
António Alfaro é caldense e está na China há ano e meio. Uma lesão roubou-lhe o sonho de ser futebolista profissional, mas encontrou na fisioterapia uma forma de continuar ligado ao desporto que mais gosta. Há ano e meio na academia do Shandong Luneng, uma das principais do país, é responsável pelo departamento de fisioterapia dos escalões de formação. Na academia, formada por 26 campos de futebol, residência e escolas, recebem formação perto de 500 jovens atletas. O país tem apostado no crescimento da modalidade, mas António Alfaro nota que há princípios culturais que ainda é preciso ultrapassar para que a China possa tornar-se uma potência do futebol mundial.
G.C.: Como surgiu esta oportunidade para trabalhar na China?
A.A.: Após a conclusão da minha tese de mestrado fui convidado pelo professor Silveira Ramos, na altura director técnico da formação do Shandong Luneng, para integrar a equipa técnica por si liderada, como coordenador do departamento de fisioterapia da formação do clube. Estou no clube desde Julho de 2018.
G.C.: Quais são as funções que tem no clube?
A.A.: Fui convidado para ser responsável pelo departamento de fisioterapia. Coordeno diariamente 15 fisioterapeutas no apoio aos diversos escalões, além de pontualmente fazer o acompanhamento de equipas em competições particulares, ou casos clínicos que necessitem de uma abordagem mais diferenciada fora do centro de estágio. Mas normalmente fico na Academia para promover suporte clínico aos mais de 400 atletas que vivem e treinam no clube.
G.C.: Como é o seu dia a dia?
A.A.: Trabalho de segunda a sábado, e pontualmente ao domingo também. Costuma-se dizer que no futebol não há fim-de-semana e essa é a minha realidade profissional. Na China, os sábados são dias úteis, pelo que apenas o domingo é dia de descanso.
Relativamente à minha prática profissional diária, normalmente início o período da manhã com avaliações dos atletas lesionados e reúno com o preparador físico para agendar protocolos de reintegração desportiva e avaliação dos mesmos, visando a sua reintegração no treino coletivo. A articulação entre fisioterapeuta, preparador-físico e equipas técnicas é vital para o retorno do atleta ao treino/competição, pelo que damos especial atenção a esta vertente.
Durante a tarde realizo um acompanhamento mais funcional, ou seja, de prevenção, recuperação ou optimização, quer de forma individualizada, quer colectiva. Além disso, é também neste período que lido com questões mais burocráticas e logísticas, como necessidades materiais e manutenção do departamento, do ginásio e da piscina, o planeamento dos fisioterapeutas para treinos ou competições dentro e fora da academia. São ainda necessárias reuniões com os mesmos sobre casos clínicos com maior grau de especificidade e com outros sectores do departamento médico.
G.C.: E fora do centro de treinos e do ambiente profissional, há oportunidade de conhecer a região e a sua cultura?
A.A.: Sim. Já estive nas principais metrópoles chinesas como Pequim e Shangai, entre outras cidades. Mas, acima de tudo, conheci mais profundamente a região de Shandong. É nesta província que se encontra o centro de estágio da formação do clube, mais precisamente em Weifang, uma cidade “pequena” com 10 milhões de habitantes.
Quando cheguei, o choque cultural foi imenso. Da língua à gastronomia, dos costumes à escrita, tudo é diferente e impactante. E não era só para mim, os próprios chineses nesta cidade (pouco aberta para o mundo) reagem da mesma maneira quando vêem estrangeiros, com um ar de surpresa e curiosidade, que acaba normalmente com um pedido fotográfico.
Com o tempo, a ajuda do meu tradutor e a vinda da minha mulher, tudo foi sendo amenizado e progressivamente fui-me adaptando a esta nova realidade.
G.C.: Como é a parte da comunicação? Está a aprender a língua?
A.A.: Não, não tive aulas de mandarim. Essencialmente porque disponho de tradutor durante a minha actividade profissional. Já quando estou em lazer estou por minha conta e do Google Tradutor.
A barreira da língua chinesa é realmente um passo complicado, sei algumas palavras e frases técnicas relacionadas com a fisioterapia, mas descontextualizadas do panorama linguístico. Não posso afirmar que seja difícil ou fácil a sua aprendizagem porque não tentei. O que posso dizer, com toda a certeza, é que passado 20 anos, quem tinha razão eram os meus pais quando afirmavam “devias aprender mandarim, que é o futuro…”!
G.C.: Hoje em dia o trabalho do fisioterapeuta vai muito além do tratamento das lesões, há todo o trabalho de prevenção. Isso obriga a uma actualização constante.
A.A.: Sim, existe sem dúvida uma necessidade de actualização constante sobre evidências científicas que possam maximizar o processo de reabilitação, prevenção e optimização da performance dos atletas. Este processo é complexo e necessita de um conjunto amplo de competências por parte dos fisioterapeutas para que possam atingir tais objetivos com os jovens praticantes.
Por exemplo, depois de assumir funções entendi que o processo da fisioterapia não tinha uma linha de continuidade entre a fase reabilitativa e o retorno desportivo, o que dificultava a readaptação dos jovens aos treinos colectivos, além de aumentar consideravelmente a probabilidade de as lesões recidivarem. Assim, desenvolvi um processo holístico da fisioterapia, em concílio com o preparador físico do clube, que visa aumentar a segurança ao retorno desportivo por parte dos atletas, através de protocolos divididos por fases (reabilitação, readaptação, reintegração e prevenção) e testes específicos entre cada uma destas, objetivando a minimização do risco de recidivas e potenciação do retorno à prática desportiva.
Considero ainda que o papel do fisioterapeuta na área desportiva deverá ter uma vertente educacional bastante abrangente, procurando incutir aos atletas o conhecimento das suas necessidades morfofuncionais, assim como, fornecer-lhes “ferramentas” para que autossustentem a sua performance desportiva.
G.C.: Como é a realidade do futebol chinês, tanto a nível profissional, como da formação? É diferente da que esperava?
A.A.: Inicialmente surpreendeu-me o crescimento exponencial do futebol na China, não só a nível de audiência (quase que se iguala ao basquetebol) como em termos de investimento estatal e privado (clubes).
Essencialmente após o presidente Xi Jinping se ter autoproclamado um fã da modalidade, iniciou-se um processo de reforma no futebol chinês, através da implementação de medidas como a investigação da corrupção – que existia em larga escala – e a introdução do futebol no plano curricular dos jovens chineses.
Estas medidas enaltecem a preocupação da sociedade chinesa no desenvolvimento da modalidade, fixando algumas metas futuras, como o número de participantes atingir os 50 milhões em 2020 e a construção de campos que ultrapassem os 70 mil lugares também no mesmo ano. Metas estas que considero realistas para esta sociedade.
Contudo, dados, imposições e investimento não compram talento. E este talento tem uma associação elevadíssima com a prática, acima de tudo com o designado “futebol de rua”, o qual é inexistente na China. Isto porque o sistema de educação incute um elevado número de horas aos jovens, tornando-se impeditivo para que estes possam ter tempo livre, onde poderiam realizar essa prática.
Outros aspetos que também são limitadores deste processo a médio-longo prazo são as tradições enraizadas na sociedade chinesa. Por exemplo, os pais tradicionalmente não vêem com bons olhos a prática do futebol pelos filhos, preferindo que estes invistam o tempo na formação académica, com vista a obterem uma profissão importante na sociedade.
Além disso os estilos de aprendizagem chineses no ramo da educação são bastante autocráticos, impedindo o pensamento crítico e sistemático dos jovens, o que se reflete dentro das quatro linhas. E nós, europeus, sabemos o quanto é importante um pouco de irreverência na formação, porque sem esta não existe inovação, a tentativa de criar algo novo dentro de campo, e sim apenas seguir um padrão motor. Portanto, um dos grandes objetivos dos treinadores estrangeiros aqui na China deverá ser a estimulação reflexivo-motora dos jogadores, por outras palavras, dar-lhes o problema e não a solução, como eles estão habituados.
No panorama profissional, os clubes chineses continuam com o frenesi pela contratação de jogadores famosos e pelo apetite voraz em investimentos estratosféricos para aumentar a qualidade competitiva da sua liga doméstica. Contudo, no meu entendimento esta visão é limitativa para o progresso a médio-longo prazo do futebol chinês, dado que o compromisso deverá ser para com o desenvolvimento do futebol de base.
Por todas estas razões, na minha opinião, o futebol de formação na China ainda terá muitos desafios a enfrentar antes que a sua visão ambiciosa comece a marcar golos.
G.C.: Quais são os seus objectivos profissionais no médio prazo, ficar pelo estrangeiro ou regressar a Portugal?
A.A.: Irei regressar a Portugal este ano. Apesar do clube querer dar continuidade ao meu vínculo, eu procuro uma nova oportunidade com funções mais próximas do treino. Esse sempre foi e será o meu sonho, ser treinador profissional de futebol.
Diria que será um regresso provisório ao nosso país, pois existem algumas possibilidades para novas experiências no estrangeiro.
Lesão acabou com o sonho de ser futebolista, mas abriu outras portas
António Alfaro considera-se “um profundo amante do futebol”. Começou por jogar nas camadas jovens do Caldas SC, mas uma lesão num joelho afastou-o dos relvados durante cerca de dois anos, o que impediu de cumprir o sonho de chegar à equipa sénior do clube e aspirar a ser jogador profissional. Mas isso não o impediu de tentar um futuro ligado à modalidade de que tanto gosta.
Foi a tal lesão que lhe despertou a importância que a fisioterapia desempenha ao serviço do desporto e dos desportistas. No entanto, a sua ambição era outra, tornar-se treinador de futebol.
“Decidi começar a estudar autodidaticamente o treino”, conta à Gazeta das Caldas, acrescentando que foi essa ambição que lhe moldou o percurso académico e profissional. “Não queria simplesmente tirar o curso de educação física, não me entusiasmava”.
Foi por isso que seguiu a fisioterapia, como via alternativa, “mas nunca esquecendo o destino final pretendido”, acrescenta. Concluiu a licenciatura nesta área na Escola Superior de Saúde de Alcoitão em 2016, mas nesse mesmo ano concluiu o curso de treinadores da UEFA (grau I). No ano lectivo seguinte iniciou o mestrado em Treino Desportivo na Faculdade de Motricidade Humana e assumiu dupla função no FC “Os Belenenses”, como fisioterapeuta da formação e treinador principal dos Sub10.
Em 2017 rumou ao Operário Futebol Clube para treinar o escalão de Sub15 no Campeonato Distrital de Lisboa e concluiu o mestrado na área do treino, que garantiu a licença de grau II como treinador.
No final dessa época surgiu então a oportunidade de seguir para a China, como responsável pelo departamento de fisioterapia para os escalões de formação do Shandong Luneng.






























