Foi num ambiente muito tenso, com longos silêncios, que decorreu a Assembleia de Freguesia do dia 3 de Junho. Eleitos e público gelaram ao ouvir as graves acusações contra o executivo constantes do relatório. As decisões, porém, foram rápidas e unânimes: envio do relatório e da documentação da Junta para o Ministério Público (o que aconteceu na passada terça-feira) e pedido de auditoria às contas de 2017, bem como à Associação Para a Promoção e Desenvolvimento Turístico da Foz do Arelho. Na esfera política foi aprovada, também por unanimidade, uma moção de censura ao executivo.

A recusa de José Ferreira em “passar cheques em branco”, como os definiu, acabou por quebrar devido à insistência de Artur Correia e do próprio presidente da Junta, Fernando Santos. Um silêncio pesado pairava sobre a sala de reuniões, que desta vez contava com duas dezenas de fregueses a assistir.
Às 21h55, quase meia hora depois do início da Assembleia, o cheque foi passado e os envelopes abertos. Ficou logo decidido que só iria ser distribuída a parte das conclusões pois o relatório tinha 127 páginas. O documento seria enviado por correio electrónico logo após a reunião.
A leitura das conclusões gelou a Assembleia. Dir-se-ía que deputados e fregueses ficaram em estado de choque perante a gravidade dos factos apurados. Henrique Correia (PSD) foi o primeiro a usar da palavra para perguntar a Fernando Sousa e a Maria dos Anjos (ambos do MVC) como foi possível que tivessem sido passados cheques sem suporte documental e como é que houve cheques a pagar fraldas, whiskys e óculos.
“Também a mim isso me deixou surpreso”, respondeu Fernando Sousa.
Diogo Carvalho (CDS/PP) alertou que “não podemos tomar decisões só com base nas conclusões” porque o documento tem 127 páginas e as conclusões ocupavam apenas seis.
Henrique Correia propôs que o relatório fosse tornado público, o que mereceu o acordo dos presentes (NR – em rigor o relatório é, ao abrigo da Lei, um documento de acesso público). Artur Correia disse que “as conclusões são muito graves embora ditas de uma forma muito polida”. E não resistiu a perguntar a Fernando Sousa se era verdade que a Junta tenha emprestado 3000 euros a Maria dos Anjos.
Respondeu a própria, admitindo que sim e que tal foi feito com o acordo de Fernando Sousa e do tesoureiro Jorge Constantino (que negou qualquer envolvimento nesse episódio), tendo devolvido o dinheiro algum tempo depois.
O presidente da Assembleia perguntou ainda, ao que Fernando Sousa respondeu que terá sido da iniciativa deste e que, apesar disso, a Caixa de Crédito Agrícola aceitou o cheque.
Com os deputados imersos nas seis páginas das conclusões e um ambiente extremamente pesado, Artur Correia acabaria por fazer três propostas que seriam aprovadas por unanimidade: remeter o relatório e as pastas com documentação para o Ministério Público, auditar o ano de 2017 (a auditoria terminava em 2016) e auditar as contas da Associação Para a Promoção e Desenvolvimento Turístico da Foz do Arelho.
Todos concordaram: Artur Correia, Henrique Correia e Sandra Poim (eleitos pelo PSD), Artur Diogo (CDS/PP), Branca Rosa Proença (PS) e os quatros eleitos pelo MVC: Jorge Constantino, Luís Vila Verde, Carlos Seixas e Maria Neto.
Passando à esfera política, Artur Correia foi peremptório ao declarar que tinha deixado de confiar em Fernando Sousa e propôs uma moção de censura que foi também aprovada por unanimidade. O presidente da Assembleia não se coibiu de criticar contundentemente o presidente do executivo, dizendo-lhe que apesar de este até fazer um bom trabalho em prol da terra, “nada justifica o que aqui vem [no relatório]”.
Fernando Sousa limitou-se a breves declarações, dizendo que está de “consciência tranquila” e que “ainda bem que isto vai para o Ministério Público” pois ele próprio também já tinha feito queixa no tribunal (ver Gazeta das Caldas de 26/05/2017).
Contactados pela Gazeta das Caldas, Maria dos Anjos não quis prestar declarações e Fernando Sousa disse que enviaria um comunicado para o nosso jornal, o que até ao fecho desta edição não aconteceu.

Fraudes contabilísticas, crimes tributários e apropriação indevida de dinheiros
A auditoria revela um “desvio potencial apurado de 192.841,07 euros” nas contas da Foz do Arelho entre 2013 e 2016, um valor que pode ainda ser superior “tendo em conta que algum do pecúlio das receitas apurado do parque de estacionamento e do parque de autocaravanas não entrou nas contas da Junta de Freguesia”. Por isso é proposto que este montante, resultante “de situações passíveis de desvio de dinheiro”, seja devolvido à autarquia: todo o executivo, de forma solidária, deverá entregar 136 mil euros, mas Fernando Sousa deverá ainda devolver 26.600 euros, Maria dos Anjos 28 mil euros, Luís Vila Verde 126 euros e Jorge Constantino e José Ferreira pouco mais de 900 euros cada.
São várias as origens do muito que está mal nas contas da Foz do Arelho: as Operações de Pagamento (OP) irregulares e ilegais, a quantidade de cheques passados não se sabe a quem ou de que se ignora o destino do dinheiro, os vencimentos e subsídios que Fernando Sousa e Maria dos Anjos decidiram receber sem suporte legal, as transferências para a Associação Para o Desenvolvimento e Promoção do Turismo da Foz do Arelho, as receitas não contabilizadas do parque de estacionamento e do parque de autocaravanas, as despesas em combustível e refeições sem justificativo, e os levantamentos de dinheiro por parte presidente da Junta sem qualquer justificação.
Foi a partir do apuramento destas situações que o auditor concluiu que Fernando Sousa e Maria dos Anjos deverão repôr, respectivamente, cerca de 27 mil e 28 mil euros. Isto sem falar dos 136 mil euros que o executivo, no seu conjunto, deverá também devolver à Junta para compensar saídas de dinheiro sem comprovativos ou realizadas em actos considerados nulos.
No capítulo referentes às despesas, o relatório diz que há “OP em número bastante significativo, sem qualquer comprovativo de despesa realizada (factura), ausência de autorização de pagamentos e respectivos comprovativos de pagamento”. Entre as “irregularidades e ilegalidades” das OP, contam-se cheques sem provisão, “indícios de processamento das OP feitos de forma fraudulenta, nomeadamente no que tange ao número de OP não sequenciais e datadas de forma não sequencial” e “uso excessivo do uso em numerário em detrimento dos cheques e transferência bancárias”.
O relatório refere ainda “pagamentos de refeições de forma abundante em entidades de restauração de forma diversificada sem a correspondente necessidade imperiosa de justificação da despesa, nomeadamente quem a fez e o respectivo justificativo da despesa, suportando a Junta de Freguesia de forma ilegal o seu pagamento”, “contabilização em duplicado e triplicado da mesma factura” e o “pagamento excessivo de combustíveis (gasóleo e gasolina) sem a devida justificação legal”. O auditor refere ainda a existência de facturas de combustível em nome de pessoas e não da Junta da Freguesia, indiciando pagamentos ilegais de forma a justificar a saída de dinheiro e ao mesmo tempo pagamentos a terceiros de forma “camuflada”.

CHEQUES SEM COBERTURA E OUTROS AO PORTADOR
Entre 2013 e 2016 foram passados 1200 cheques da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo das Caldas da Rainha (muito mais do que os usados nos mandatos anteriores), alguns ao portador e outros sem que se saiba qual o seu destino. Foram ainda identificados 97 cheques sem cobertura que custaram à Junta, em encargos e comissões, mais de 3000 euros. A auditoria identificou também uma situação que classificou de “preocupante”: um funcionário exterior ao executivo, que obviamente não está autorizado a assinar cheques, assinou um que foi levantado, sem problemas, na Caixa Agrícola.
Fernando Santos e Maria dos Anjos (que é simultaneamente membro eleito do executivo e funcionária da freguesia) levantaram cheques cujo destino se desconhece, não havendo quaisquer registos do rasto do dinheiro, pelo que o auditor propõe que estes devolvam à autarquia, respectivamente, 8.500 e 20.000 euros.
Durante o mesmo período a Junta “pagou 9612,50 euros (em cheques e dinheiro) sem qualquer justificativo o que indicia despesas ilegais”. Mas há mais: “constatou-se que houve numerário e cheques que foram emitidos aos familiares do Presidente da Junta, nomeadamente a filha e a esposa, configurando um impedimento, ou seja um acto nulo de acordo com o artigo 69º do actual CPA”.
Ainda no âmbito dos pagamentos, o relatório refere a ausência de mecanismos de controlo interno e desrespeito pelas regras do orçamento das autarquias. Por exemplo, ouvido em inquirição, Luís Vila Verde (MVC), que foi tesoureiro da Junta e depois se demitiu em colisão com Fernando Sousa, diz que “nas execuções de obras da Junta de Freguesia não existiam notas de encomendas sobre o material a adquirir, não se pedia orçamentos para trabalho, mandava fazer o trabalho sem o respectivo orçamento. No anterior executivo os procedimentos da despesa estavam correctos o que não acontecia com o actual executivo, visto que o actual presidente desvalorizava esses procedimentos”.
A despesa da Junta da Foz do Arelho cresceu muito durante este mandato. A análise da documentação traduz um aumento de 168% do consumo de gasolina em três anos e um aumento de 161% do consumo de gasóleo no mesmo período. Nas telecomunicações, a rede fixa e a Internet cresceram 285%. E as transferências para Associação Para o Desenvolvimento e Promoção do Turismo da Foz do Arelho aumentaram 200%.
AS RECEITAS DOS PARQUES
O parque de estacionamento e o parque de autocaravanas têm constituído uma autêntica galinha dos ovos de ouro para a Junta de Freguesia. Não é caso único na região. Há freguesias que têm de se haver com as parcas receitas do Fundo de Equilíbrio Financeiro (aquilo que o Estado lhes dá) e outras têm a sorte de possuir receitas extras. A freguesia de Alvorninha, por exemplo, goza das receitas provenientes do Mercado de Santana e a de S. Martinho do Porto (concelho de Alcobaça) aufere bons rendimentos do parque de campismo em frente à baía.
À Foz do Arelho, entre 2013 e 2016 os condutores de ligeiros e de autocaravanas proporcionaram receitas – contabilizadas – de quase 155 mil euros. Mas a auditoria indicia que as receitas poderão ser maiores porque o sistema de controlo interno que existia do mandato anterior foi desmantelado por indicação do presidente da Junta.
O apuramento das reais receitas dos parques revelou-se praticamente impossível para o auditor porque parte desse dinheiro não era registado. Daí a importância das inquirições (feitas pelo auditor e citadas no relatório) que corroboram muitas das suspeitas de ilegalidades, ainda que, por vezes, as acusações sejam cruzadas.
Por exemplo, Maria dos Anjos diz que “a mesma senha servia para três viaturas” e que “o presidente da Junta e a sua esposa procediam, por diversas vezes, à arrecadação das receitas do parque de estacionamento”.
Maria Caldeira, funcionária da Junta, refere que houve “senhas que desapareceram tendo sido o presidente e a Maria dos Anjos quem as retirou”.
Mas ambas já estão em sintonia nesta parte do relatório: “Maria Caldeira, secundada por Maria dos Anjos, referiu que a Junta de Freguesia não podia ter dinheiro no cofre porque Fernando Sousa tirava o dinheiro para pagamento de gasóleo e refeições para seu usufruto, mas as facturas comprovativas das despesas não apareciam”.
Uma constante nas inquirições é que “o presidente da Junta pedia dinheiro, que era retirado do pecúlio das receitas dos parques e não existia posteriormente a devida devolução”, no que é considerado como peculato.
Outro indício de crime – enriquecimento ilícito – a confirmarem-se os testemunhos, é que Fernando Sousa solicitava dinheiro para combustível ou refeições e apresentava depois a factura em nome da Junta pedindo novamente o dinheiro para a despesa feita.
MARTELANÇO E APAGÕES
Com tantas irregularidades e desrespeito pela contabilidade das autarquias locais, não admira que houvesse tentativas para que os números encaixassem e batessem certo à custa de expedientes, naquilo que na gíria é conhecido por “martelanço”.
Refere o relatório: “por diversas vezes a Maria dos Anjos “apercebeu-se pelo consultor João Oliveira que as contas estavam “marteladas” e por diversas vezes o mesmo consultor se dirigiu ao presidente a informá-lo da situação tendo o mesmo dito “martela que isto tem de dar certo”.
Mais esclareceu que a mando do presidente da Junta, “executou diversos martelanços contabilísticos nas OP [Ordens de Pagamento] e GR [Guias de Recebimento] de modo a eliminar uma e criar outras de forma a dar tudo certo com dinheiro apurado na altura”. Mais refere que estava em presença de fraudes contabilísticas.
Mas mais eficaz do que “martelar” contas é eliminar as próprias contas. O relatório traz histórias recambolescas do apagamento, por duas vezes, de dados informáticos no programa de contabilidade da Junta sem que tivesse sido possível recuperar os ficheiros. Neste particular, Fernando Sousa e Maria dos Anjos trocam acusações cruzadas.
No mesmo mandato a Junta da Foz do Arelho já funcionou com três programas diferentes: da Sistévora, da Globalsoft e da FreSoft. Um deles foi apagado por duas vezes, mas os ficheiros foram recuperados. O auditor refere que o actual programa informático “não oferece garantias de fiabilidade em termos de procedimentos contabilísticos”.
VENCIMENTOS POLÉMICOS
Durante o mandato, Fernando Sousa recebeu um vencimento a meio tempo e um subsídio de refeição que a auditoria considera serem indevidos porque não houve nenhuma deliberação da Assembleia de Freguesia a autorizar, não podendo o autarca, de modo próprio, decidir auto-remunerar-se.
O mesmo acontece com Maria dos Anjos que recebia o vencimento de funcionária da Junta da Foz do Arelho e, ao mesmo tempo, um subsídio de compensação que, em finais de 2016 totalizava 8300 euros, os quais, segundo o relatório, deverá devolver à autarquia. No caso de Fernando Sousa, este deverá entregar 16.400 euros de vencimento indevido e 1700 euros de subsídios de refeição, também recebidos de forma indevida.
Durante a Assembleia de Freguesia de sábado passado, Artur Correia disse a Fernando Sousa que, tendo em conta o seu trabalho em prol da Foz do Arelho, este não teria tido qualquer problema em ver aprovada uma deliberação para que recebesse o vencimento a meio termo, mas que tal pedido nunca chegou aquele órgão.
O presidente da Junta respondeu que teve a preocupação de se informar antecipadamente e que estava seguro de que tinha direito aquela remuneração.
Uma contratualização estranha
O advogado da Junta de Freguesia, António Cipriano, no âmbito do processo com a família Calado, contratualizou com a empresa Tec XL a preparação de um documento técnico tendo pedido à Junta de Freguesia para fazer o respectivamento pagamento (2000 euros) directamente aquela empresa.
António Cipriano é também deputado do PSD na Assembleia Municipal e a Tec XL pertence ao consultor João Diniz, deputado pelo CDS/PP na Assembleia Municipal das Caldas.
O relatório diz que a Junta de Freguesia “assumiu encargos (pagamentos) com uma empresa sem ter sido ela o cliente, o que configura uma ilegalidade” pois esta adjudicação não consta de nenhum documento do executivo nem da Assembleia da Freguesia.
“Mesmo que a Junta de Freguesia fosse a entidade contratualizante desta prestação de serviço, o Código dos Contratos Públicos não foi cumprido, nem existem evidências de convite a outra entidades”, refere o auditor. Neste caso, e de acordo com o relatório, António Cipriano deveria assumir encargos com esta contratualização e debitaria posteriormente esses valores à Junta de Freguesia.






























