o canal da Mancha com o navio vazio a balancear. E quanto ao mar bravo, o piloto não esquece uma tempestade que os apanhou entre as Canárias e a Madeira. O navio vinha tão carregado que a água rasava o convés e, como os tombos, soltaram-se os bidões de óleo que tiveram de voltar a ser amarrados. Na operação, fustigados pela tormenta, há um marinheiro que é apanhado por uma onda e é projectado contra a balaustrada da proa. Não caiu ao mar por pouco, mas não escapou ileso: rompeu os testículos, que tiveram de ser cozidos pelo enfermeiro de bordo.
O lado bom da vida de embarcado eram as viagens propriamente ditas. E embora o Rita Maria não tivesse o glamour dos paquetes, as escassas dezenas de passageiros que transportava, as refeições na messe e a vida social a bordo, sempre davam um certo cosmopolitismo à profissão.
Carlos Cipriano
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