“A cultura não é um parente pobre da vida social e económica”, defende João Bonifácio Serra

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Nascido no Carvalhal Benfeito em 1949, João Bonifácio Serra é actualmente um dos caldenses de maior prestígio no panorama cultural do país. E para isso muito contribui a sua escolha para a presidência da Fundação Cidade de Guimarães, entidade responsável pela Capital Europeia da Cultura que decorre este ano naquela cidade, assumida em Agosto do ano passado. Um projecto onde participam ainda outras pessoas ligadas às Caldas, sobretudo professores e alunos da ESAD.CR.
Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade Nova de Lisboa, o caldense esteve ao longo da sua vida ligado a diversos projectos nas áreas da cultura, da investigação e do ensino, tendo participado activamente na criação da Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha, onde se mantém como professor coordenador. Entre os cargos de maior visibilidade que assumiu, destaque para a chefia da Casa Civil da Presidência da República de Jorge Sampaio, entre 2004 e 2006, e para a integração da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República.
O historiador recebeu já diversas condecorações, entre as quais a Ordem de Cristo, Grã Cruz e a Ordem da Liberdade, Grande Oficial. Em 2002, João Bonifácio Serra recebeu a Medalha de Mérito Grau Ouro do Município das Caldas da Rainha, na tradicional cerimónia de distinção de personalidade e entidades que se realiza no Dia da Cidade.
A proximidade de mais um Feriado Municipal foi o pretexto para uma entrevista ao caldense, onde além do balanço na Capital Europeia da Cultura se deita um olhar crítico à vida cultural das Caldas da Rainha.


GAZETA DAS CALDAS
– Qual é o balanço que faz destes primeiros meses da Capital Europeia da Cultura, enquanto presidente da Fundação Cidade de Guimarães?
JOÃO SERRA –
A Capital Europeia da Cultura abriu a 21 de Janeiro e cumprimos já a primeira fase do nosso programa. Estamos na segunda fase, que vai até 24 de Junho, e todos os indicadores que temos são muito positivos e, sobretudo, muito estimulantes para o futuro deste projecto – desde as audiências, até aos indicadores económicos muito virados para os aspectos relacionados com o turismo, o cumprimento dos prazos de realização e de empenho dos conteúdos artísticos e a participação dos artistas.Todos esses indicadores são muito positivos. Mas também o são os indicadores menos visíveis, dizendo respeito à mobilização de pessoas, artistas, voluntários, membros do sistema cultural local, regional e nacional que estão directamente ou indirectamente implicados na Capital Europeia da Cultura.
De todos os lados temos recebido um aplauso, que não é naturalmente isento de crítica. Mas nos aspectos qualitativos da crítica todos têm posto em destaque a alta qualidade e a pertinência da programação, a novidade de muitas propostas e, sobretudo, o impacto que elas têm em termos de revigoramento do sistema cultural nacional em contexto internacional.

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GC – E quais as perspectivas para os restantes meses do projecto?
JS –
As perspectivas não podem ser desligadas deste balanço. Queremos manter este nível e esta exigência. A

Nos últimos meses, João Bonifácio Serra divide-se entre Caldas da Rainha e Guimarães, onde preside à entidade responsável pela Capital Europeia da Cultura

programação que vem a seguir tem, naturalmente, ritmos diferentes da programação que já fizemos, mas mantém no essencial o critério e, portanto, hoje podemos dizer que também os indicadores de confiança, de apreço pelo projecto, pelo profissionalismo e pela qualidade do trabalho, estão garantidos. Não vemos nenhuma razão para não continuarmos a manter esses objectivos em cima da mesa.

GC – Quais foram as grandes apostas deste projecto? Passou pela diversidade da programação, por agradar a públicos distintos?
JS –
Só isso não faria uma Capital Europeia da Cultura. Ela tem um critério que vem das instituições europeias, ao qual acrescentámos uma reflexão própria sobre a forma de interpretar uma Capital Europeia da Cultura em Portugal, em 2012 e numa cidade de pequena dimensão na Europa e de média dimensão em termos portugueses.
Às exigências europeias, que estão sempre presentes neste projecto, acrescentámos uma preocupação própria. Por um lado reforçar o papel de Guimarães no quadro das cidades com uma forte aposta na cultura como meio de desenvolvimento das pessoas e do território, uma forte preocupação com a apropriação dos conteúdos e dos projectos, por parte da comunidade. Por outro, uma muito vincada preocupação com o futuro, com o legado e, sobretudo, com as plataformas de produção artística que neste ano excepcional devem ser desenhadas tendo em conta a possibilidade de jovens e instituições locais e regionais delas poderem beneficiar no futuro. Essas são as grandes apostas.
Não nos limitámos a pôr de pé um festival, esse seria um encargo mínimo. Procurámos interpretá-lo em termos de uma valorização do território e das pessoas.
Estamos agora a avaliar esse primeiro impacto, de modo que em Junho possamos fazer um primeiro balanço. Mas nós cremos que no domínio da música, do cinema e das artes performativas é já claro que novas valências foram postas de pé e estão a ser usufruídas e usadas pelos criadores portugueses e estrangeiros. Esse é provavelmente o que de mais importante ficará de Guimarães 2012 para 2013, 2014 e anos sucessivos.

GC- É uma Capital Europeia que não se vai esgotar quando este ano chegar ao fim?
JS –
Não se esgota em 2012, deixa um serviço educativo muito mais treinado, mais ampliado e mais capacitado, que deixa uma plataforma de produção artística e cultural com novos meios, tecnológicos e humanos e, sobretudo, com experiência para enfrentar o futuro.
Este tipo de eventos, representando sempre uma grande concentração de meios num determinado período de tempo, corre certamente o risco de se esgotar nesse ano. Daí que tenhamos desde o princípio tentado combater e evitar esse risco, criando uma filosofia de investimento que se baseia menos no projecto concluído e mais no processo. Mais importante do que o festival é o processo de construir uma Capital Europeia da Cultura. Esse é que evolve mais talentos, mais criadores e mais jovens, porque é sobretudo para eles que estamos a trabalhar.

GC – Essa filosofia de investimento foi também uma forma de dar a volta aos tempos de contenção que se vivem? O projecto foi afectado?
JS –
Sim. Quando se pensou em 2012 não se tinha a noção nem se podia adivinhar o que se ia passar realmente. Mas esta aposta nas nossas capacidades de fazer, e fazer bem, em contexto internacional, é uma aposta que não tem apenas em conta as dificuldades financeiras, mas tem em conta o problema que é hoje mais perceptível – embora seja um problema permanente – que é a sustentabilidade dos equipamentos e projectos que pomos de pé.
A sociedade está a mudar, a economia também, mas nós cremos que a cultura não é um parente pobre da vida social e económica. É um factor positivo tanto para o desenvolvimento, como para a criação de valor. É isso que tentamos demonstrar, que a cultura e a criatividade em geral têm um papel cada vez mais forte e mais sólido na criação de competências nas sociedades de hoje, que são sociedades que têm de apostar em formas de economia e formas de vida em que a inovação tem um papel motor fundamental.

“O Estado não pode deixar de ter políticas de estímulo, de apoio à actividade criadora e à internacionalização da cultura portuguesa”

GC – O actual Governo acabou com o Ministério da Cultura e muitas vozes alertam para o risco de grande parte da actividade cultural acabar no país. Na sua opinião, a Cultura está de boa saúde em Portugal?
JS –
A Cultura, do ponto de vista da política pública atravessa um momento difícil, de redefinição. O problema não é tanto institucional, embora existam condições que impelem no sentido de reformas das estruturas públicas. O problema também está em saber quais são os pontos nevrálgicos de actuação pública e de que forma essa actuação pode associar a si a iniciativa dos criadores independentes, dos múltiplos actores do sistema cultural, e potenciar essas capacidades.
Acho que isso hoje está, de uma forma geral, em equação, uma vez que é evidente que o Estado tem que ter políticas culturais para o património, mas não pode deixar também de ter políticas de estímulo, de apoio à actividade criadora e à internacionalização da cultura portuguesa, que é um activo adquirido há muitas décadas, para não dizer há séculos, e que se não pode em caso algum deixar ao sabor do que cada um, por si, consegue fazer.

GC – Guimarães 2012 pode ajudar à boa saúde da cultura portuguesa?
JS –
Eu julgo que sim. A Capital da Cultura é uma experiência que merece ser acompanhada com atenção por todos os decisores políticos e cujos efeitos não perdurarão só no sistema cultural nacional. Neste ano particularmente complicado, sem a Capital Europeia da Cultura e o esforço que ela está a fazer, maiores dificuldades se abateriam, sobretudo sobre os novos criadores.
A Capital Europeia da Cultura trouxe um lote muito significativo de encomendas nos vários campos de actividade criativa, e esse aspecto significou uma oportunidade renovada num ano difícil, em que o Estado e as autarquias contraem as suas encomendas e em que este projecto surgiu para muitos como uma possibilidade de encontrar um mercado digno para a criatividade e o trabalho de muitos criadores e artistas portugueses.

GC – Este foi um processo com alguma controvérsia, nomeadamente aquando da demissão da anterior presidente da Fundação Cidade de Guimarães. Esta controvérsia prejudicou, de alguma forma, o projecto?
JS –
A controvérsia está hoje a uma distância muito grande da Capital Europeia da Cultura. O que eu posso dizer é que tomei esta responsabilidade em Agosto de 2011, renovei substancialmente a equipa, quer a dirigente, quer a técnica, e com isso foi possível fazer uma reorganização estratégica. Os índices de confiança e de participação que hoje a Capital da Cultura tem não são resultado de um acaso, são resultado de muito trabalho, muito esforço, e sobretudo de uma enorme seriedade e aplicação desta equipa que tomou posse a partir de Agosto.

GC – O resultado final seria o mesmo se tivesse liderado este projecto desde o início?
JS –
Não faço ideia, só posso fundamentar sobre o que aconteceu a partir do momento em que tive responsabilidades directas na gestão da Capital Europeia da Cultura. Mas devo dizer, em abono da verdade, que de Setembro de 2009 a Agosto de 2011 fui administrador com o sector da Programação a meu cargo e que esse sector não sofreu, como é evidente, alterações. Eu respondo pela área da programação, de forma continuada, desde que tomei posse.

GC – O que aprendeu com esta experiência?
JS –
Esta experiência é única na minha vida e de alguma forma inesperada.
Na fase em que aceitei este convite tinha assumido a minha condição de professor da ESAD e era para essa área que tinha dirigido os meus esforços. A Capital Europeia da Cultura colocou-me perante uma exigência completamente nova na minha vida, que é uma exigência não apenas de continuar a reflectir sobre o papel da cultura e da criação artística nas cidades contemporâneas, mas agora também ajudar a construir esse caminho, sobre o qual apresentei no passado propostas, investigações e reflexões.
Agora trata-se fundamentalmente de as pôr de pé e o que é particularmente interessante neste desafio é verificar que grande parte das reflexões que nos últimos anos apresentei, inclusive nas Caldas da Rainha, são pertinentes, fazem sentido, são aplicáveis, têm público e são apropriáveis pelas pessoas. E é esse o ponto que, também do ponto de vista pessoal, me enriquece.

“Caldas da Rainha tem estruturas culturais bastantes, interessantes e diversificadas, mas tem pouca Gestão Cultural”

GC – E depois de Guimarães 2012, conta trazer essa experiência para as Caldas? Tem convites para novos desafios na cidade?
JS –
Não, não tenho convites para lado nenhum. Eu e os meus colaboradores costumamos dizer que quando acabarmos esta experiência saberemos fazer a melhor Capital Europeia da Cultura de sempre, até porque aprendemos com as próprias dúvidas, incertezas e com as realizações. A verdade é que essa oportunidade em Portugal só ocorrerá daqui a 12 ou 13 anos e certamente serão outros os protagonistas.
Eu tenciono, a partir de Fevereiro de 2013, regressar ao meu lugar de professor coordenador da ESAD e continuar a contribuir para o enriquecimento e consolidação desta escola a que também estou ligado desde a origem, onde fiz carreira, onde atingi estas funções e onde quero naturalmente regressar.

GC – É precisamente nesta escola que coordena o Mestrado em Gestão Cultural, cuja primeira edição termina este ano. Os resultados deste Mestrado poderão ser uma ajuda para o desenvolvimento cultural das Caldas da Rainha?
JS –
O Mestrado em Gestão Cultural é uma aposta muito exigente e certamente difícil, porque no sistema de ensino português os mestrados tendem hoje a funcionar como uma espécie de complementos da Licenciaturas de Bolonha. E a vocação deste não é essa.
Não há nenhuma licenciatura em Gestão Cultural. Há licenciaturas em diversas áreas das ciências sociais e humanas e outras inclusivamente que podem drenar para o Mestrado, que visa sobretudo qualificar profissionais que estão no terreno e precisam de voltar à escola para adquirir mais competências. A dependência do Mestrado do mercado de profissionais de Gestão Cultural dá-lhe uma flutuação muito grande, sobretudo em momentos em que os equipamentos culturais estão a atravessar mais dificuldades. Admito que este Mestrado tenha nos próximos anos alguma dificuldade de recrutamento, o que significa que teremos que fazer um esforço maior para o dignificar e sobretudo para o internacionalizar.
Penso que a partir de agora, a principal preocupação dos responsáveis por este Mestrado vai ser o de criar sinergias com outras instituições de Ensino Superior em Portugal que estão a operar na mesma área, e inseri-lo numa rede de instituições internacionais que o torne não apenas mais interessante, mas sobretudo mais sólido no seu papel na sociedade portuguesa.

GC – Nas Caldas urge, à semelhança do que foi feito em Guimarães, envolver a comunidade nos projectos? Pode passar por aí o impulso que a vida cultural da cidade necessita?
JS –
O caso de Guimarães é um caso excepcional porque houve a possibilidade de concentrar recursos para intervir no plano dos conteúdos e dos equipamentos em simultâneo, e nem todas as cidades dispõem destas oportunidades. Mas cada uma à sua maneira tem que pensar que uma cidade com um bom projecto no plano da cultura está mais preparada para enfrentar desafios de futuro do que outras que o não tenham.
O caso das Caldas é um caso que tem um conjunto de equipamentos, mas tem um déficit de rede. Precisa de reforçar a rede de equipamentos, ou seja, precisa de reforçar os instrumentos de gestão integrada dos seus equipamentos. Esse é provavelmente o desafio maior.
Caldas da Rainha tem estruturas culturais bastantes, interessantes e diversificadas, mas tem pouca Gestão Cultural. Precisa de mais Gestão Cultural, mais integração e mais internacionalização e sobretudo de fixar uma narrativa surpreendente e atractiva que consolide o papel de cada um dos equipamentos culturais, desde os clássicos como os museus, aos novos, como centros culturais. Uma narrativa que envolva as associações, que integre tanto a cultura popular como a cultura mais erudita e que trate tanto do património como da nova criação e que, sobretudo, atraia e fixe talento e diga “as Caldas é uma cidade onde é inevitável os criadores culturais passarem, viverem, residirem e trabalharem”.

GC – Os equipamentos culturais caldenses estão mal aproveitados?
JS –
Não digo que estão mal aproveitados. O que precisam é de passar a uma forma superior de gestão e essa tem que ser integrada. Nas Caldas da Rainha os vários museus, as várias associações, públicas e privadas, instituições do Estado e instituições da Câmara têm que ter cada vez mais uma actuação em rede local, regional e nacional, que é o que potencia a internacionalização.

GC – Vai continuar ligado à Festa da Cerâmica?
JS –
Vou, enquanto a Câmara manifestar interesse nisso.
Por razões de agenda minha, e também com certeza da própria autarquia, não foi possível este ano realizar, até à data, a Festa da Cerâmica. Mas esta foi uma oportunidade para repensar o modelo da Festa da Cerâmica, que teve já duas edições, e que deve evoluir no sentido de responder não só aos desafios de animação da cidade, mas também aos desafios novos que a cerâmica, tanto a industrial como a artística, enfrenta.
Essa reflexão está a ser feita. Eu penso que daqui sairá, em acordo com a Câmara Municipal, um modelo mais adequado para prosseguir com a experiência da Festa da Cerâmica. Quanto a quem o protagonizará, poderei ser eu ou outra pessoa qualquer. Até à data a Câmara tem depositado em mim confiança, mas o futuro o dirá.

GC – E há condições para fazer essa Festa da Cerâmica mais evoluída que defende ainda este ano?
JS –
Este ano parece-me difícil, mas vamos tentar que seja possível.

GC – Acredita que nos próximos anos as teorias que destacam as economias e indústrias criativas vão ser uma mola fundamental do desenvolvimento económico das sociedades?
JS –
Acredito. Independentemente de essa teoria poder ser objecto de discussão, valorização maior ou menor, não tenho a menor dúvida de que está no terreno uma transformação do papel das artes e da cultura na sua relação com a economia e que essa mudança é irreversível.

Joana Fialho

jfialho@gazetadascaldas.pt

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