Com 26 anos, o jovem Ivo Santos, natural de Carvalhal Benfeito, deu a sua primeira missa como pároco na freguesia que o viu nascer, um mês depois de ter sido ordenado padre pelo cardeal D. José Policarpo.
Um bom pretexto para contar, em entrevista à Gazeta das Caldas, como surgiu a sua vocação para o sacerdócio e como vê o papel da Igreja na sociedade actual.
GAZETA DAS CALDAS: Acaba de ser ordenado padre. Como sentiu a vocação?
IVO SANTOS: Até aos 14 anos não tinha sequer colocado a questão de ser padre. Cresci numa família católica cristã, de prática dominical, e vinha a missa como todas as crianças. As únicas referências que eu tenho é de os meus pais dizerem que eu não gostava muito de ir à missa, mas fui aprendendo pouco a pouco, e até por brincadeira dizia que queria ser polícia quando fosse grande, porque os polícias estavam sempre na rua e nunca iam à missa.
Com 14 ou 15 anos fui para a Escola Rafael Bordalo Pinheiro e tinha que escolher a área profissional. Eu tinha um certo fascínio por computadores e tudo o que lhes fosse ligado e escolhi o curso tecnológico de Informática. Ao mesmo tempo, aqui na minha paróquia, fui crescendo na catequese, juntei-me ao grupo de acólitos com 12 ou 13 anos, e depois o meu antigo prior, o Padre Alberto Dias convidou-me para ir a um campo de férias em que se rezava (risos). E aceitei porque não estava habituado a esses campos de férias com muitos miúdos e por vezes naquelas idades mais novas sonha-se com um campo desses. Mas já sabia que teria alguma coisa a ver com a vocação.
Acabei por encontrar um grupo de miúdos na mesma situação que eu, mas que já costumavam ir a esses encontros. Fazíamos algumas actividades, como de jogar à bola, tocar guitarra, etc. No meio destas actividades todas surgiu-me então uma pergunta pela qual nunca me tinha interrogado: “será que Deus me pode chamar a ir mais longe?” Ao mesmo tempo que fui tirando o curso na secundária, aqui na minha paróquia fui entrando para o grupo de jovens, para o grupo coral juvenil, e eram tudo actividades de que eu gostava imenso.
GC – E não houve nenhum momento chave?
IS – Até aos 18 anos essa questão foi-se desenvolvendo, e sim, houve momentos chave, momentos marcantes. Depois de ir a esses encontros descobri a alegria de estar numa comunidade. Não era desejo meu ser padre. Não sei porquê, sentia o chamamento de Deus para algo mais, mas ao mesmo tempo olhava para a figura de padre e dizia “eu não quero ser assim”. Era algo que não conseguia perceber. E depois, num desses encontros, fui chamado a entrar num seminário, já com um curso de quatro anos, e todos os meses iria uma vez lá. Disse que não queria, mas ao mesmo tempo sentia isto dentro de mim. Se calhar eu, como cristão, não posso passar toda a minha vida com interrogações. Há um determinado conjunto de sinais que foram sendo dados progressivamente, é como juntar as peças de um puzzle, e depois chega aquela principal. Acho que deste conjunto de momentos determinante estar na secundária e perceber, por exemplo, que os meus colegas chegavam ao pé de mim e diziam, com muita naturalidade, “Ivo, tu tens muitas capacidades para acompanhar pessoas, gostam muito de falar contigo e gostas de dar conselhos”.
Outra coisa era as pessoas contarem-me os seus problemas, as suas preocupações e eu querer estar presente, e às vezes sofrer com elas. E ao mesmo tempo, na minha paróquia, eu tinha este gosto de acompanhar grupos, assumindo alguma liderança no grupo de jovens e no grupo coral. Ao mesmo tempo ganhei o gosto por rezar.
Há outra coisa que sempre me questionou muito: olhar para a sociedade, e dizer “não haverá algo que faça as pessoas felizes?”. Chegava à conclusão: “Jesus Cristo pode oferecer isso às pessoas”. Mas há um problema – é preciso quem mostre esse amor que nós experimentamos. Talvez o ponto de viragem da minha vocação é perceber que há pessoas que precisam de saber isto.
Ao mesmo tempo também me retraía um pouco o ser padre porque eu sonhava ser pai de família.
“Sou capaz de abdicar de uma vida familiar para me dedicar totalmente ao sacerdócio”
GC – Ser padre não é uma profissão qualquer pois há uma série de restrições, como o celibato. Como foi feita esta ponderação?
IS – Eu sempre quis ser pai de família e durante a minha juventude nunca tive um namoro sério, eram coisas mais pequenas. E às vezes essa convicção deixava-me de pé atrás. Até perceber uma coisa: ser padre não é uma profissão como as outras. Normalmente estamos habituados a que a profissão seja algo que a gente escolhe. Se eu tenho jeito para aquilo eu vou escolher aquilo. A vocação é diferente: abdico de uma coisa para ter algo, aparece mais como uma necessidade do que como uma vontade.
Por ver esta necessidade de um povo que precisa de ser guiado, conduzido, de saber que Deus ama as pessoas, então sou capaz de abdicar de uma vida familiar para me dedicar totalmente. E então aqui sou uma pessoa livre, porque a família não é algo que me pareça um recurso, mas bolas, sinto-me livre por poder dar este amor.
GC –A Igreja nos últimos 40 anos tem tido menos sacerdotes a formar-se…
IS – É um desafio hoje colocado. Os padres são poucos. Às vezes há uma tendência de reduzirmos as coisas a números. A Igreja começou com 12 e espalhou-se pelo mundo. Por isso não é uma questão de números. O que me parece que se passa hoje (e já viajei por muitos sítios, muitas paróquias, conheci muitas pessoas) é que Deus continua a chamar rapazes, os seminários continuam a ter gente.
Há muita gente que sente o chamamento, mas que não avança. Também há outros que o sentem, avançam e respondem a essa vocação e ainda há aqueles que nunca ouviram falar disto. Podiam sentir, mas nunca lhes foi dito nem anunciado. Essa preocupação foi feita ao Papa porque está bem presente a nível europeu e percebemos que não é um problema só aqui de Portugal, mas que é alargado a esta Europa, se calhar um pouco cansada da sua fé, e que precisa de uma outra renovação. E se calhar vimos outras partes do mundo em que essa fé está a surgir e está a crescer. Ainda há pouco tempo estive com padres da Coreia do Sul em que eles têm bastantes ordenações de padres. Portanto, se neste momento aqui está a diminuir o número de padres, noutros sítios está a crescer.
GC – Mas há aquela ideia que o padre era uma pessoa mais envolvida ou que as pessoas eram mais próximas do padre da paróquia. Talvez a nível rural não se note tanto como na cidade, por ser uma vida diferente, que cada vez mais se afasta da fé. Qual o papel do padre neste quadro?
IS – Estamos a falar de duas realidades completamente diferentes – uma zona rural como o Carvalhal Benfeito e a cidade das Caldas da Rainha. Aqui todas as pessoas conhecem o padre Filipe e há uma relação bastante próxima. Nas Caldas nem toda a gente conhece o padre Joaquim. Mas acho que o desafio continua a ser o mesmo, apesar de as realidades serem diferentes.
GC – Temos aquela ideia no padre num papel de assistência, de caridade para com os pobres. Acha que um padre pode ir mais longe e denunciar, por exemplo, injustiças sociais? Por exemplo o ex-bispo de Setúbal lançava muitas críticas ao governo falava de coisas que achava que não estavam bem. Mostrou-se um padre mais interventivo nas questões sociais, quase políticas até.
IS – O dever do padre é estar sempre ao serviço do povo. Para que o reino de Deus cresça no meio de todas as pessoas. Por isso, o padre deve ter sempre a verdade acima de tudo. Anunciar a verdade que é Jesus Cristo é o que somos chamados a fazer. Se isso implica denunciar situações de falsidade, mentira, corrupção, e se isso contribuir para a verdade de Jesus Cristo, então deve-se fazer. O próprio Jesus era assim, e era capaz de denunciar estas faltas e tudo aquilo que tende para a mentira.
GC – E acha que há falta desse tipo de intervenção na comunidade religiosa?
IS – Essa questão leva-nos a ter que perceber qual é a relação entre a religião e também a política. Ambos fazem um papel de serviço à comunidade e não deve uma misturar-se com a outra. Ambas devem trabalhar em conjunto ao serviço do bem, do próximo, mas ao mesmo tempo eu acho que hoje, a Igreja reconhece o seu papel e o Estado também, e sabem fazer esse trabalho de equipa, de conjunto.
A Igreja não serve para estar ao serviço da política. Mas acho que essa intervenção da Igreja já acontece. Vê-se pelas intervenções dos bispos e pelos apelos que têm sido feitos pelo Papa, pelo D. José Policarpo, um certo nível de notícias, se calhar nem sempre divulgadas, em que se apela em tempos de crise à comunhão, à partilha de bens. Por vezes o Papa e os Bispos fazem o papel de profetas, em que muitas vezes falam e são incompreendidos, e só mais tarde se vê que aquilo que disseram era verdade.
“Toda a sexualidade tem de ser vivida segundo os princípios do amor, da dignidade e pela responsabilidade”
GC – Em relação a questões onde a posição da Igreja é vista como mais polémica pela sociedade, como o aborto, o uso do preservativo, ou a homossexualidade, acha que deve haver maior abertura nesse posicionamento?
IS – É difícil ter uma abordagem destes temas numa entrevista pois posso correr o risco de ficar numa versão parcial e superficial perante temas tão profundos que não se resolvem com leviandade. É necessário abordar o tema e não nos ficarmos pelos aspectos mais discutíveis. Por exemplo, o aborto é algo mais do que discutir se concordamos ou não. O que se trata e está em jogo é: “Qual é o significado da vida?”, “O que vale ela para mim?”. E assim a Igreja estará sempre ao lado da vida e tudo o que a valorize. É esta a sua missão. Desviando-se deste caminho Ela deixa de ser aquilo que é.
O mesmo se passa com o uso do preservativo. Antes de abordar o tema é necessário perguntar qual o significado da sexualidade e não restringi-la à relação sexual pois ela é muito mais do que isso. Toda a sexualidade tem de ser vivida segundo os princípios do amor, da dignidade e pela responsabilidade. Pelo respeito do meu corpo e o do outro. Penso que isto abrirá outros horizontes na discussão do tema. A Igreja tem o seu fundamento em Cristo, sabe que a sua verdade é Cristo, e sabe que tem uma tradição e uma história. Muitas vezes olhamos para as questões como – será que é possível a Igreja mais tarde alterar esta lei? Aquilo que a Igreja tem para dizer é que ela não se pode desviar do que é a sua fonte – Jesus Cristo. Se Ela perder essa fonte, então perde a sua razão de ser, de existir.
GC – Antigamente a Igreja não discutia tanto estes assuntos, agora já o faz. Concorda?
IS – Não concordo que diga que a Igreja hoje está mais aberta a esses problemas, de querer reflectir sobre isso. O mundo de há 20 anos para cá está diferente e hoje, graças a Deus, os meios de comunicação evoluíram e é difícil fazer uma reflexão mais aprofundada. Há mais pessoas que entram para o debate e vão reflectindo estas questões. Se a sociedade evoluiu neste tipo de comunicação, a Igreja também evoluiu. É mais fácil para a Igreja agora haver este diálogo e esta abertura.
GC – Que projectos tem para as paróquias onde vai trabalhar?
IS – Irei ser padre na paróquia de Óbidos, Olho Marinho, Amoreira, Vau, Serra Del Rey e Sobral da Lagoa. Ainda não conheço as pessoas das paróquias, portanto não sei dizer ao certo o que tenciono fazer sem ter conhecimento. A partir de Setembro ou Outubro irei lá estar e saberei o que fazer.
GC – Mas agora como padre, que acha que pode oferecer à comunidade para a melhorar? Mesmo não estando em actividade em Carvalhal Benfeito, o que pode oferecer agora na sua posição?
IS – Na minha entrada na paróquia de Óbidos, aquilo que se pede a um pastor e a um padre é que conheça as suas ovelhas. E acho que o meu maior desafio vai ser conhecer aquelas pessoas. As pessoas são diferentes em todas as paróquias. Às vezes pode haver uma tendência para eu entrar numa paróquia e dizer “está aberto para nova gerência”, como se costuma dizer. Não é certamente aquilo que será o objectivo, mas sim perceber que eu sou pastor, venho para estar ao serviço daquelas pessoas. O objectivo será fazer com que aquelas pessoas possam nascer da fé, ou crescer dela.
“O padre também serve para mostrar às pessoas que elas não estão sozinhas”
GC – Acha então que as capacidades de comunicação que falou anteriormente serão a grande mais valia para as paróquias com que vai trabalhar?
IS – Sim, sim. Um pastor que conhece as ovelhas sabe quais são os pastos melhores. Em termos de serviço mais pastoral e concreto eu acho que será uma continuação do trabalho que já tenho feito como seminarista, que será o acompanhamento da comunidade, a celebração da eucaristia e dos sacramentos, por exemplo, a alegria de levar pessoas ao baptismo e de levá-las para a fé. Ou de levar pessoas à união pelo casamento. Ou ainda de acompanhar as pessoas através dos momentos mais difíceis da vida, um funeral de um amigo. A maior alegria de ser padre é acompanhar as pessoas, estar com elas, conhecê-las e sobretudo colocarmo-nos ao lado delas. E muitas vezes esquece-se um pouco isso. O padre também serve para mostrar às pessoas que elas não estão sozinhas.
GC – Estava nervoso ontem na sua primeira missa?
IS – Estava ligeiramente nervoso. Regressar à comunidade e já não estar nos bancos como assembleia, mas sim como padre e pastor, faz isso. Também vermos todas as pessoas que me acompanharam ao longo deste percurso, e estarem aqui quase todas juntas… Ao mesmo tempo é uma sensação de grande alegria, celebrar o grande acontecimento que é a eucaristia e que é a missa e dar o próprio corpo de Jesus a elas, e que pelas mãos do padre Ivo que Jesus se torna presente. Não escondo que estava ligeiramente nervoso, sempre também por aquelas pequenas coisas da organização.
Óscar Morgado
omorgado@gazetadascaldas.pt
A primeira missa
A Missa Nova do padre Ivo Santos realizou-se no passado domingo, ao ar livre, junto à Igreja do Carvalhal Benfeito, pelas 16h00. O agora padre foi ordenado no passado dia 2 de Julho no Mosteiro dos Jerónimos pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa D. José Policarpo. Na primeira celebração da eucaristia deste jovem sacerdote que cresceu em Carvalhal Benfeito estiveram presentes entre 1500 a 1700 pessoas.
A celebração, costume de todos os sacerdotes recém-ordenados, contou com a presença de 42 padres das paróquias das Caldas da Rainha, bem como de outras zonas do país. Todos eles têm em comum uma relação próxima com o padre Ivo Santos ao longo do seu percurso até ser ordenado. Na organização do evento colaboraram as paróquias de Santa Catarina, Óbidos, Algés e Salir de Matos.
No final da eucaristia houve a cerimónia do beija-mão, que marcou a passagem do padre Ivo Santos para a vida pastoral. Neste acto passa-se a reconhecer-lhe não apenas a pessoa, mas também a presença de Jesus Cristo.
O.M.






























