Uma “viagem” pelas semelhanças e diferenças do 15 de Agosto de 2025 e o de 1965 nas Caldas da Rainha
Caldas da Rainha, 15 de Agosto de 2025, cidade calma, tempo baço e ainda pouco encalorado. As ruas estão desertas e o principal movimento é em direção às praias, da Foz do Arelho e de S. Martinho do Porto. O relógio da Câmara (agora sede da Junta de Freguesia) já não bate há anos e a praça da fruta está com pouca oferta, mais insuficiente que ao sábado que é agora o dia forte. Ninguém para comentar a cidade nos dias de hoje nem há muitos cafés abertos. Apenas a esplanada agora que junta alguns turistas.
Quinze de Agosto. Quando a manhã despontou no horizonte baço, a cidade, sem saber como, encontrou-se de súbito povoada de pessoas girando de um lado para o outro, freneticamente. O grande relógio da Câmara badalou dez horas e o tipo, que encostado à esquina, oferecia o rosto incaraterístico aos raios quentes deste sol estival, disse com certo azedume na voz: – Que confusão!
O quinze de Agosto é essencialmente o dia dos forasteiros.
Efetivamente, logo pela manhã, a população rural caiu em peso na cidade – a pé, a cavalo, de camioneta, conforme puderam (eu, por exemplo, vim de boleia, que é o mais prático e económico).
Visitar a Feira (reunindo este ano um outro aliciante – o gado) é algo que lhe está na massa do sangue, sob a forma de necessidade inadiável, ou mística ritual a cumprir forçosamente.
Quanto aos turistas, esses vieram em excursões – a primeira chegou ao Largo do Hospital, seriam talvez umas 8 horas – mas alguns, especialmente estrangeiros, haviam cá pernoitado, para fazerem cedo as suas compras no mercado.
No fundo, porém, esta Feira entrou em tal ciclo vicioso de uniformidade de moldes que, sem sequer lá ter ido, eu descrevê-la-ia com todos os pormenores não temendo errar ou ostentar falsos conhecimentos.
É certo que nela existe, renovadamente, qualquer coisa que, embora já tradicional, adquire, para cada um de nós, um aspeto sempre novo – o carrocel, as farturas, os automóveis, os matraquilhos, etc.. É isso que salva a Feira. Contudo cremos não ser nenhum contra-senso propor uma revisão nos seus quadros progressivamente gastos pelo tempo. A Feira precisa, urgentemente, de uma revitalizadora infusão de modernidade, nesta encruzilhada epocal em que o progresso é uma constante irrecusável.
O 15 de agosto de 2025 é de ninguém, ou provavelmente de todos os que demandam as Caldas da Rainha ao fim de semana, residam duradouramente ou não na região, venham aqui passar o fim de semana nas segundas habitações que constituíram, ou aqui vivam as suas reformas douradas ou menos douradas, aproveitando o clima, a segurança, a pacatez ou o menor custo de vida em relação à região metropolitana de Lisboa ou a outras regiões do mundo. Agora quem vem de fora já vem na sua viatura própria ou através da rede de Expressos ou de Autocarros rápidos, uma vez que nos tempos que correm, apesar das promessas, a via férrea pouco oferece. Também as excursões são mais raras e hoje mais viradas para a terceira idade aproveitando as ofertas das autarquias próximas ou das coletividades ou iniciativas de bairro. Mas a Feira do 15 de Agosto já não constitui nenhum atrativo, porque perdeu o seu espírito. Já não há a feira do gado (proibida há algumas décadas por questões sanitárias) onde se elegiam as melhores e mais bonitas rezes, o circo já não comparece na Feira, as barracas de venda limitam-se a roupas, artefactos para a casa, ferramentas para a agricultura e também para o uso doméstico, os carrocéis são diferentes e mais pequenos. Os automóveis de choque desapareceram na versão de há meio século, tal como os matraquilhos, as barracas de tirinhos numa versão de algum erotismo saloio consentido pelo antigo regime. Há poucos locais para comer, não abundando as barracas dos frangos e das febras assadas, tendo emergido as novas ofertas agora como “boutiques” em vez de barracas, agora com site na internet e no Facebook, à base de fritos, mantendo-se as farturas, mas agora misturadas com os churros ou churritos, mais ou menos gourmet, o algodão doce, as pipocas, waffles, etc. Quem diria…
Se para Bonifácio Serra a Feira tinha há meio século entrado no “ciclo vicioso da uniformidade” não temendo descrevê-la sem lá ir, hoje podemos dizer que tudo é mais fácil nestes termos, uma vez que a Feira do 15 de Agosto pouco difere dos mercados semanais da segunda-feira que se fazem no mesmo local, a não ser por uma certa animação que só existe nos momentos de maior frequência. Em 1965 os carrocéis, os carrinhos de choque, começavam a mexer logo pela manhã, tal era a atração que a feira tinha para os residentes locais e visitantes.
Dirigi-me à Cândido dos Reis, dita Rua das Montras. Um mar de gente percorria-a, áquela hora, de alto a baixo, num desusado vai-vem.
Mas desusado não era só o movimento dos camponeses de fatos de domingo, sapatos cobertos de terra, cabelos lustrosamente penteados (os mais novos) ou protegidos com boinas (barretes não vi eu, nem um), os rostos alegres, foliões.
Desusado era também a lavagem que ao pavimento se viu obrigado a fazer, de mangueira em punho, ele próprio, o proprietário de um estabelecimento na mencionada rua.
Atingi a Praça e anotei, com foros de sensacionalismo o mais ou menos perfeito policiamento ali montado. Em relação ao habitual, não esteve nada mau, não senhor!
Uns simpáticos (sem ironia) indivíduos que eu, por mais que procurasse, não consegui encontrar, foram os cauteleiros. Suspeito de duas causas para tal desaparecimento: ou tinham vendido todo o jogo ou estavam de férias.
A tourada figurou como cartaz fundamental deste quinze de Agosto no tocante à atração turística (isto é: de turistas).
Hoje, 15 de agosto, a Rua das Montras tem pouca movimentação. Já não se nota a diferença de castas nos passeantes. Hoje já o vestuário não distingue classes nem proveniências, barretes foi adereço onde os proprietários rurais guardavam o dinheiro, que desapareceu há muito. É mais fácil distinguir os penteados pela idade ou proveniência cultural. Ao contrário de há 50 anos os imigrantes já pontuam na cidade, com as suas vestes diferentes e exóticas em certos casos. Os camponeses na região já são ultraminoritários, melhor existem proprietários rurais alguns que em nada se distinguem do resto dos citadinos, havendo sim trabalhadores rurais que vivem na cidade de onde partem madrugada cedo e regressam ao fim da tarde, na quase totalidade vindos de África ou da Ásia distante. Já não há o vendedor de bilhetes para a tourada nem da lotaria, o lembrado e conhecido por Justiça na esquina da rua das Montras para a Praça, uma vez que os tempos mudaram, perdeu-se o corneteiro que anunciava os touros na rua, apesar de se manter a corrida do 15 de Agosto, que este ano se repetiu ao fim da tarde com os toureiros que hoje servem este espetáculo cada vez mais minoritário e contestado. Antes a discriminação entre os frequentadores fazia-se pelo preço das entradas, hoje pelas opções ideológicas.
Também hoje a lotaria pouco atrai os apostadores, sendo que a maioria das pessoas, especialmente das camadas mais modestas são atraídas nas papelarias e nos cafés pelo totoloto, euromilhões ou nos últimos anos as muito concorridas e aditivas raspadinhas. Policiamento também pouco se vê no centro da cidade, estando antes deslocado para locais onde os gratificados ordenam o trânsito. A lavagem das ruas também se faz raramente, havendo em contrapartida novos veículos para o fazer por vezes, mas sem se observar grandes mudanças no aspeto das mesmas. Apenas são percorridas por assalariados eventuais que cortam as ervas ou apanham os papéis já com ferramentas mais sofisticadas.
Um casal de franceses, com quem conversei, passava pelas Caldas com a finalidade única de apreciar a Festa Brava. Segundo me confiaram, de momento o seu problema máximo fora o da dormida pois não adregaram de obter vaga em Hotel da cidade. Só o alcançaram vejam bem, em Peniche, como localidade mais próxima.
Mais uma vez se confirmava a premente falta (tantas vezes proclamada e que não é novidade para ninguém) de um Hotel de 1ª classe, à altura das possibilidades e virtualidades turísticas da região, nas Caldas da Rainha.
Hoje já residem na região inúmeros estrangeiros, para além dos imigrantes referidos antes, sejam franceses, belgas, italianos, nórdicos ou norte-americanos, que para aqui vêm gozar as suas reformas e a amenidade do clima, mas também os hotéis de qualidade já abundam na cidade, na região, a que se junta o mais frequente fenómeno do alojamento local, que também substitui a tradição existente antes para os termalistas dos quartos particulares alugados no centro da cidade e que era uma receita adicional para o orçamento de muitas famílias. O problema é assegurar o pleno funcionamento dessa oferta que é mais onerosa em termos financeiros para o turista nacional. Mesmo assim se espera o prometido e ambicionado novo hotel termal de 5 estrelas junto ao Hospital Termal Rainha D. Leonor.
E João Serra numa descrição pormenorizada e circunstanciada entrevista a D. Maria da Vitória, contratadeira na Praça da Fruta, que se queixa das vendas cujos resultados não foram os esperados apesar da afluência, o Sr. Virgílio Augusto, “chauffeur” de taxi que diz ser este dos melhores dias porque depois da meia Noite abundam os serviços para levar clientes para as freguesias rurais, o vendedor de gravatas “que estava a impingir uma a um campónio. que a colocava sob os colarinhos defronte de uma vitrina”. Falou ainda com o Sr. João Mendes, onde o próprio jovem jornalista engraxou os sapatos, que se queixou do negócio e que disse não ter engraxado no dia nem cinquenta clientes. “Na Feira os sapatos sujam-se todos e ninguém vai mandá-los engraxar para depois os meter naquela poeirada…”
“O “Quinze de Agosto” é essencialmente o dia dos forasteiros. Prudentemente, os caldenses reservam para o dia seguinte a sua visita á Feira”.
Infelizmente hoje nem há dia seguinte ao 15 de Agosto e nem os caldenses vão à feira como iam antes. Apenas os mais tradicionalistas vão ali fazer algumas compras ao desbarato de calçado, roupas, toalhas, numa parafernália de produtos que só atrai uma minoria que gosta de manter a tradição e que cada vez mais rareia e vai também afastando os vendedores mais qualificados e sofisticados. Provavelmente estas feiras, neste formato e com esta localização, estão condenadas a prazo. Tal como João Bonifácio dizia há mais de meio século: “A Feira precisa, urgentemente, de uma revitalizadora infusão de modernidade, nesta encruzilhada epocal em que o progresso é uma constante irrecusável.”
Virá esta mensagem ainda a tempo?
*com excertos de JBS “Reportagem à Volta do Quinze de Agosto”, GC, 21/8/85































